Torquato de Araújo Pereira Neto e eu fizemos um passeio, a pé, pela Avenida Frei Serafim, numa tarde azul, com nuvens brancas que pareciam sorrir na boca do céu de Teresina. Eu o encontrei em frente à Igreja de São Benedito, tendo à nossa esquerda o Palácio de Karnak.
Torquato Neto não me conhecia, o chamei pelo nome e me apresentei. Ele abriu um sorrisão de boas-vindas, vestindo calça jeans branco, camiseta de manga cavada, calçando alpargata de estilo franciscano. Enquanto trocávamos as primeiras palavras, passa uma amiga, minha ex-professora do quinto ano primário, Luzia Morais, a quem apresentei Torquato.
Torquato ia à casa dos pais, eu, ao Theatro 4 de Setembro. Mas mudei o itinerário, fiz com ele a viagem de volta, num bate-papo até a frente da casa dos saudosos dona Salomé e seu Heli, pais do poeta, que parecia feliz, estava sorridente, cabelo curto, e, talvez por isso, ninguém mais além de mim o reconheceu naquela tarde.
Papo vai, papo vem, Torquato me dizia que a música brasileira dava sinais de reação, falou do Chico Buarque “o disco novo dele tem versos fortes, ‘boca de feijão’, ‘boca de pavor’, ‘me sacode às seis horas da manhã’”, etc., referindo-se à música Cotidiano, do LP Construção.
Torquato também rasgou elogios a um compositor novo, lançado nacionalmente por Gal Costa, no LP Gal A todo Vapor: Luiz Melodia, com a música Pérola Negra. Torquato, sobretudo, teceu elogios ao poeta Oswald de Andrade, cuja obra considerava leitura imprescindível a todos os poetas.
Eu acompanhei Torquato até a frente da casa dos pais dele, quando lhe pedi uma entrevista para o jornal O DIA. Foi n’O DIA que eu me iniciei na profissão de jornalista, como editor de cultura, reinando sozinho na Editoria de Arte e Pesquisa, criada por mim. Torquato topou, marcamos para o dia seguinte, na casa dos pais dele. Perguntei: Posso trazer um amigo? Torquato disse sim, e eu fui em companhia do poeta Salgado Maranhão.
Torquato nos recebeu com urbanidade. Era uma sexta-feira, eu acho, o repórter fotográfico Carivaldo Marques não estava, fomos juntos outro dia, ele para clicar o retrato, eu, para levar o texto da entrevista datilografado, cujo título ele pediu permissão para mudar: ao invés de “Torquato Neto Verbo Encantado”, “Torquato Neto Verbo Desencantado”.
Na hora do clic, uma cena inusitada: Torquato, sem pedir licença, tirou-me os óculos e pôs no rosto, e o Carivaldo Marques mandou ver.
Em tempo: Salgado Maranhão voltou sozinho outro dia à casa do Torquato. E me revelou que a visita ao poeta o fizera repensar a sua poesia: depois do que ouviu de Torquato, rasgara o livro inédito de sonetos Fragmentos do Meu Destino.
Num domingo, a convite de Torquato, retornei à casa dos seus pais para almoçar com ele e a família. O cardápio me fora anunciado com antecedência: dona Salomé prepararia um peixe ao gosto do filho. Foi um banquete regado a vinho, seu Heli e dona Salomé falaram pouquíssimo, lá pelas tantas o telefone toca, era Ana, mulher do poeta, do Rio de Janeiro, o filho dela e do poeta, Tiago, queria falar com o pai.
Torquato retornou à mesa radiante. Teceu loas ao filho, como todo “pai coruja”, desmanchava de prazer ao falar do filhinho. Torquato retornou ao Rio de Janeiro dias depois e nunca mais retornou vivo a Teresina. Era junho, cinco meses depois, protagoniza a cerimônia do adeus, numa madrugada triste: depois de celebrar o aniversário, ao chegar ao apartamento na onde morava – comprara com o dinheiro ganho de direitos autorais – entra no banheiro, veda a porta e abre o gás. Os apartamentos tinham gás liquefeito de petróleo (GLP) canalizado.
O meu então editor no jornal O DIA, o saudoso Wanderlei Pereira, me pautou para “cobrir” o enterro. Disse: Gilberto Gil e Caetano Veloso talvez venham a Teresina, porém os parceiros não vieram. Um dia depois, recebo a visita do seu Heli na redação, me entregou datilografados os originais do inédito O Fato e a Coisa. E sempre que encontrava dona Salomé, a mãe do Torquato Neto chorava com saudades do poeta, dizendo:
“Aquele foi o último almoço que eu preparei para o meu filho”.
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Menezes y Morais – Em que ano você arribou do Piauí?
Torquato Neto – Em fins de 1959, quando terminei o Ginásio e, no início de 1960, eu fui estudar o Científico na Bahia.
MM – Como você se ligou com a turma Tropicália?
TN – Essa história é muito manjada. Eu fui estudar na Bahia e lá encontrei, conheci um bocado de gente no Colégio e tal; dentre estes tinha um que era amigo de outro e tal e tal e, nessa cirandinha, eu cheguei a conhecer Caetano; depois eu conheci Gil; depois eu fui embora pro Rio de Janeiro em 1962, eles ficaram lá; quando foi em 1965, tem aquela história conhecidíssima: Bethânia foi pra Bahia (sic) e ai começamos a fazer música, todo mundo. Isto é: a gente fazia música, brincava com música, mas o nosso papo mesmo era cinema; era o que a gente queria fazer mesmo.
MM – Qual a sua primeira música?
TN – É uma música que tá gravada por Gal no Lp Domingo, de Cae e Gal: é uma seresta chamada Nenhuma Dor.
MM – É verdade que Maiakósvki exerceu influência sobre os meninos da Tropicália?
TN – Maiakósvki exerceu influência sobre todo mundo que faz poesia, eu acho (pausa, um sorriso. Balança a rede e prossegue). Em 1968, a gente começou um trabalho, que depois passou a ser chamado tropicalismo. Essa história de “Ismo” é muito chata, reduz a coisa a uma coisa momentânea, e a Tropicália é uma coisa de repercussão enorme, além do prazo.
MM – Você falou que o escopo da turma da Bahia era o cinema. E como foi isso?
TN – A experiência era só de cineclubismo mesmo. A gente era viciado em cinema. Falava-se nisso de manhã, de tarde, de noite. Nessa época Glauber Rocha, era por volta de 1960, começou na Bahia o movimento Cinema Novo e foi justamente nessa época em que ele filmava Barravento, o primeiro grande filme brasileiro da época. E nós fizemos então um filme que, na verdade, foi dirigido por Alvinho Guimarães, que terminou hoje em dia sendo editor do Verbo Encantado – que já acabou no vigésimo número, há poucos dias. O filme chamava-se Moleques de rua, feito por todos nós, Alvinho, Caetano, Duda, eu e mais alguém que se perdeu no tempo.
MM – Torquato, na escola, gostava de Matemática?
TN – Eu… (sorrisos). Não. Eu estudava as coisas direitinho. Mas, o que eu gostava mesmo era de escrever.
MM – Você terminou o curso superior?
TN – Fiz dois anos de Científico na Bahia e o terceiro no Rio. Aí, fiz vestibular pra Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil; fiz vestibular pro curso de Jornalismo e cursei até o segundo ano. Aí, achei que o negócio tava muito chato e larguei.
MM – Torquato gosta de banana, laranja, melancia, tangerina, caju… agora, conta pro leitor como é que foi aquela coluna Geleia Geral, sua, no Última Hora.
TN – Era uma coluna diária onde eu abordava problemas gerais. O problema de vida que nós tivemos que enfrentar uma geração inteira. Eu tentei, durante nove meses, fazer uma coluna reflexa, um alto-falante, um retrospecto também… exatamente no momento em que o Pasquim tava falindo, como uma coisa realmente importante, quente. Depois que deixei de curtir a coluna, eu deixei de fazer.
MM – Como o público se comportou, em relação à mesma?
TN – Muito bem. Minha coluna era lida exatamente pelas pessoas que eu gostaria que lessem. Pela juventude do Rio de Janeiro. Cabeludos em geral…
MM – Qual o poeta ou os poetas que influenciaram realmente na sua poesia?
TN – Quando eu saí de Teresina, os poetas que eu conhecia eram aqueles dos textos de escola: Castro Alves, Gonçalves Dias, etc. A poesia moderna eu não conhecia nada. Naquela época, no Piauí, não tínhamos acesso a isso. Na Bahia, eu tive um contato imediato com essas coisas, como Carlos Drummond de Andrade. Drummond foi o cara que mais me interessou, logo de cara, me impressionou, sei lá. Aí, fui lendo João Cabral de Melo Neto, a secura do Engenheiro, da Faca, coisa seca, agreste, de Cabral. Depois, li outros poetas, etc. Mas, hoje em dia, o negócio importante para mim é a poesia concreta, lá de São Paulo, e o resultado do trabalho que a gente tem tentado desenvolver. E o que eu queria dizer aqui é que a Tropicália, no sentido da música, foi uma radicalização tão grande quanto a poesia concreta também foi no sentido da poesia. Quer dizer, a gente mexeu exatamente com a forma da música brasileira. E eu acredito sinceramente que isso é a coisa mais importante em qualquer processo cultural. Ou você mexe com a forma, ou então não mexe com nada.
MM – Onde e com quem nasceu a poesia concreta?
TN – Nasceu em São Paulo, exatamente com a trinca Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari. O nome “poesia concreta” apareceu pela primeira vez no contexto internacional, no importantíssimo suplemento literário do Times de Londres, aí por 1961, 1962, não sei direito, não me lembro.
MM – Conta pro leitor como é a coleção Na Corda Bamba.
TN – É uma coleção editada por José Álvaro Editor. Dirigida por José Carlos Capinan e pelo poeta Waly Salomão. É uma literatura experimental. José Álvaro se interessou com o trabalho dessa turma que está trabalhando nisto: novas experiências com a poesia, com o texto, com a linguagem e não com a língua brasileira (sorri). Então, Na Corda Bamba já vai sair o primeiro livro: de WS… Me segura que eu vou dar um troço. Em seguida, o livro de Jorge Mautner Fragmentos de Sabonete, depois tem o livro de Bivar e depois é o livro que eu estou preparando agora, que, aliás, eu nem sei se vou terminá-lo todo, porque eu tou mais interessado é em cinema. Ele chama-se Pesinho pra Dentro, Pesinho pra Fora. Bom, Corda Bamba é isso, amizade. É uma oportunidade que um editor tá dando pra que jovens poetas consigam mostrar, lançar as suas produções experimentais. Eu sempre escrevi muito, principalmente poesia. Mas nunca pensei em publicar livros. Eu preferi utilizar a poesia na música. Se agora eu estou tentando preparar esse livro, é a pedido de amigos. Já fizemos três filmes, um dos quais foi exibido recentemente no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, ainda não foi possível uma exibição dele no Brasil e tá sendo exibido agora no circuito universitário dos EUA. E aqui, em Teresina, eu cheguei com essa ideia: fazer um filme aqui. Aí me encontrei com o Edmar, Galvão, Noronha, essa turma aí, e eles tavam tentando fazer um filme também e então eu me enturmei com eles e tamos aí, já fizemos Adão e Eva na Sociedade de Consumo, feito por eles, no qual eu trabalho como ator. Logo depois, eu pretendo começar um longa-metragem meu, feito com eles e outras pessoas que eu ainda vou convidar. É um filme intitulado Idade, Cidade Verde.
MM – O que você vai fazer quando terminar tudo isso?
TN – Ir pro Rio de Janeiro (pausa). Eu moro lá, né? (ilustra a frase com um sorriso de azul e branco. Isto é: um sorriso branco dentro do azul da tarde…). Quando esse filme for exibido, eu pretendo fazer outros, eu não quero mais parar de fazer cinema.
Publicada na Revestrés #33 – especial Torquato Neto.
*Entrevista publicada no Jornal O Dia / Piauí e no livro “Torquato Neto ou A Carne Seca é Servida”, de Kenard Kruel.