(Participaram desta entrevista: Samária Andrade, André Gonçalves, Luana Sena, Maurício Pokemon, Liliane Pedrosa e Eugênio Rêgo)
O local é um galpão sem luxo algum no bairro Dirceu Arcoverde, o mais populoso da periferia de Teresina, Piauí. É bem ali, passando da linha do trem e quase “x” com as hortas, que o bailarino piauiense, quase 30 anos de Europa, gosta de estar em Teresina. O galpão é a sede do Núcleo do Dirceu, coletivo criado por Marcelo Evelin em 2006, composto por 20 participantes que produzem arte contemporânea. O trabalho de Evelin nesta área lhe rendeu prêmios no Brasil e no exterior. Um prestígio que faz seus projetos ganhadores de subvenções culturais do Governo da Holanda, Petrobrás e Banco Itaú, por meio de editais públicos de apoio à cultura.
Alto, expressivo, com jeitão diferente e um sotaque nordestino que nunca lhe abandonou, Evelin não passa despercebido na vizinhança do bairro. Os espetáculos do Núcleo do Dirceu, ainda que não costumem atrair grande público, geram curiosidade. Por que está todo mundo nu? Por que se jogam no chão ou se batem na parede? O que eles fazem é arte?
O galpão pertence ao Comercial Carvalho, rede popular de supermercados da região, e foi cedido gratuitamente por dois anos. Depois disso eles começaram a pagar um aluguel de R$ 500,00 (quinhentos reais) mensais. “É simbólico, mas é bom que paguemos”, afirma Evelin.
Nem sempre eles estiveram ali. O coreógrafo, que nasceu em Teresina, de um parto a fórceps, é o primeiro de quatro irmãos (dois homens e duas mulheres). É filho do engenheiro Estevam, que foi militar até meados dos anos de 1970, e da ex-miss Marlene, que foi decoradora e mais recentemente se dedica à medicina alternativa. Muito cedo o garoto percebeu que gostaria de dançar e olhava, envergonhado, as aulas de balé, exclusivamente femininas.
Evelin foi viver no Rio de Janeiro aos 17 anos e se envolveu com teatro, estudou jornalismo (sem concluir o curso) e, claro, dança. Aos 24 anos mudou-se para Paris. Foi modelo vivo e se apresentou em festas sociais com outros brasileiros que exibiam aos europeus o exotismo do samba. Ele conta que estagiou na companhia da alemã Pina Bausch, descobriu o seu jeito de dançar na Europa – onde a dança contemporânea fervilhava – e se fixou em Amsterdã, na Holanda, onde encontrou “suporte artístico e financeiro”, além de “simpatia e respeito”, segundo registra no livro “Piauienses em um mundo sem fronteiras” (organizado por R.N.Santana).
Em 2005 o coreógrafo voltou a Teresina, atendendo a um convite: dirigir o Teatro João Paulo II, recém inaugurado pela Prefeitura de Teresina no bairro Dirceu Arcoverde. Tudo era novidade. Para a Prefeitura: criar e manter um teatro de bairro. Para Evelin: voltar ao Piauí e trabalhar na região até então mais conhecida pelos índices de violência. “As pessoas me diziam que bom pra mim era o Theatro 4 de Setembro. Eu não queria. Não pelo Theatro, mas porque ele é central, é freqüentado por uma classe média alta que eu abomino. Eu gosto mesmo é do subúrbio. Pra mim Teresina é o Dirceu”, afirma Evelin. Sua chegada trouxe novidades também para os artistas – muitos queriam entender aquelas curiosidades que o bailarino apresentava; para o bairro – que ganhava um teatro com nome de papa e presenças nada convencionais-; e para a cidade – gente que nem conhecia o Dirceu passou a incluir o bairro em seus programas culturais.
“Eu fui garoto propaganda da Prefeitura. Dava quatro entrevistas por semana em programinha de TV” – queixa-se. Depois de três anos à frente do João Paulo II, Evelin se desentendeu com o então novo presidente da Fundação Cultural Monsenhor Chaves, entidade responsável pelo Teatro, o escritor e professor Cineas Santos. Dois universos tão distintos ou se permeiam ou se chocam. Eles se chocaram. O bailarino viveu pelo mundo, cita autores estrangeiros e valoriza a pós-modernidade. O professor gosta de folclore, fala de autores piauienses e defende as raízes regionais.
Evelin escreveu um pedido de demissão ao então prefeito Sílvio Mendes. Sem citar nomes, a carta fala em impossibilidade de diálogo e desqualificação do trabalho desenvolvido. Termina agradecendo a oportunidade e se dispondo a participar, “sob outras condições”. Além de entregar a carta ao prefeito, o coreógrafo a publica no blog do Núcleo do Dirceu. Em pouco tempo a carta estaria nos sites da imprensa local. No mesmo dia, na matéria intitulada “Sílvio Mendes apoia Cineas Santos na demissão de Evelin” (cidadeverde.com), o então prefeito manifesta irritação e classifica a publicação da carta como “uma deselegância”. “Ele mandou a carta foi pra mim, e a carta é minha”, disse à repórter Yala Sena.
Na época, Sílvio Mendes definiu a atitude de Evelin como uma “insubordinação”. A palavra parecia não fazer o mesmo sentido para os dois lados da questão e a situação se tornou irreversível. O coreógrafo fez uma nova carta, agora “aberta à dança brasileira” e falando em autoritarismo e arrogância. Na conclusão, pede que as pessoas manifestem repúdio através do blog do Núcleo ou, o que seria a cereja do bolo nesse imbróglio: enviando e-mail para o então prefeito e para o então presidente da Fundação Cultural. E cita os referidos e-mails.
A julgar pelo modo como as relações azedaram de vez, é provável que os e-mails citados tenham recebido algumas mensagens. Evelin argumenta que foi a única saída que encontrou, pois, segundo ele, a imprensa piauiense calou. Imediatamente após o coreógrafo pedir demissão, 22 funcionários do Teatro João Paulo II, entre artistas e técnicos, fizeram o mesmo. Ele conta que marcou uma coletiva para falar sobre o caso e ninguém da imprensa compareceu.
Da experiência, os que ocuparam posição distinta a de Evelin podem ter pensado que não é simples “comprar briga” com o coreógrafo. Talvez não soubessem que faz parte do que ele acredita. Na entrevista concedida à Revestrés, Evelin usa por diversas vezes a palavra “fricção” – deixando clara a intenção de “friccionar” as estruturas. Até nós tivemos nossa experiência de fricção. Começou quando uma integrante do Núcleo divulgou nas redes sociais uma mensagem questionando pontos da matéria “Cadê a cultura que estava aqui?” (publicada em Revestrés 7). A mensagem citava a repórter de Revestrés e foi respondida por esta. Outras pessoas entraram na discussão, que foi parar em um ponto nervoso para o Núcleo: a compreensão sobre o que eles produzem. Evelin se manifestou apresentando-se vestido de Chapeuzinho Vermelho, uma provocação de quem quer dizer “agora ficou mais fácil me entender?”. Dias depois, lá estava a galera do Núcleo envolvida em uma nova discussão, interna, mas exposta nas redes sociais: no espetáculo Racha Show, onde os bailarinos se vestem de mulher, uma integrante do Núcleo levou o filho pequeno vestido de mulher. A atitude dividiu opiniões. Mas isso já é outra fricção.
Voltemos: Evelin marcou entrevista conosco para o galpão do Núcleo. Lá, nos recebe junto a outros integrantes do grupo. O espaço é simples e eles são receptivos. Há alguns ventiladores, tamboretes, peças de cenário e uma mesa com cadeiras onde, Evelin conta, discutem de dança à Filosofia. A mesa representa o modo como o grupo se vê: um modelo horizontal, não hierárquico, baseado em colaboração e autonomia. A presença vigorosa de Evelin, no entanto, não deixa de exercer forte influência. Ele é articulado, fala sem pudores, é o bailarino que “deu certo lá fora” e que dá ênfase ao que deseja expressar, ora arrastando as palavras (ca-gan-do), ora usando o diminutivo (poesiazinha, programinha de TV).
É de lá, do galpão de supermercado do Dirceu, que essa turma viaja e se apresenta no Japão, em Paris, pela América Latina e Brasil. Evelin é convidado para partilhar a experiência do Núcleo em palestras pelo mundo. No Piauí, eles continuam tentando friccionar. E o Teatro João Paulo II? “Tá acabado”, diz Evelin. (Em tempo: na primeira semana de espetáculos após a saída de Evelin a programação exibia a peça “Lobo Mau e Chapeuzinho Vermelho”, anunciada assim: “numa versão piauiense com finalidade pedagógica”).
Cerca de três semanas após esta entrevista, foi anunciada uma nova direção para o Teatro João Paulo II, agora entregue ao humorista Walbert Dourado, mais conhecido como Ronniê, que interpreta a Karol Karolete, personagem de programa popular de televisão. O novo diretor assume a casa avisando que quer aproximar o teatro da comunidade. Na primeira programação divulgada, as atrações incluem Balé, o trio regional Jota, Jotinha e Jotão e o próprio Ronniê – este nos dois dias de espetáculo.
No início da entrevista, parecendo tenso, Evelin avisa: “eu vou meter o pau. Minha mãe disse: ‘filho, vão lhe matar` (fala imitando a mãe). Mas eu não fico feliz se tiver de boquinha calada, fazendo o social e participando de coquetéis”. Depois, mais relaxado, fala de seu novo projeto: montar uma peça sobre a lenda piauiense do Cabeça de Cuia. “Aqui existe um povo sofrido, que vive com a cabeça enterrada na lama, uma coisa tímida. Esse é o nosso protótipo. Pra mim o piauiense é o Cabeça de Cuia”.
Samária – Você é um piauiense que morou muito tempo fora e voltou a Teresina trabalhando num teatro de bairro. Houve uma distância muito grande nessa experiência?
Marcelo Evelin – Eu nasci em Teresina, mas não sou mais piauiense. Perdi minha cidadania há quatro anos, quando aconteceu o caso do Teatro João Paulo II. Eu sempre tive muito orgulho de ser piauiense. Pra mim era quase como um fetiche: ser de um lugar que não é central, entende? Ser do Piauí foi uma coisa que eu usei a meu favor, até pra desafinar as conversas, pra me colocar num lugar de deslocamento. Eu tava há três anos no Teatro, construí uma imagem para o espaço, coloquei o nome de Teresina lá em cima, recebemos dois prêmios APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte). Eu voltei pra Teresina em 2005, mas mudou o prefeito e entrou aquele que eu acho um ba-ba-ca (fala arrastando a palavra). Por isso hoje eu sou holandês com orgulho. Não quero mais colocar o nome do Piauí associado a meu trabalho.
Samária – E como você se identifica nas entrevistas e espetáculos fora do Piauí e do Brasil?
ME – Eu tento não colocar isso. E se tiver que colocar, digo que nasci no Piauí, mas agora sou holandês. Eu fiquei envergonhado de ser piauiense, pela primeira vez na minha vida.
André – você é magoado com Teresina?
ME – Às vezes comparo Teresina a Machu Picchu, que é incrível, mas parou no tempo. Eu tô fazendo uma piada, claro, mas faço isso para conseguir viver com o rancor e mágoa que tenho – dessa cidade, desses governos, desses intelectuais do Piauí. Tem duas faixas da sociedade que eu sou absolutamente magoado: uma são os artistas, outra a imprensa. Ambos foram ausentes, se calaram, viraram as costas para um projeto que era importante para o Estado. Artistas e imprensa foram cagões. Uma das situações mais vergonhosas da minha vida foi ficar sentado no gabinete daquele senhor (refere-se a Cineas Santos) e ele me ensinando a fazer teatro. E eu ali, paralisado. Gente, eu tenho 30 anos de profissão! O que eu posso dizer pra cidade é: – eu estou cagando pra Teresina. Ca-gan-do! Eu sou mesmo magoado, rancoroso, gostaria de ser uma pessoa melhor, mas… Por exemplo: eu achei linda a capa de vocês, mas achei a matéria péssima, achei as pessoas vitimizadas, esse monte de artista pedindo dinheiro. A gente sabe que governo não tá dando apoio, não tem programa que estimule o espectador ou a criação de novos talentos, mas achei os depoimentos vitimizados, achei a cara de Teresina: “ah,eu não tenho dinheiro, ninguém faz nada por mim, Teresina já foi boa na época que eu ia pro festival de Joinvile” (fala imitando vozes). Festival de Joinville, gente? Aquilo é um dos maiores equívocos, é extremamente comercial! Pode ser o maior em número de alunos de academia, em estudantes de balé clássico, mas nós estamos aonde? Na França?
André – Você tem acompanhado os artistas e o que está sendo produzindo atualmente em Teresina?
ME – Eu acho que o Harém fez agora uma peça muito boa (Abrigo São Loucas), justamente porque é simples. Então eu tô achando que é bom o Pellé e o Ari (Arimatan Martins, do Grupo Harém de Teatro) não terem dinheiro, sabe? Porque aí as pessoas têm que inventar, dar um jeito. O que eu acho péssimo é o discurso de que Teresina já foi e não é mais, de que estamos abandonados. Porque eu não acho que e é assim. Tem uma moçada nova produzindo. E eu queria saber: o que esses artistas que reclamam tanto estão propondo? Eles só precisam de dinheiro? A gente precisa de dinheiro também, mas precisa de um pouco de inteligência e vergonha na cara. Artista é pra trabalhar, pra ter um compromisso com a sociedade, não é pra ficar dando entrevista, “ah, ninguém cuida de mim”. Na Fundac tem uma fila de gente pedindo 200 reais. Eu tenho vergonha disso. Nós não precisamos falar de preferência política, mas precisamos falar de sermos mais políticos no sentido da ação.
Eugênio – A palavra hermético é muitas vezes associada a seu trabalho. Você se considera incompreendido pelo público e imprensa local?
ME – Eu acho que é clara uma fricção. Quando eu vim para o Dirceu eu sabia que era tudo novo. Eu queria propor arte contemporânea, discussão, uma idéia de descentralização de poder. Eu dizia “eu quero trabalhar a autoestima das pessoas” e não fazer o social, do jeito que se entende tradicionalmente. Então eu sabia de uma fricção. E acho que a arte vive disso. E, sem modéstia, nosso trabalho tem uma relação com a pós-modernização dessa cidade, uma instância de se trocar, se abrir mais. Mas eu ainda fico querendo ver mais coisas acontecendo e vejo pouco. Não me venha com sarauzinho recitando poesiazinha de piauiense e dizendo que tenho que comprar livro. Eu compro o livro de piauiense que eu quiser, porque acho que piauiense é igual a escandinavo, a holandês, a irlandês. Quem é bom, é. E eu tenho que ter direito de ler quem eu quiser. Quer que eu leia? Então faça um livro que eu fique louco para ler (arrasta a pronúncia nas últimas palavras).
André – O que você considera que a cidade perdeu quando rompeu com o teatro contemporâneo que você praticava?
ME – Essa é uma pergunta boa para se fazer à cidade. E eu gostaria muito que a cidade respondesse. Eu acho que não perdeu nada, porque Teresina é anestesiada, a cidade fica indiferente para o que acontece.
Liliane – Dar continuidade ao trabalho do Núcleo num galpão no próprio bairro é uma forma de dar uma resposta às pessoas que não acreditaram no trabalho que estava sendo feito?
ME – Não foi uma resposta, mas a continuação de um trabalho que tinha potência. Hoje eu tô deixando o Núcleo no ponto de caminhar com as próprias pernas, sem precisar de minha presença. Eu fico felicíssimo e considero isso uma vitória. Eu vim aqui pra isso. Não vim atrás de glória, sou muito mais famoso lá fora, aqui eu não sou nada. Um dia o Cláudio Barros (jornalista) disse que eu sou um visitante, e eu gostei disso, porque é como eu me sinto: eu sou um visitante indesejado. Quando precisam de mim pra fazer uma foto de coluna social, me chamam, pra “agregar valor”. Eu fui garoto propaganda da Prefeitura. Dava quatro entrevistas por semana em programinha de TV. Passei três anos abrindo a discussão, sendo simpático, trazendo artista de fora. Hoje, aqui, só trabalho para o Núcleo e sou muito feliz. Eu tenho viajado o mundo falando sobre o modelo de criação do Núcleo. Já ganhamos prêmio em Cuba, México, Argentina, porque é um modelo considerado sucessfull.
André – E por que você acha que esse modelo dá certo? O que ele tem de novo?
ME – Ele é desierarquizado, aberto à discussão, coloca nas pessoas o empoderamento, não se baseia no controle. O Núcleo tem um modelo de impacto político e social na arte, ele tira a arte de um lugar de estética, de divertimento, de coisas belas pra se digerir sentadinho, e a coloca num lugar de articulação política. No ano que saímos do Teatro, o Núcleo fez 17 festivais nacionais e internacionais. Em Berlim, apresentamos Bulldance, criado por mim, e mais três trabalhos de jovens criadores do Núcleo. Era eles dando entrevista coletiva com uma tradutora e eu chorando na platéia, entende? Uns meninos que jamais teriam condição de ir nem em Fortaleza estavam em Berlim, articulados! Esse ano vamos fazer Paris, Londres, Bruxelas, Estocolmo, Lisboa. No Núcleo eu não quero ser o professor e ver o outro num lugarzinho de estudante. Eu quero transformar isso aqui num lugar inútil, frágil e improdutivo. Improdutivo? Sim, porque o sistema capitalista tá todo baseado em produzir e eu acho que o artista tem que ser inútil, tem que achar o lugar da inutilidade. O Núcleo é festejado no mundo. O problema é que o Piauí não tem relação com o resto do mundo. Aqui é a terra do Cabeça de Cuia. Inclusive eu tô pesquisando o Cabeça de Cuia pra fazer um espetáculo sobre a maldade. Aqui existe um povo sofrido, que vive com a cabeça enterrada na lama, uma coisa tímida. Esse é o nosso protótipo. Pra mim o piauiense é o Cabeça de Cuia. Eu quero falar disso exatamente pra exorcizar o Cabeça de Cuia que existe em mim.
Liliane – Você não acha que o fato de ter passado tantos anos fora e ter voltado com uma bagagem diferente pode ter intimidado as pessoas, principalmente no seu meio artístico?
ME – Intimidou e ameaçou. Eu cheguei aqui perguntando: qual é o nosso lugar, a nossa arte, a nossa dança? A minha chegada trouxe uma fricção. E eu não sou uma pessoa boazinha, eu não tenho necessidade de ser querido. Eu não sou uma pessoa simpática, eu não tomo banho toda hora, que nem piauiense, porque aqui tem um negócio de “vou banhar”. Eu passo mesmo três dias sem banhar, não sou acostumado a isso. Eu não tô preocupado em ficar limpinho, eu tô preocupado em pensar, em produzir.
Samária– E quando faz uma avaliação sobre sua aceitação no mundo e um certo distanciamento que experimentou ou experimenta por aqui, já pensou se ousou demais?
ME – Eu não sei o que é “ousar demais”. Eu ousei sim. Sou artista e o lugar do artista é ousar. Mas eu tentei nunca ser irresponsável. Uma vez eu tive uma briga com um intelectual aí da cidade que me disse: “você é louco, fica botando as pessoas do subúrbio para ler Deleuze”. Como você pode subestimar as pessoas? Quem foi que disse que não pode Deleuze? Aqui, nessa mesa, se discute, por exemplo, Boaventura de Sousa Santos, sociólogo português que fala das linhas visíveis e invisíveis, linhas abissais, que é exatamente onde a gente vive: um lugar cheio de linhas invisíveis, um abismo imenso.
André – Sobre essas linhas invisíveis, que terminam por separar locais e pessoas, você acredita que elas têm relação com um certo receio de empoderamento das pessoas, que podem, assim, sair de um determinado local ou status para outro?
ME – Tradicionalmente o chamado primeiro mundo é o colonizador e nós somos os colonizados. Só que a Europa está realmente num momento decadente. E eu sei disso porque vivo e trabalho lá. Há uma decadência não só financeira, mas de ideias. O Brasil é o país do futuro, é dinâmico, incrível, está tendo a oportunidade de se colocar politicamente num lugar de destaque. Agora, o que Boaventura diz é que a gente continua usando a mentalidade de colonizado com que eles nos tratam, inclusive para tratar com eles. Na Europa está muito claro que a coisa tá invertendo, o Brasil tá virando uma potência, e eles tão perdendo o empoderamento, inclusive intelectual. Eles estão olhando pra gente! E a coisa mais dramática que pode acontecer é, nesse momento, a gente ficar acanhado, com essa autoestima baixa, sem conseguir enxergar o nosso empoderamento. A gente tá usufruindo de uma maneira de empoderamente que é deles, e que, portanto, continua a nos colocar no lugar de colonizados, que é uma instância que te aprisiona, te limita. Nós temos que passar para o lado de lá e tentar atuar do lado de lá, mas à nossa maneira. Eu tenho muita confiança no Brasil. Eu sou holandês, mas eu digo: a Holanda acabou, gente! Faz pena. E a gente aqui cheio de coisas pra fazer e as pessoas reclamando que não tem 200 reais. Ah, vá trabalhar, vá propor coisas, vá se empoderar e empodere os outros! Vire outro!
André – Sobre o lugar do Brasil e o da Europa nessa possível nova configuração mundial: você acha que a crise europeia é eminentemente econômica ou também de esgotamento criativo?
ME – São as duas coisas. A Europa criou todas as leis que nos possibilitaram organizar e entender o mundo e entender o outro. Acho que agora eles se veem nesse momento onde talvez não sejam mais o centro e nós não somos os bons selvagens. Isso ocasiona uma crise de estratégias, de produção criativa, porque a arte é uma malha dinâmica que se articula com processos políticos e humanos. É claro que a crise econômica tem um lugar, mas acho até que a crise econômica é ocasionada, em parte, por essa estagnação de não compreender o que está acontecendo. A Holanda tá fechando teatros importantes, projetos estão sendo abandonados e isso é uma coisa mais comum no Brasil. Eles colocam como crise econômica, mas sabem que é gerada por esta estagnação de não conseguir mais manter um pensamento de mundo onde são o centro e nós a periferia. E talvez eles ainda sejam o centro, mas a periferia começou a ficar tão dinâmica que eles não têm como lidar com isso. Eles também têm uma perspectiva da perfeição que pode limitar. O holandês não sabe o que fazer sem dinheiro, sem a legitimação de um espaço. Nós sabemos. Temos milhões de falhas, mas estamos fazendo as coisas.
Samária – E nesses novos mercados econômicos e culturais, de uma maneira geral, como você avalia que as pessoas estão se colocando?
ME – Hoje temos acesso a muita informação. Convivemos com os 15 minutos de fama de Andy Warhol e também um pouco com a sociedade do espetáculo de Guy Debord. A gente vive momentos de espetacularização. Hoje as pessoas têm uma capacidade grande de se colocar, de falar “esse é o meu trabalho”. Anos atrás a gente não falava isso, a gente só aprendia. Até na arte era assim: você tinha que aprender um jeito de fazer que lhe ensinavam. Hoje as coisas mudaram muito. O problema é que hoje todo mundo é artista, todo mundo tem projeto, tem perfil no face, todo mundo é interessante, posta foto. Adoro! Me divirto, “like” em “tudim” (risos). Mas eu quero ver o tutano. É claro que a internet é um sucesso e a gente vive num mundo muito mais bacana. Teresina, na minha adolescência, era um trem fantasma: cada esquina, um grito, porque você via uma pessoa feia. Hoje as pessoas estão bonitas. Tem muita gente fazendo coisa linda, mas tem também muito a necessidade dos 15 minutos de fama.
André – Você acredita na arte como um caminho pra se chegar a um lugar melhor?
ME – Acredito muito. A gente fala muito de educação no Brasil e é importante que se fale também na arte como a possibilidade de educar o sensível, a arte como algo que pode te empoderar, desenvolver uma autonomia. Temos que tentar entender a arte não só como objeto de arte – o quadro, o espetáculo, o concerto, o livro – mas arte como uma maneira de pensar, de existir.
Eugênio – Você disse certa vez que não faz dança para digerir o jantar. Que dança fazemos hoje no Piauí?
ME – Não fazemos. O Datan Izaká tá na frente da Escola de Dança do Piauí, tem 1.200 alunos e a maior boa vontade de transformar isso num outro lugar. E até tá conseguindo. Mas eu acho que a gente ainda vive aqui idéias de modernidade ao invés de estar na pós-modernidade. Ainda estamos aquém, e isso me dá uma agonia, porque acho que a gente tem condição de fazer mais. Vamos discutir dança, saber que dança estamos fazendo, qual é a representatividade do Piauí? Eu tô super curioso que você, Eugênio, me responda, que dança é essa? Porque eu devo tá perdendo alguma coisa, pois o que eu vejo é muito pouco. Desculpa, mas a dança que a gente tem no Piauí é a que o Núcleo tá mostrando lá fora. Aqui só lotam os balés de fim de ano porque as mães vão pra fotografar seus filhos. É essa a idéia de lotar o teatro pra ver dança? Eu recebi um convite do espetáculo de aniversário do Balé da Cidade e o convite dizia: “venha comemorar conosco esse momento histórico”. Que momento histórico, gente? O Balé da Cidade fazendo 20 anos?! E a imprensa repete isso, sem questionar, ninguém discute dança aqui na cidade. Vamos perguntar qual é a produção do Balé da Cidade. Você mesmo, Eugênio, que é uma pessoa que vem da dança, o que você tá escrevendo sobre dança? Você é sensível, escreve bem, por que não escreve sobre dança? Por que não vem ver o nosso trabalho?
Eugênio – Por falar em ver o trabalho do Núcleo, os espetáculos que você levava ao João Paulo II e mesmo agora, no Núcleo, não costumam atrair muito público. Por quê?
ME – A linguagem contemporânea não é uma linguagem fácil em nenhum lugar. São Paulo é uma cidade que tem 18 milhões de habitantes e você vê 15, 20 pessoas na plateia de um espetáculo. Em Amsterdã você vê 15, 20 pessoas. Mas eu questiono muito a ideia de multidão. Arte no Piauí com casa lotada ou é espetáculo com artista da Globo ou dos humoristas. E com todo o respeito pelo trabalho que os humoristas fazem, eu mesmo vou e morro de rir, mas é tudo muito parecido. Eu vivo uma idéia de arte como lugar de fricção, de ruptura, instabilidade, não de conforto. Eu odeio esse termo “eu vou lhe prestigiar”. Eu não preciso de ninguém me prestigiando, e eu detesto quem prestigia a arte. Arte não é pra ser prestigiada, é pra mexer, é pra entrar pelo seu buraco de baixo e deixar você em polvorosa. Eu tenho uma relação no meu trabalho bem ligada ao espectador. Nos nossos espetáculos o espectador está junto, próximo dos artistas. É muito lindo você ver o público se movimentar, perceber como eles estão vestidos, como ficam com medo, acanhados, como entram na coisa, se sentem motivadas. Pra mim esse é o interesse pelo público. Radical?! Eu tenho 51 anos, já fiz um monte de coisas, já ganhei prêmio, já provei que sei fazer coreografia. Eu tô mais interessado em falar próximo ao público do que em ter público.
Luana – Eu vim ver Mil casas (espetáculo do Núcleo) e observei uma senhorinha, mas não tive certeza se ela estava entendendo. Ela ria das pessoas peladas. Você diz que se preocupa com o espectador. E no caso dos moradores do Dirceu, você se preocupa que eles entendam a proposta?
ME – Aqui ou em qualquer lugar, pra mim, a necessidade não é que as pessoas “entendam” (arrasta a palavra). Porque eu acho que a dança propõe um entendimento que é muito mais sensorial. Eu tô mais interessado que as pessoas sintam do que entendam. Eu tento até subverter essa idéia de entender. Prefiro que as pessoas não entendam e vão pra casa meio agoniadas. Agora, o que cada um entende é o que é. É mais importante a leitura que cada um pode fazer do que querer saber exatamente o que aquela pessoa entendeu. Isso aqui não é um exame de sangue que deve ter uma interpretação correta. É arte! Eu não vou ficar explicando nada pra ninguém, o que eu proponho é um espaço pra experiência. Alguma resposta as pessoas devem encontrar e não sou eu quem deve dar essa resposta. A possibilidade de um lugar de negociação, o espaço que há para a percepção do outro, é extremamente potente na arte.
Liliane– A presença do nu é muito forte no trabalho que você desenvolve. Que mensagem você deseja passar com isso?
ME – Confesso que trabalhar com o corpo nu veio até com certa relutância, mas depois eu gostei da ideia de focar no corpo, aquela superfície que se apresenta ali, desmascarada, frágil. Trabalhar o nu foi trazer o foco para o corpo de maneira aberta e transparente. Eu gosto da ideia de que mostrar o corpo é o figurino mais eficaz, coerente e preciso. O corpo é o lugar onde acaba o medo do outro, e nós temos muito medo do outro. Quando você cola o seu corpo em outro, até não ter mais espaço, esse é o lugar do não-medo. Eu quero vencer os meus medos do outro e quero que o outro vença o medo de mim, porque eu sou uma pessoa que as pessoas têm medo. Eu entendo e respeito. Mas fico um pouco triste. Existe ao mesmo tempo uma mitificação, “ah, o Marcelo Evelin!”, e também algo como “ele é muito doido, não vou mexer com ele porque ele me dá uma lapada”. E pode acontecer isso mesmo. Eu me sinto meio persona non grata, meio monstro, meio sacralizado, mas que ninguém quer por perto, sabe? Quando precisam, me usam, mas depois sou jogado num lugar qualquer. Eu sou o Cabeça de Cuia – ninguém gosta, mas é nosso emblema, entende?
André – Você se manifesta com paixão pela dança, pelo corpo, pelo movimento. Aos 51 anos você pensa sobre a possibilidade do seu próprio corpo responder ou não ao que você busca como instrumento de trabalho ou manifestação artística?
ME – Eu penso nisso todo dia. Eu tô um pouco mais velho, minha perna sobe menos, eu piruetava mais, mas eu tô mais tranquilo, tenho uma relação mais apurada com o espaço. Então você ganha e perde. Digo que vou continuar dançando até morrer.
Luana – E o que o corpo significa pra você?
ME – O corpo é o lugar da potência, do devir, do ser, do existir. Quando se fala de corpo tem uma validação estética, tem a questão do corpo bonito, corpo velho, gordo, corpo gay. Há um julgamento sobre “corpo bom ou não”. Eu prefiro pensar o corpo como nossa instância de existência, nossa bandeira política, é com o corpo que defendemos nossos filhos, o que nós comemos, nosso país, nossa sexualidade, nosso amor. É a única coisa que a gente tem de fato.
Samária – Você usa muitas referências regionais: o boi, matadouro, trouxas de roupa, o Cabeça de Cuia. Por outro lado começou esta entrevista dizendo que não é mais piauiense. Há uma contradição nisso?
ME – Sim, é totalmente paradoxal. E eu considero as situações paradoxais as mais potentes. Unanimidade pra mim é medo. E o louco é que ainda teve gente que chegou pra mim e falou pra eu usar a tradição, que o que eu faço é muito holandês. Eu fui a primeira pessoa que valorizou a rabeca, sempre fiz o Boi. Agora, o que não faço é vangloriar, nem colocar em um lugar separado. A separação é uma maneira de se menosprezar, de se sentir inferior. “Ah, eu sou preto, vou fazer coisa só pra preto. Sou piauiense, vou fazer coisa só pra piauiense. Sou gay e vou fazer coisas só pra gay”. Não, eu quero é entrar lá no Coco-Bambu (restaurante) com meu namorado e me beijar. Eu passei a vida todinha aguentando hétero na minha frente. Agora eu só vou em casamento de homossexual (risos). É claro que você não pode ser heterofóbico, mas quase tem que ser pra ver se as pessoas entendem a homofobia. Tem gente que pensa que homofobia é matar viado, mas é também pedir “não faça na frente”. Teresina tem muito viado! Um amigo meu diz que se um viado chega suado e joga a camisa no canto, nascem quatro novos viados. Essa é uma “tirada” ótima! No Piauí tem muita gente espirituosa, com humor, inteligência, jogo de cintura. Isso é ótimo! Quando eu digo “não sou mais piauiense”, há uma provocação nisso, até política e artística, mesmo porque sempre vai existir uma certidão de nascimento que me diz que nasci no Piauí, né?
Samária – Há um pensamento que diz que as pessoas são incendiárias até os 30 anos e depois dos 30 viram bombeiro. Com você não acontece assim?
ME – (Evelin dá um riso demorado e o mais relaxado desde o início da entrevista)- Acho que continuo incendiário. Continuo querendo explodir, friccionar, gerar faísca, mesmo que, de alguma maneira, ameace algumas estruturas e pessoas. É por aí: a arte é muito mais incendiária e formuladora de perguntas que de respostas. A arte é um termômetro da sociedade e da condição humana.
***
MIL VEZES ESTRANHAMENTO
O projeto Mil Casas, desenvolvido pelo Núcleo do Dirceu com patrocínio da Petrobrás, visitou mil residências de moradores do Bairro Dirceu Arcoverde. Os integrantes do Núcleo faziam abordagens, em geral espontâneas, muitas promovidas “de assalto” – como Marcelo Evelin conta no livro Dirceu – mil casas, que relata a experiência através de fotografias curiosas.
Eles se apresentavam sob olhares atentos de de estranhamento, invertendo a situação público x privado, e criando um teatro a domicílio, quase sem distinção entre plateia e espectador. Alguns moradores se negavam a participar. Outros aceitavam o desafio. “As pessoas são poderosas dentro de suas casas, avalia Evelin.
Com humor, o coreógrafo reproduz um dos prováveis diálogos que se repetiram quase mil vezes, quando o grupo abordava os moradores.
Núcleo: Nós queremos entrar pra fazer uma performance pra vocês.
Morador: Não, meu filho, eu não tenho dinheiro, não.
Núcleo: Não precisa pagar. Nós já somos pagos.
Morador: Vocês? Pagos? Pra se apresentar aqui em casa? E quem paga vocês?
Núcleo: A Petrobrás.
Morador: A Petrobrás?! Paga pra vocês dançarem aqui em casa? Tá bom que eu acredito!…
(Entrevista publicada na Revestrés#08, em junho de 2013)
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