(Participaram desta entrevista: Samária Andrade, André Gonçalves, Wellington Soares, Maurício Pokemon e Wanderson Lima)

“Professor Cineas, quando ministra aulas, o senhor chega a ser quase humano”. O bilhetinho anônimo endereçado ao professor, longe de lhe ofender, o envaideceu: “foi o maior elogio que me fizeram até hoje”- conclui. E justifica: “ninguém se torna humano pelo simples fato de nascer com jeito de gente. O processo de humanização é um longo e doloroso aprendizado, que requer paciência, desprendimento e humildade”.

Essa historinha real está em uma das crônicas do livro “Cacos de Mim”, um dos tantos que Cineas Santos publicou. Os títulos vão de crônicas (a maioria publicada em jornais de Teresina), poemas, contos até livros infantis ricamente ilustrados e adotados em escolas por todo o Brasil. “O menino que descobriu as palavras”, com textos de Cineas e ilustrações de Gabriel Archanjo, já vendeu mais de 70 mil exemplares. Um best seller! Ainda assim ele reclama de ser pouco lido no Piauí: “o autor que não é lido na sua aldeia vai ser lido onde?”; ainda que tenha dedicado toda a sua vida a Teresina: “Sou um pouco dono dessa porra aqui!”.

O menino nascido na localidade Campo Formoso, interior de Caracol (cidade próxima a São Raimundo Nonato e a 608 quilômetros da capital do Piauí, Teresina), diz que nasceu no cotovelo do mundo, longe de quase tudo, local com pouca água e muita carência. Foram parar nesse canto do mundo por escolha do pai, seu Liberato, que segundo Cineas, tinha vocação para pedra. Já Dona Purcina, sua mãe, “espritada, ambiciosa”, tratou de animar o local e levou vários parentes e conhecidos. Em pouco tempo era uma comunidade.

Foi lá, ouvindo a tia ler folhetos de cordel nas madrugadas ao redor da fogueira, entre uma história e outra de assombração, que o menino Cineas das Chagas Santos, terceiro de quatro filhos, decidiu o que queria fazer na vida: nem conhecia poesia, mas queria viver para escrever.

Aos 12 anos, aprendendo com familiares a ler, escrever e fazer conta, foi mandado a São Raimundo Nonato para estudar. De lá, aos 17, a mãe o despachou para Teresina em cima de um caminhão carregado de feijão. “Vá e só volte formado”, lembra Cineas. “Como ela só falava no imperativo, só me restou obedecer”.

Não houve nenhuma atividade cultural expressiva, a partir de 69, que eu não tenha participado – eu me sinto um pouco dono dessa porra aqui!

Em Teresina, Cineas formou-se advogado, casou e tem um único filho. Tudo o que ele faz está relacionado às letras e às artes. Tornou-se um dos professores de português e literatura mais conhecidos e respeitados na cidade. Teve livraria e foi editor de livros: “lancei todos os autores piauienses”- orgulha-se. Inquieto, também reuniu amigos e fez jornais – de poéticos a satíricos. Agitador cultural, é criador de projetos como “A Cara Alegre do Piauí”, que leva ações culturais a cidades do interior do estado, e também já foi presidente da Fundação Cultural de Teresina, órgão de cultura da Prefeitura municipal. Em 2016, junto com amigos professores, realizou a décima quarta edição do Salão do Livro do Piauí – Salipi. Ele ainda comanda um programa de televisão semanal na TV Cidade Verde, onde fala de literatura, música, artes, e fundou um espaço que batizou de “Oficina da Palavra”, onde ministra cursos e faz saraus literários.

É lá, no seu QG da Oficina da Palavra, que nos recebe numa tarde quente regada a cajuína e muitas histórias. Cineas não tem papas na língua. Fala com franqueza, usa palavrões, repete as frases que deseja enfatizar, corta as perguntas na ânsia de encontrar as respostas e tem sempre alguma situação curiosa que ajuda a ilustrar o que diz.

Quando reclama que é pouco valorizado como escritor no Piauí, ele saca um livro da estante, uma edição bonita da Editora Ática chamada Tudo é linguagem. O livro traz um caderno especial com grandes escritores e artistas brasileiros. Cineas vai passando as páginas e mostrando: “Tem Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade, Patativa do Assaré, Graciliano Ramos, Ziraldo, Milton Nascimento, Tarsila do Amaral, Cândido Portinari, Cora Coralina, Manoel de Barros, e ó quem tá lá?”. Faz suspense, vira a página e revela sua foto e perfil. “Eu nem teria tantas razões para tá chiando, porque nenhum autor piauiense conseguiu isso aqui”.

E continua contando suas histórias. Diz que depois que o livro Tudo é linguagem foi adotada em escolas de Teresina, uma garotada descobriu Cineas entre os grandes e passou a fazer romaria para lhe visitar. “Eu achei uma babaquice provinciana. Depois pensei: não é!  Porque o menino não se vê representado na história, na geografia, nas artes, então quando abre o livro e me vê, diz:  nós estamos lá!”.

O escritor ainda conta que em São Paulo, na escola onde estuda a neta de seu irmão, o mesmo livro volta a render história. A garota teria dito à professora que aquele escritor do livro era seu tio e vivia no Piauí. A professora disse que a aluna devia estar enganada. No dia seguinte, Nanô, irmão de Cineas  – segundo este, a sua cara, mas um pouco mais bruto – foi até a escola provar que a neta não mentira.

A Oficina da Palavra de Cineas tem quase tantas obras de arte quanto livros. As peças são todas de artistas piauienses, que ele exibe feliz. Um quadro grande de Amaral ocupa boa parte da parede. Cineas conta que o artista o fez para doar a um órgão do estado, mas o gestor recusou argumentando que a peça era grande demais. Desconsolado, Amaral iria jogá-la fora. A obra foi salva pelo professor, que arrumou parede em frente à sua mesa.

Todas essas histórias e as muitas opiniões de Cineas saem em velocidade rápida, entre seu cérebro e a voz. Ele escreve bonito e fala muito, mas foi quase mudo até os dois anos de idade, quando uma tia apareceu com a solução: deu água no chocalho ao menino. Ele desandou a falar e houve quem dissesse: “vai ser político”. Dona Purcina, mais pragmática, foi taxativa: “quando muito chegará a camelô”. Hoje, entre tantas atividades que faz, prefere ser chamado de “professor”, e diz que tem sido camelô da boa literatura produzida pelos outros.

Nas páginas de Revestrés, a franqueza de um homem que se diz com cabeça de camponês e que confessa: não queria viver nem mais um dia, caso não houvesse arte em sua vida. “Escreve aí que sou um grosso extremamente sofisticado”.

Samária – Alguns temas transversais hoje impõem sua presença na escola, como orientação sexual, racismo, gênero. Você acha que a escola está preparada para lidar com esses temas?

Cineas Santos – A escola precisa lidar com os temas transversais há muito tempo, como ecologia e ética, por exemplo. A escola e o professor competente podem ajudar a formar pessoas e um mundo melhor. O problema é que muitas vezes o professor mal dá conta de sua disciplina. As limitações são enormes, a começar pela formação desse professor, que é deficitária. O professor não está lendo absolutamente nada – porque a formação é precária, o livro é caro, esse professor raramente vem de uma família de leitores, como eu, que nasci num lugar onde não havia um livro, uma escola, nada! Aprendi a ler aos trancos e barrancos, na minha família não havia nenhum leitor (repete a última frase três vezes, aumentando a ênfase).

Samária – A proposta de lei batizada de “Escola sem partido” quer inibir a discussão de alguns temas pelos professores em sala de aula, em defesa de um suposto “pluralismo”. O que você pensa sobre isso?

CS – Evidentemente isso é uma tentativa da direita. Ao contrário do que alguns dizem – que não há mais direita e esquerda – hoje tem muito mais direita do que se possa imaginar e ela quer neutralizar algumas tendências e discussões que considera de esquerda, como o estudo da história africana e dos oprimidos. Nós sempre estudamos o opressor. Um exemplo disso, em Teresina, era o belo grupo escolar que fazia homenagem a Domingos Jorge Velho (bandeirante português que comandou a destruição do Quilombo dos Palmares e a extinção de índios no Piauí) – um facínora, matador de índios. A roda da história virou e o prédio passou a se chamar Zumbi dos Palmares (último líder do Quilombo dos Palmares). Estudar o oprimido incomoda muito alguns setores da sociedade brasileira que acham que a escola é para preparar apenas tecnicamente o aluno, como se esse aluno não fosse ter uma vida fora da escola, não fosse ser cidadão. Dentro da minha sala de aula eu sempre falei o que quis, como quis. Despolitizar a sala de aula é uma estratégia para calar o professor e nos transformar em simples instrutores.

Wellington – Os índices do Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) e do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) colocaram o Piauí e Teresina numa boa posição entre as escolas nacionais. Conhecendo a rede pública e privada e a situação do Piauí, você diria que podemos comemorar esses índices?

CS – Eu tenho uma desconfiança danada de estatística. Tem uma história que acho ótima: o cara tinha uma perna mais curta e se queixava. Um dia um estatístico disse: você não tem uma perna mais curta, tem uma mais longa. Isso imediatamente fez com que autoestima do cidadão fosse lá pra cima! Então depende muito de como você interpreta um dado. Temos sérios problemas com redação, com leitura de texto e com interpretação. Acho bom que o Piauí esteja melhorando, sei que há pessoas fazendo um trabalho sério, mas espero que isso tudo se traduza em algo mais efetivo. Ademais o Brasil ainda precisa dizer o que quer com a educação: quer formar pessoas para o mercado de trabalho, quer cientistas, doutores? A educação brasileira é uma espécie de laboratório, cada governo dá uma mexida e recomeça tudo a partir do zero. A falta de saber o que queremos com a educação e a descontinuidade têm prejuízos terríveis! Acho que o Governo Federal precisa dar maior ênfase à escola técnica. Não acredito em universidade para todo mundo, isso não existe em nenhum lugar do planeta. A vida acadêmica é pra quem tem inclinação e disposição.

Samária – Essa sua fala deve enfrentar objeções, uma vez que os países mais desenvolvidos investem no ensino superior e o Brasil, só recentemente, tem dedicado maior atenção a esse nível de escolaridade, com risco ainda de retroceder…

CS – Olha, eu acho que o Brasil tá investindo demais em formar doutores e esquecendo o ensino básico, e nós temos que cuidar do alicerce. Uma boa educação básica é fundamental para todos e não precisa todo mundo virar doutor. Essa história de ter muitos doutores dá status à instituição, mas não sei se isso é o essencial. Tenho muito o pé no chão e gostaria de ver o ensino básico funcionando bem nesse país. Na escola pública, fora exceções, isso ainda não acontece.

Welligton – A constituição prevê a obrigatoriedade do ensino da literatura do próprio estado na escola pública e privada. Isso muitas vezes não acontece ou acontece de forma precária. Como você avalia?

CS – Quando eu comecei a ensinar, em 1970, não se ensinava literatura piauiense porque nem havia livros de autores piauienses. Tudo o que se tinha era o livro “Caminheiros da sensibilidade”, que o escritor J. Miguel de Matos havia publicado – uma edição pequena, de capa bonita, cheia de elogios: o maior, o melhor! Eu pensava: como vamos estudar literatura sem livros? Chamei o Paulo Machado (poeta) e disse “organize uma coletânea com autores contemporâneos pra gente trabalhar em sala de aula”. Fizemos a “Ciranda”, com seis poetas, tudo mimeografado e capa colada com grude. Fez tanto sucesso que os 800 exemplares foram vendidos no dia do lançamento. No ano seguinte fizemos a coletânea “Ô de casa”, com contistas do Piauí. Eu comecei praticamente do zero, editando esse material para oferecer aos professores e alunos. Hoje você chega numa livraria e encontra 200 títulos de autores piauienses – bons, ruins, ordinários, maravilhosos – e você só não ver o livro de autor piauiense na sala de aula! (aumenta o tom de voz e dá ênfase ao que diz).

Wanderson – As literaturas locais devem ser estudadas como movimentos autônomos ou o crítico deve se esforçar para integrá-las umas às outras, de modo a oferecer um quadro amplo do que seria a “literatura brasileira”?

CS – Essa doença chamada “literatura piauiense” nunca existiu nem vai existir. O Piauí não está fora do universo. O fato de eu morar no Piauí não me impede de fazer uma literatura que atravesse fronteiras. O. G. Rego de Carvalho construiu a obra dele inteira em Teresina. A divisão em períodos, escolas, momentos, só serve para facilitar a vida do professor em sala de aula. A literatura do oriente, por exemplo, é atemporal. Não vejo a menor necessidade de esforço para enquadrar autores do Piauí em categoria qualquer que seja. Nós temos que fazer boa literatura. Escrever não é uma brincadeira, é um trabalho sério, doloroso. É bom lembrar que O.G. Rego ficou doido escrevendo e não renunciou a literatura até o final da vida. E eu vou enquadrar O.G. em que categoria? Querer atribuir um sotaque piauiense a um texto porque ele foi feito no Piauí é descabido. Não posso escrever me preocupando se sou realista, naturalista. Não há nada mais equivocado do que pessoas fazendo hoje uma poesia concreta de sétima categoria quando os próprios poetas concretos já desistiram disso. Sobrou o Augusto de Campos, mas nem ele tá mais fazendo aquelas graçolas e fica a periferia repetindo, macaqueando uma coisa que aconteceu em 1956 e querendo ser vanguarda.

Wellington – Muitos estados conseguem uma boa relação entre autores e público…

CS – O autor gaúcho não migra (arrasta a última palavra). Permanecem no Rio Grande do Sul: Quintana, Érico Veríssimo, Moacir Scliar, Luís Fernando Veríssimo, Antônio Assis Brasil, … porque lá existe uma política de compra de livros de autores gaúchos. Eles compram cem mil exemplares e adotam nas escolas. Sabe o que acontece? Os autores gaúchos vivem da literatura, produzem e vendem dentro do próprio estado! Quem vende livro no Piauí? Eu não vendo, vocês não vendem, Dobal não vendia. Aqui, quem vende alguma coisa é Assis Brasil, mas não temos autor nenhum sendo adotado nas escolas com regularidade

A fama de grosso me protege de figuras indesejáveis. Eu não agrido ninguém graciosamente, agora se você provocar, se prepare que a porrada vem.

Wellington – Você tem livros adotados em escolas fora do Piauí…

Cineas – Esse livrinho aqui já vendeu mais de 70 mil exemplares no Brasil (aponta o livro “O menino que descobriu as palavras”), é best seller e tá sendo adotado em várias escolas do Ceará. Nunca nenhuma Prefeitura do Piauí adotou esse livro. Um amigo meu, que tem filha numa escola que adota livro da Martha Medeiros, excelente cronista, pegou esse meu livro de crônicas (Dona Purcina: a matriarca dos loucos) e disse: “o teu livro é melhor do que o da Martha e é metade do preço”. Eu disse: pois vá dizer isso na escola e não pra mim! Contando isso eu não estou querendo me comparar a Martha Medeiros nem a ninguém, só quero dizer que o autor que não é lido nem na sua aldeia, vai ser lido onde? Se não somos lidos em Teresina, por que o estudante do Maranhão, do Rio Grande do Sul, iria ler nossos livros? Sabe o que acontece aqui? Você lança um livro e na noite de autógrafos vende 50 exemplares. Depois pode jogar no mato!

Samária – Como editor, você conhece estratégias pra driblar as vendas baixas? O que pode ser feito?

CS – Eu lancei uma coleçãozinha chamada “Contar” – linda de viver. Eram livrinhos com 48 páginas com autores piauienses: O.G. Rego de Carvalho, H. Dobal, Assis Brasil, Airton Sampaio, Paulo Machado, Fontes Ibiapina. Eu disse: esses livros vão ter o preço de uma coca-cola. Fiz lançamento com show, convidei escolas, distribui 100 coleções entre professores. Resultado? Nunca se adotou um livro desses na escola! O professor prefere trabalhar com o livro que já vem com perguntas e respostas, com os mesmos autores de sempre: as crônicas do Drummond, de Fernando Sabino – que são importantes, mas e nós, ficamos onde? A coleção “Contar” foi o maior encalhe da minha vida, não vendeu nada (arrasta a última palavra e repete a frase três vezes). Um dia, numa dessas copiadoras de livraria, vi um estudante fazendo xerox de um dos livrinhos e disse: “Meu filho, a xerox vai sair mais cara que o livro”. E dei o livrinho a ele.

Wanderson – O mapeamento da poesia brasileira do século XX levado a cabo pelo escritor piauiense Assis Brasil tomou por diretiva dividir as antologias por estado. Um dos argumentos do autor em defesa deste critério é que, segundo ele, “a literatura brasileira é feita em ‘guetos’ culturais estanques”. Gostaria que você comentasse a frase de Assis Brasil bem como a importância das antologias organizadas por ele.

CS – Assis Brasil fez um contrato com a editora e essa foi uma tentativa, até válida, de fazer com que o livro fosse adotado nas escolas. Não funcionou, infelizmente. Quanto ao critério adotado por Assis Brasil, quem faz antologia, tem que assumir os riscos do que está fazendo. Aquele trabalho foi bastante criticado e o critério que ele usou na escolha dos autores foi questionado. A antologia acabou atingindo só um número reduzido de leitores. Com o tamanho do Brasil, é quase impossível um autor ser conhecido no país inteiro. Você conta nos dedos: Cristovão Tezza, Milton Hatoun, talvez… Eu sou do ramo, vivo pesquisando e desconheço tanta gente maravilhosa que está produzindo! Então, de certa forma, o Brasil é isso mesmo: cheio de guetos. O único autor contemporâneo muito conhecido é Paulo Leminski, que fez sucesso depois de morto e a obra poética vendeu como banana em fim de feira.

Wanderson – A globalização estimula ou obsta a produção cultural local? É possível, e plausível, a defesa do “genuinamente” piauiense em detrimento do produto híbrido que emerge do contato entre o globalizado e o local?

CS – A globalização é um fenômeno irreversível e quem não entender isso, morreu. Eu penso que hoje, com as redes sociais, se você for um pouco esperto e fizer um trabalho bonito, pode alcançar um público grande, a exemplo de Jout Jout e outros autores que vieram para o Salipi e nasceram na internet. Tem um besta do Piauí, Whindersson (Nunes, humorista) que é seguido por mais de 13 milhões de pessoas. Meu irmão, Machado de Assis nunca teve esse público na vida! Woody Allen, aos 80 anos, acaba de descobrir Machado de Assis e ficou fascinado. Eu creio que a globalização pode ajudar os autores, pode tornar alguns celebridade, mesmo que isso dure só aqueles 15 minutos de fama que Andy Warhol falou.

André– Nesse cenário onde aparentemente todo mundo pode se lançar, o papel do editor ainda é relevante?

CS – Não é mais. Já as grandes editoras são importantes pela rede de distribuição que controlam. O Brasil é continental e as distâncias encarecem o livro. É caro distribuir, colocar com destaque na livraria, divulgar, ter um retorno disso. Muita gente diz “vou lançar meu livro na Bienal do Rio” e eu começo a rir. Se esse otário soubesse que não vai sentar nem mosca no livro dele! As bienais são feitas para promover determinados produtos. Eu já vi uma montanha de Paulo Coelho e vi pessoas com seu livrinho embaixo do braço, circulando, procurando plateia e não encontrando ninguém. O Ênio Silveira (editor) foi um midas, tocava o dedo em um poeta e ele acontecia, mas não vejo mais lugar para um Ênio Silveira, não creio mais na importância de um editor que seja determinante na carreira de um autor. Esses editores tinham respaldo na mídia e a mídia hoje não liga minimamente para o livro de ninguém. A única editora que consegue algum espaço na mídia hoje é a Companhia das Letras e por uma razão mercadológica: é uma empresa imensa, investe alto em autores premiados, força a capa e acaba chegando a um determinado fim.

Samária – Essa crítica feita às Bienais se aplica também aos Salões de Livro?

CS – Não! O salão é algo mais próximo, o leitor chega até o autor. Numa bienal você não chega perto de autor, minha filha! Ele aparece lá no palco, dá autógrafos de modo formal e desaparece. Nos Salões de Livro o autor conversa, troca figurinha, bebe cajuína, fala besteira, cria uma relação. Mas mesmo com os salões não está fácil você enfiar um produto na mídia.

Samária – E com tanta dificuldade, por que a gente ainda escreve?

CS – Tu bota aí uma resposta bonita: “Porque cantar parece com não morrer” (trecho da música Enquanto Engomo a Calça, dos compositores Climério Ferreira, piauiense, e Ednardo, cearense). Nós escrevemos por pura necessidade, porque temos a compulsão de fazê-lo. Quem gosta de escrever, não consegue se livrar desse vício. Borges tem uma frase linda: “aos 14 anos contrai o vício da poesia e nunca mais me livrei dele”. Manoel de Barros, que virou unanimidade nacional, ao contrário do que se pode pensar, tinha uma sólida formação cultural, morou nos Estados Unidos, sabia inglês, era peão rodado. Como ele fazia um livro? Vendia 10 vacas e publicava. Ninguém falava nem mal. Passava um tempo, vendia mais vacas, publicava. E nada. Até que o Millôr Fernandes leu um livro dele e disse: “o poeta é Manoel de Barros”. No dia seguinte todo mundo queria saber quem era Manoel de Barros. Sem Millôr, ele não teria chegado a lugar nenhum. Agora, é preciso que se diga, Millôr não fez propaganda enganosa: ele falou de um autor que se segurava em pé.

Nós escrevemos por pura necessidade, porque temos a compulsão de fazê-lo. Quem gosta de escrever, não consegue se livrar desse vício.

Samária – Você nasceu no interior do Piauí. Até onde isso influencia no seu modo de pensar e no que você escreve?

CS – Em tudo! Eu nasci num lugar áspero. Sempre que ouço a música Partido Alto, do Chico Buarque: “Deus é um cara gozador, adora brincadeira, pois pra me botar no mundo, tinha o mundo inteiro”… – eu penso que é comigo. Nasci no sertão do Caracol, onde não havia água nenhuma, meu pai fez um barreiro e nós dependíamos da enxurrada pra encher esse barreiro. Sabíamos o valor da água pois, a partir de maio, o banho era uma vez por semana, era um luxo! A gente passava o tempo com um olho no chão e outro no céu, procurando chuva. Isso me marcou a ponto de eu acordar a noite e não dormir mais, só pra ficar ouvindo o barulho da chuva. Não tínhamos nenhum livro. Minha mãe estudou quatro meses, meu pai estudou três. Eles sabiam ler, escrever e contar. Entrei na escola aos 12 anos, em São Raimundo Nonato, e não havia biblioteca, merenda, água no banheiro –  como eu posso me desvincular disso, minha filha? (arrasta a pergunta). Meu modo de pensar, de ver o mundo é de camponês, e o fato de eu ler e compreender algumas coisas do universo não me tiram essa cabeça de camponês. Eu me comporto como, falo como camponês. Eu digo abancar-se no lugar de sentar-se, carecer no lugar de precisar, prosear no lugar de conversar. Sou a única pessoa do mundo que não suporta viajar. Todo mundo diz “eu adoro viajar”, eu digo “eu sonho em ficar”. Sei o que significa não ter comida. Nós éramos tão pobres – e nós não éramos os pobres do lugar – que guardávamos o tição acesso porque podia não ter fósforo no dia seguinte. Fósforo! Faltava sal! (exalta-se). Uma coisa é você conhecer o pobre da Rachel de Queiroz, na literatura, outra coisa é você ver uma criança morrer de fome (faz-se a única pausa da entrevista).

Wellington – Você chegou em Teresina em 1965, aos 17 anos de idade. Que relação avalia que conseguiu estabelecer com a cidade?

CS – Quando eu cheguei a cidade era tão pobre que banheiro dentro de casa era coisa de rico. Água e energia elétrica eram precários. As lavadeiras lavavam roupas no rio Parnaíba e estendiam no cais cimentado, formando uma aquarela belíssima! O que havia de bom? O sossego. Você atravessava a cidade de ponta a ponta sem ser incomodado, os meninos iam pra escola sem ninguém levar, até os ladrões eram conhecidos. Mas eu não sou saudosista nem besta pra ficar “como Teresina era lúdica e romântica”. Era pobre mesmo, a periferia era dolorosa, as pessoas brigavam por coisas mínimas, cozinhavam em fogareiro. De alguma forma eu participei de toda a caminhada dessa cidade, não houve nenhuma atividade cultural expressiva, a partir de 69, que eu não tenha participado. Editei todos os autores do Piauí, editei o primeiro jornal alternativo, a primeira revista de humor – eu me sinto um pouco dono dessa porra aqui, donatário dessa bosta! Se isso é uma coisa pretensiosa? Eu não queria, mas não tem como, tudo o que você falar sobre essa cidade, eu tô no meio.

Wellington – Você é o autor do Hino de Teresina, né? Como foi que isso aconteceu?

CS – Essa cidade passou 145 anos sem hino! Vocês conhecem algum caso no Brasil e no mundo de uma cidade passar tanto tempo sem hino? Quando se cria um município, cria-se logo a bandeira, o brasão e o hino. Você pode dizer: isso não impediu a cidade de crescer. Mas levou a autoestima pra sola do pé! E autoestima é coisa séria. Na escola mais famosa de Teresina já se adotou um livro de Geografia que não tinha o Piauí no mapa! Que o cara não se veja na história é uma desgraça; na literatura, outra desgraça; mas se ele não está na geografia, não está em lugar nenhum! O homem é o único animal que constrói símbolos, morre e mata pelos símbolos. Então venho eu, do sertão do Caracol, e o Erisvaldo Borges, do sertão de Picos, pra fazer o hino de Teresina. A prefeitura abriu um concurso e se inscreveram 16 compositores (Gestão do Prefeito Francisco Gerardo, 1995-1996). O Erisvaldo disse: “vou me inscrever e queria que você fizesse a letra”. Eu não queria saber de porra de hino, o único hino que eu cantava era o do Flamengo. A Maristela Gruber (cantora) insistiu e eu fui pensar na letra dos hinos: “ou ficar a pátria livre ou morrer pelo Brasil”, “o primeiro que luta é o Piauí”, e fiquei num dilema: o que vou colocar no hino de Teresina? Eu lembrava de duas referências: “todos cantam sua terra, também vou cantar a minha”, de Casimiro de Abreu, e “verde que te quero verde”, de Federico García Lorca – eram meus fiapos de inspiração. E trabalhei com alguns elementos: o povo da cidade, sol, verde, rios. E assim nasceu o hino. Como não me sentir donatário dessa aldeia?

André– Você fala que carrega a aspereza do homem do sertão, mas é cercado por arte, envolvido em vários movimentos culturais, incentivador e divulgador de artistas em várias áreas – música, artes plásticas, literatura. O que a arte pode fazer pelas pessoas?

CS – Nascer é uma contingência, ninguém pede pra nascer em lugar nenhum. Agora sua visão de mundo deve ser uma busca constante. Florestan Fernandes aprendeu a ler adolescente e foi um dos mais brilhantes sociólogos desse país! Eu sempre me interessei por arte, desde que ouvia os cordéis, lá em Caracol, e nem sabia o que era poesia. Se me tirassem a cultura e a arte, eu não queria viver mais um dia. O mundo é essa invenção nossa, a gente sempre tem que estar recriando essa coisa todo dia. Eu sempre fui muito ligado aos artistas plásticos e eles a mim.  Aqui tem obra de todo mundo (abre os braços e aponta na sala quadros de Amaral, Gabriel Archanjo, Jota A, Fernando Costa). E tudo aqui foi comprado, claro, por uma questão de respeito para com o artista. Se ninguém compra, qual a motivação que o cara vai ter pra continuar fazendo essas maravilhas? Nós ajudamos uns aos outros. Se eu não comprar e eles não retribuírem, nós estamos fodidos.

Wellington– Você acha que nossos políticos respeitam nossos artistas?

CS – O livro “Sangue”, de Da Costa e Silva, levou 99 anos pra chegar ao Piauí e chegou editado por mim, em 1982. A praça que leva o nome dele está abandonada. A obra do Carlos Martins (artista plástico que trabalhava grandes esculturas em ferro) tá apodrecendo a olhos vistos em Teresina, como no centro de Artesanato, no Acarape e no balão da Universidade – fui eu que doei aquela porra pra cidade. Torquato Neto e Mário Faustino não têm um memorial. Então os gestores públicos não têm respeito algum por artista nenhum do Piauí (fala com ênfase e repete a frase). Não nos levam a sério porque acham que somos pessoas pouco práticas, pouco objetivas e inviáveis do ponto de vista econômico. Põem o nome do Dobal numa ruela e o nome de Jânio da Silva Quadros numa avenida que corta a zona leste – um safado que deu origem a essa merda que estamos vivendo hoje.

André – Sobre a arte e o momento atual de crise política no Brasil, parece que mais uma vez os artistas estão resistindo e atraindo a atenção de outras pessoas. Qual o papel da arte nesse momento?

CS – Resistir! E os artistas mostram que não são omissos. Não estou vendo artista nenhum com Temer. Não votei em Dilma, mas jamais fiz uma piada infame e ninguém conte comigo para fazer campanha pelo golpe. Acho que os artistas estão assumindo um papel corajoso nesse momento e até temerário. Chico Buarque tá sendo execrado e Chico está para a nossa música como Cole Porter estava para a música americana. Como você pode tratar o Chico como um moleque, um puxa saco?! Os golpes nascem assim mesmo e esse veio travestido de legalidade, com a couraça de proteção do judiciário. Esse golpe vem sendo gestado pela mesma direita que está sempre se arrumando para se dar bem. Os artistas estão cumprindo seu papel, estão dizendo não nos rendemos

Samária – Tem uma fala de Michel Foucault onde ele diz que fica desconcertado ao perceber que o que muito interessa a ele, parece não interessar em absoluto a mais ninguém…

CS – Eu sofro disso! (repete, esticando a frase). Há quanto tempo falo das árvores de Teresina? Elas estão morrendo de parasitas e eu denuncio isso há 30 anos! Olhem as árvores da praça João Luís Ferreira, praça da Bandeira, praça Saraiva, Frei Serafim – elas precisam de cuidado! O B-r-o-bró não era tão severo anos atrás, hoje está insuportável e não se faz nada! Eu reclamo e ninguém me leva a sério! (fala com ênfase). Isso é muito ruim. E o pior: ainda levo fama de arrogante, grosso, implicante, chato, filho da puta. Podem perguntar isso, vocês passaram a entrevista querendo perguntar isso, eu respondo tudo (risos).

Samária – É verdade que essa fama lhe acompanha. Para finalizar: você tira proveito dela ou ela lhe incomoda?

CS – Não me incomoda. Primeiro: eu sou feio e a feiura faz com que as pessoas não se aproximem de mim com alegria no rabo; dois: eu não me esforço pra ser simpático; e três: eu falo o que quero, onde quero, na hora que quero e consequentemente pago o preço. Eu sou muito duro nas minhas funções, não faço salamaleque pra ninguém, e essa fama de grosso, de certa forma me protege de figuras indesejáveis. Eu não agrido ninguém graciosamente, agora se você provocar, se prepare que a porrada vem. Eu sofro de uma coisa chamada excesso de legítima defesa, que é quando você revida com maior força que a agressão. Às vezes sou extremamente áspero numa resposta e depois penso que não deveria ter carregado tanto nas tintas, mas sou professor há quase 50 anos e sempre tratei bem meus alunos, nunca entro num lugar sem pedir licença, nunca cumprimento uma pessoa sentado, sou bem humorado, quando recebo alguém no aeroporto, levo rosas. Escreve aí que sou um grosso extremamente sofisticado (risos). Isso pode ser o título. Sou legal, mas não provoca, porra, que a coisa pega!

Trecho do Hino de Teresina

Letra: Cineas Santos/ Música: Erisvaldo Borges

Risonha entre dois rios que te abraçam,
rebrilhas sob o sol do equador;
és terra promissora, onde se lançam
sementes de um porvir pleno de amor.

Do verde exuberante que te veste,
ao sol que doura a pele à tua gente,
refulges, cristalina, em chão agreste;
lírio orvalhado, resplandente.

“Verde que te quero verde!”
Verde que te quero glória,
ver-te que quero altiva
como um grito de vitória

(refrão)

Ela só falava no imperativo

Na crônica As errâncias do escriba Cineas conta como a mãe o despachou para estudar em Teresina. O texto faz parte do livro Dona Purcina, a matriarca dos loucos, que o escritor fez em homenagem à mãe, recuperando possíveis memórias desta, quando ela já estava “sequestrada pelo mal de Alzheimer”.

– Amanhã você vai para Teresina.

– Teresina?!

A pergunta justificava-se plenamente: os rapazes de minha aldeia migravam para São Paulo ou Brasília, onde corria dinheiro. Teresina era só um pontinho perdido no mapa do Piauí.

– Teresina, sim!

– Fazer o que em Teresina, mãe?

– Estudar.

– Estudar? Como?

– Estudando.

Enchi-me de coragem e disparei:

– Pra casa de político eu não vou!

– Vai mesmo não. Vai pra Casa do Estudante.

– Mãe, tem o concurso do Banco do Nordeste. Eu…

– Não lhe criei pra ser bancário!

Percebi claramente que argumentar seria perda de tempo: dona Purcina era feita de certezas. Anoiteceu em mim.

Conclui o curso ginasial em dezembro de 1964, um feito e tanto para alguém do meu estrato social. Minhas aspirações eram rasas, e a vida seguia o seu curso. Nada me fazia falta: eu tinha uma banca de camelô, que rendia o necessário para o básico. Tinha um campinho de futebol na porta de casa onde, todas as tardes, disputávamos uma copa do mundo. Tinha uma espingarda Boito, uma tarrafa de fio de algodão, dois caniços, um relógio Hernavim, uma namoradinha quase bonita…Não bastasse isso, o Banco do Nordeste resolvera abrir uma agência na cidade. As vagas eram muitas e os candidatos, poucos. Decidi lutar por uma delas com unhas e dentes. O salário era uma fortuna para os padrões da aldeia. Além disso, os bancários eram disputados a tapa pelas meninas bem-nascidas… O meu erro foi dar ciências dar ciência das minhas pretensões à matriarca. Naquela tarde de sábado, ao regressar da feira, já encontrei minhas roupas na mala de couro, emprestada do Paredão, meu melhor amigo.

-Neste envelope tem vinte cruzeiros; neste outro, uma carta de recomendação para o presidente da Casa do Estudante. Você vai no caminhão do Fabrício.

Dona Purcina falava com tanta segurança que parecia ter combinado tudo com o destino. Só me restava uma esperança: seu Liberato engrossar a voz e dizer não. Ao meu ver triste de desacorçoado, o velho aproximou-se de mim:

– Você vai pra Teresina?

– Sim, senhor.

– Vai estudar?

– Sim, senhor.

Calou-se, passou a mão na barba malfeita:

– Vá! Você não é doido.

Minha sorte estava selada. No dia seguinte, encarapitado num caminhão carregado de feijão, rumei para Teresina onde ninguém me esperava. Na manhã esplendente do dia 2 de maio de 65, fui literalmente despejado na Praça Saraiva. O mais não vem ao caso, que esta narrativa não me pertence: sou apenas o escrevinhador. Ainda assim, no limiar da senescência, depois de tantas errâncias, tenho a nítida sensação de que, sempre certeira, dona Purcina errou feio ao apostar em mim: perdeu tempo e dinheiro.

(Entrevista publicada na Revestrés#27 – Outubro/Novembro 2016)