(Participaram desta entrevista: André Gonçalves, Luana Sena, Maurício Pokemon, Wellington Soares e Samária Andrade,)
A eterna rainha do rádio não suportaria aquele insulto: os músicos de João Bosco se recusavam a acompanhá-la numa canção. Furiosa, Marlene foi tirar satisfações com o cantor e ouviu o que não esperava: “eles têm razão, estão aqui pra tocar comigo!”. Estava formada a confusão. Agora só o diretor do espetáculo poderia resolver tal constrangimento. Era início dos anos 1980 no Teatro Dulcina, Rio de Janeiro, e aquele era o último ensaio do show que apresentaria Marlene e João Bosco no Projeto Pixinguinha. Já não eram os tempos dourados do rádio e talvez isso explique a afronta a Marlene. Mas o diretor do espetáculo era o piauiense Benjamim Santos, que crescera ouvindo Marlene e Emilinha Borba no seu pequeno rádio em Parnaíba, e nunca havia se imaginado nessa situação. Para ele, Marlene era um mito. E como tal deveria ser preservada.
No centro do palco, Marlene exige uma decisão: “e então, diretor?”. Benjamim, sozinho na plateia, diante de seu mito ferido, fica paralisado. Marlene começa a cantar. Erra inúmeras vezes. Recomeça outras tantas. Inesperadamente, fala como se fosse ela o diretor: “Que é isso, Marlene?! Eu não estou reconhecendo você. Passe por cima disso! Mostre quem é a Marlene!”.
Quando Benjamim termina de contar essa história, está quase aos gritos. Eloquente, era como se tivesse voltado no tempo. Já nos parece bem diferente no homem magro, de tênis e roupas simples, aparentemente frágil, 73 anos recém-completados (4 de julho) e com certa dificuldade para andar devido à paralisia infantil – esse foi o primeiro Benjamim Santos que vimos àquela manhã. Ele nos esperava ansioso. O local combinado era o Sesc de Parnaíba, para onde doou todo o acervo que tinha e onde está sendo montada uma sala com sua história de autor e diretor de teatro e de shows musicais que movimentaram parte da cena cultural carioca entre os anos 1970 e 1980. Foi no Rio de Janeiro que Benjamim viveu até o início dos anos 2000, quando retornou a Parnaíba.
Benjamim pouco fala conosco em nossa chegada. Orienta que conheçamos o acervo. Lá estão fotografias com grandes estrelas, discos de shows que dirigiu, prêmios que recebeu, cartas e recortes de grandes jornais do país que estampam a sua história.
Ele nasceu em 1939, “na Parnaíba” (como falam os parnaibanos), a 366 quilômetros de Teresina, capital do Piauí, numa época em que a Parnaíba já tinha teatro, cinema, diversas manifestações artísticas e jornais. Alguns deles produzidos por Benedito dos Santos Lima, pai de Benjamim, como O Almanaque da Parnaíba, fundado em 1924. “Eu nasci em berço de ouro cultural na Parnaíba, numa época em que a Parnaíba era um berço de ouro no Piauí”.
Aos 18 anos Benjamim muda-se para Recife e depois para Olinda, onde estuda Filosofia e é aluno de Ariano Suassuna. Durante a década de 1960 tem intensa atuação em teatro no Recife, sendo assistente do respeitado diretor Hermilo Borba Filho e atuando como crítico de teatro no Jornal do Commércio.
No início dos anos 1970 vai para o Rio de Janeiro e vive o esplendor de uma época de arte, coragem e sonhos, ainda que sob o signo da ditadura civil-militar no Brasil. Convive com grandes nomes da literatura, teatro e da música, e dirige vários deles. Muitos estão registrados nos recortes que agora lemos, tentando recompor aquele homem que nos recebeu. Sobre o show Bons Tempos, hein?, do MPB-4 (1979), redigido por Millôr Fernandes e dirigido por Benjamim Santos, Millôr escreveu (referindo-se à qualidade do espetáculo): “Sente-se ali o dedo do gigante”. Benjamim diz sorridente: “O gigante era eu!”.
O autor piauiense fez um teatro diferente para o público infantil. E foi reconhecido por isso. Ana Maria Machado, depois presidenta da Academia Brasileira de Letras e que, na época, fazia crítica no Jornal do Brasil, escreveu sobre a peça O Castelo das Sete Torres, Prêmio Mambembe 1977: “Excelente texto de Benjamim Santos. Um dos mais belos momentos de nosso teatro infantil”. Em outro artigo, sobre a mesma peça, ela afirma: “É a obra prima de Benjamim Santos: louca, densa, lírica, engraçada”.
Com influências nordestinas, o autor piauiense levou para o teatro infantil carioca referências do folclore. A crítica não foi unânime. Armindo Blanco se refere a O Castelo das Sete Torres como “Joãozinho 30 para crianças”. O crítico do jornal O Dia afirma que a peça “mais parecia uma escola de samba”. Benjamim se defende: “Ele se referia à montagem, que foi caríssima. Só o vestido da Elke Maravilha pesava uns 30 quilos. Ela, maravilhosa! O texto era meu, mas não a montagem”.
Entre os recortes, sim, aparecem Marlene e Bosco dirigidos por Benjamim. E como terminou aquela história? “Marlene nunca cantou tão bem quanto naquele dia” – conta Benjamim. Ele confessa que dirigia muita gente, mas não gostava de todos. Os que mais mexiam com Benjamim eram os que ele escutava no rádio em Parnaíba. “Com esse pessoal é que eu pirava”.
Marlene e João Bosco fizeram turnê por várias cidades brasileiras (inclusive Teresina). Como ninguém sabia da discussão no ensaio geral, pouco se pode julgar se Benjamim deixou sua paixão por Marlene falar mais alto. Mas o resultado é que a rainha do rádio se destacou. Em Brasília, o Correio Braziliense publicou uma crítica que dizia: “Foi tão brilhante a participação de Marlene que chegou a ofuscar a presença do grande João Bosco”.
Estranho como Benjamim pouco é visto quando buscamos seu nome no Google nesses tempos em que, parece, quem não está no Google não tem história. Mas estão ali os recortes, prova irrefutável. E para encontrá-lo no Google, depois aprendemos, é melhor procurá-lo através dos artistas que ele ajudou a dar fama. É que Benjamim, aquele que quase desaparece aos gritos de Marlene, estava esse tempo todo nas coxias, homem de bastidores.
Tentamos marcar a entrevista na sua casa. Ele evitou. Parecia reservado e temeroso. Benjamim mora com a irmã, na área central de Parnaíba. Diz que o local mais parecido com ele na cidade é o barzinho que frequenta no início da noite.
Mais de duas horas depois de leituras, buscas, “olha isso!”, entre os papéis de Benjamim, achamos o tempo insuficiente. Ele julgou que estávamos prontos. Abriu a porta, agora com firmeza, e perguntou: “E então, vocês já sabem quem é Benjamim Santos?”. A questão trazia um indisfarçável orgulho. Não era arrogante. É bonito ver quem se orgulha do que fez e do que faz. É bonito ouvir quem tem histórias para contar. Benjamim tem. Um baú delas.
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André – Nós vamos lhe devolver a questão: e você, sabe quem é Benjamim Santos?
Benjamim Santos – Eu estou vivendo uma fase inédita, na Parnaíba, depois de passar muito tempo fora. Hoje sou dez anos mais velho do que quando saí do Rio de Janeiro, por isso mesmo dez vezes menos ativo. Não circulo muito. Preparo um jornal que sai todo mês (O Bembém – título em homenagem a seu pai, que tinha esse apelido) e escrevo todo dia pela manhã. Tenho dois livros ainda não publicados: um sobre bumba meu boi, outro sobre Joana D´arc (heroína da Guerra dos Cem Anos, na França). Tenho também uma peça de teatro inédita que se chama Noite Negra de Granada, sobre a última noite de Garcia Lorca (poeta e dramaturgo espanhol). Então, eu sou a mistura de muitas dessas coisas de teatro, música, texto. No Recife eu fiz teatro para adultos e alguns shows. No Rio já comecei pelo teatro infantil. Fui com a cara e a coragem para iniciar um trabalho que em Recife já estava alicerçado. Cheguei como quase todo mundo na época: sem dinheiro e sem trabalho. Fui morar no Solar da Fossa, uma espécie de pensão que ficava atrás do Canecão, onde morou a Gal Costa, Caetano, Paulo Coelho, Paulo Leminski, Paulinho da Viola, Betty Faria, Ruy Castro… E eu comecei morando lá, porque se pagava barato e tava envolvido logo com toda aquela gente. Todo mundo que tava começando, sem dinheiro, morava lá.
Samária – Com quem você conviveu no Solar da Fossa?
BS – Tim Maia, Darlene Glória – que namorava com Mariel Mariscott, que era o bandido mais famoso do Rio de Janeiro. O quarto deles era em frente ao meu e ele vinha sempre, mas vinha escondido, a gente é que sabia que era ele. Eu, Tim Maia, Aderbal Freire Filho (diretor de teatro) estamos entre os últimos a sair do Solar. O casarão foi vendido para ser construído o shopping Rio Sul. A saída do Solar foi muito triste porque o shopping ganhou na Justiça e tiveram que botar para fora mais de cem moradores. Todo mundo pobre, desempregado, a gente praticamente invadiu uma casa que estava fechada em Santa Teresa e deixaram a janela aberta. Sete pessoas foram morar nessa casa. Só depois procuramos os donos para alugar.
André – Os seus trabalhos mais destacados foram com teatro infantil e shows de música…
BS – Eu tive sorte com teatro infantil porque praticamente todas as minhas peças tiveram prêmio. A primeira, Senhor Rei, Senhora Rainha, que escrevi em 1970, ainda no Solar da Fossa, já ganhou o primeiro lugar no Concurso Nacional de Dramaturgia para Crianças, e com o dinheiro desses prêmios eu ia vivendo. A minha linha de shows sempre foi de sucesso, nunca de pouco público. Nunca tive show malhado por crítica. Nessa área eu tive uma unanimidade, e foi onde eu me dei melhor financeiramente.
Samária – Nos anos 60, 70, muitos artistas do Nordeste migraram para o Rio de Janeiro, como você. Por que esse movimento se tornou tão comum? Era muito difícil viver de arte no Nordeste?
BS – Eu fui para o Rio porque em Recife não tinha mais campo, sobretudo financeiramente, ainda não tinha grupo profissional. E o Rio era a vitrine. Belchior e Fagner dificilmente apareceriam no Ceará, àquela época, se não tivessem ido para o Rio de Janeiro. O Milton Nascimento, João Bosco, também apareceram no Rio. Até hoje é difícil alguém se lançar nacionalmente sem ir ao Rio. O próprio João Cláudio (entrevistado na edição 2 de Revestrés), se tivesse ficado esse tempo todo em Teresina, talvez não tivesse a visibilidade que tem.
André – A que você atribui o fato de ter obtido mais sucesso no teatro infantil que no adulto?
BS – O teatro para crianças, até 1970, era dominado por Maria Clara Machado e o grupo dela, que era o Tablado. Ela era o suprassumo, ganhava todos os prêmios e o resto era resto. Então, no início dos anos 1970, eu e muitos outros começamos a fazer teatro para criança no Rio, como a Sylvia Ortoff, o Ylo Krugli, a Maria Lourdes Martini, a Ana Maria Machado, que estava voltando da Europa e começou a fazer crítica de teatro infantil no Jornal do Brasil, coisa que nunca tinha existido. Juntaram-se uma série de elementos que fizeram com que tenha surgido um movimento revolucionário de teatro para crianças no Rio de Janeiro, com autores que queriam escrever para crianças. Esse movimento mostrou que o teatro infantil podia ser algo além das histórias do tipo “Bruxinha má visita o castelo do Papai Noel”, montadas só para ganhar dinheiro na época de Natal. Se você procurar a dramaturgia para crianças no Brasil vai ver que ela está quase toda situada na Maria Clara Machado e em nós, que vivemos esse período. Todo mundo montou Pluft, o fantasminha. A própria Maria Clara Machado declarou que se fosse receber todos os direitos autorais das montagens de Pluft, seria rica.
André – Eu já fui o Tio Gerúndio (personagem da peça).
BS – E eu tenho certeza que seu grupo não pagou um tostão pra ela (risos). Teresina nunca pagou direitos autorais para ela e desde 1970 monta A Bruxinha que era boa, Pluft, O Rapto das Cebolinhas, O Cavalinho Azul. As pessoas montam as peças sem se importar com os direitos autorais. Até hoje, em Recife, um grupo monta uma peça minha e vai nas escolas. Eu já tentei proibir, porque as montagens não são boas. Era um espetáculo criado para ser apresentado no palco, com luz e tudo mais, e vira aquela peça de escola, perde todas as características de encenação.
Wellington – O escritor para teatro geralmente só é conhecido quando monta uma peça de sucesso. Lê-se muito pouco o texto teatral no Brasil…
BS – E nem se publica. Aí vira um ciclo: não se lê porque não se publica e as editoras dizem que não publicam porque não vendem. Mas já teve um período, na década de 1950, em que a editora Agir lançou uma coleção só de textos de autores de teatro e todo mundo comprava. Foi quando se lançou O Auto da Compadecida, de Suassuna. Hoje você não encontra autores de teatro publicados, a não ser Nelson Rodrigues e Ariano Suassuna.
Samária – Seu texto para teatro tem certo refinamento. Ele pode ser considerados um texto difícil?
BS – Só é difícil para os muito pequenininhos. Meu teatro tem muita carga poética. Eu queria pegar a criança pela alegria e pela poesia. O texto da Maria Clara é altamente poético e eu enveredei por ai. E deu muito efeito também o lado cômico. Através de pequenas brincadeiras, fui mergulhando no universo infantil. Minhas primeiras três peças foram escritas sem eu saber qual a reação do público. Só três anos depois, quando comecei a montar as peças, percebi de fato como é o meu teatro para crianças. Ele não é de participação na hora, eu não pergunto: “Papai Noel foi pra onde? Cadê o lobo mau?”. Não é nada disso. É elaboração, texto, e eu fui vendo que as crianças ficavam envolvidas, aí eu fui aumentando o lado poético e o humor.
Luana – Qual a grande diferença do teatro para adultos e para crianças?
BS – Para adultos eu não tive um décimo do êxito que tive no teatro para crianças. As peças de teatro infantil que eu escrevi, eu ganhava prêmio. Aí fui me estabelecendo pelo teatro infantil. E sobre a linguagem, muitos dos meus textos para crianças são em verso. Senhor Rei, Senhora Rainha eu escrevi em versos setessílabos. Saiu no Jornal do Brasil: “Benjamim Santos é muito bom, escreveu a peça toda em redondilha maior”. E eu não sabia nem o que era redondilha. E ainda era maior! Então quer dizer que existe a menor?! (risos)
André – Desse período para cá a tecnologia mudou a vida de todo mundo e a relação das crianças com a cultura. Há muito aparelho eletrônico, filme, videogame. O teatro infantil mantém a sedução sobre as crianças ou houve uma transformação na relação da criança com o teatro?
BS – Se você pegar, de 1980 pra cá não apareceram novos autores de teatro para crianças. Até hoje se montam as peças da década de 1970, embora o teatro, nas maiores cidades, tenha tomado outro rumo. Ele saiu da dramaturgia e passou a ser de grandes produções, a ter patrocínio da Coca-Cola, Shell. Uma peça que a gente montava com cinco mil reais… Um grupo do Rio de Janeiro me procurou porque quer montar A Princesa do mar sem fim, mas tá captando recursos. E eu perguntei: quanto custa? -100 mil reais! –E como vocês vão conseguir?! Os espetáculos se tornaram grandiosos e a tecnologia tem influência nisso.
Wellington – Você se inspira na literatura infantil?
BS – Nunca fui leitor de teatro infantil, nem de literatura para criança. Mesmo garoto eu já lia grandes nomes da literatura para adulto. Li Hamlet (William Shakespeare) com 14 anos. Meu pai era jornalista e tinha uma biblioteca com muitos livros. Me inspiro em Shakespeare, Garcia Lorca, que também tem um teatro altamente poético, e em Hermilo Borba Filho, que mistura teatro popular com folclore, e Ariano Suassuna, que é pura poesia e humor.
Luana – Você tem alguma técnica para escrever suas peças?
BS – Minha maneira de escrever é muito trabalhosa porque eu fico revendo. Eu nunca fui como aqueles que dizem “veio como um vômito!”. Meu texto nunca veio assim. É muito racional, artesanal, elaborado. Ernest Hemingway diz que reescreveu o último parágrafo de Adeus às Armas 29 vezes. Eu também sou assim. Sem o exagero do João Cabral de Melo Neto, que passava dois anos pra terminar um poema. Mas ai também fica um poema que nada falta, né?
Samária – Dos seus cinco livros publicados, dois falam sobre Paris. Porque essa paixão?
BS – Vem de infância, de assistir filmes, ler sobre a revolução francesa. Meus amigos me gozaram muito porque eu, ainda menino, encontraram um caderno meu que tinha um conto que começava assim: “Paris, 1789” (risos). Aqui na Parnaíba o cinema pobre, o Ritz, era o que passava os filmes franceses, porque o cinema da elite, só passava os americanos. No Ritz eu vi os grandes filmes dos anos 50. Também criei Paris em minha cabeça através de muitas leituras. A Dama das Camélias (Alexandre Dumas), O Corcunda de Notredame (Victor Hugo); e Émile Zola, Balzac, Flaubert… Eu cheguei a Paris e Paris já tava toda dentro de mim. Eu fiz 50 anos lá. De maldade, mandei cartões para meus amigos: “Vou comemorar meus 50 anos em Montparnasse, às 19 horas, do dia 4 de julho. Aguardo você”.
André – E depois dessa relação imaginária com Paris, como foi chegar lá?
BS – Peguei um ônibus e saltei no Arco do Triunfo, inteirinho na minha frente! Meu hotel ficava no miolo do Quartier Latin, e eu cheio de histórias na cabeça. Eu sabia Paris! Fui só reconhecendo as coisas. Fiz roteiros de personagens: o roteiro Hemingway, com o lugar onde ele morou, a livraria que frequentou, o hotel Ritz, onde se hospedava. Outro era o roteiro Joana D’arc. Nem os parisienses conhecem todas as estátuas de Joana D´arc que tem em Paris, e eu fui em todas. Tudo em Paris tá memorizado, tem uma placa: “aqui, em 8 de setembro de 1429, Joana D’arc recebeu uma flecha e teve que recuar…”. Fiz o roteiro Os três mosqueteiros – nada mais parisiense. Fui onde D’artagnan tinha passado a noite com Milady. Em Paris a memória tá gravada para que se saiba, se respeite ou não se repita. Eu escrevi os dois livros depois de ter ido seis vezes a Paris.
Samária– Você assistiu a Meia-Noite em Paris (filme de Woody Allen)?
BS – Desde que Woody Allen começou a pensar, eu já tava esperando o filme. Assisti dois dias depois que lançaram.
Samária – Pirata?
BS – Piratíssimo! Aquele Megaupload foi até processado, né? Baixaram pra mim.
Samária – Você também tem uma paixão por James Dean, coleciona notícias, cartazes, biografias. Como se deu essa sua relação com o ícone da juventude nos anos 1960?
BS – Eu conheci James Dean quando ele já havia morrido, através de notícias de revista. A morte dele foi um impacto grande em todo o mundo: um garoto de 24 anos que com três filmes deslumbrou os Estados Unidos e com um filme (Juventude Transviada) provocou mudanças no comportamento da juventude! A revolta dele, o jeito incompreendido, isso pesou muito na minha adolescência.
Samária – Avaliando a juventude de hoje, que considerações você faria?
BS – Eu vivi uma época de transição. Hoje a juventude já nasceu com possibilidade da internet, celular, eles passam horas nesses aparelhos… A juventude não se sente incompreendida como a minha se sentiu, por isso não se revolta. Antes a gente precisava sair de casa, hoje pai e mãe aceitam quase tudo.
André – Essas não-revoltas da juventude afetam a relação dos jovens com o Teatro?
BS – Não posso dizer porque vivo numa cidade em que não há teatro.
André – Tendo uma relação tão forte com o teatro, como você se sente vivendo numa cidade que não tem essa produção?
BS – Eu faço assim: vivo hoje e me desligo do passado. Quando eu morava aqui, eu era da Parnaíba; fui morar no Recife e a Parnaíba começou a se afastar. Depois fui morar no Rio de Janeiro e praticamente cancelei o Recife. Voltei para Parnaíba 40 anos depois de ter saído. Agora eu vivo como quando eu tinha 14, 15 anos, que eu só ouvia falar da cultura brasileira pelas revistas, mas sem acesso direto. O teatro que vem à Parnaíba é só o que o Sesc traz, que são grupos não carreiristas comercialmente. Fora isso, praticamente não tem, então eu não vejo. A Parnaíba é assim? Então eu não vou ficar com ansiedade de “Ah, porque eu não assisto a Fernanda Montenegro?”. Eu vivo num processo muito interior, é muita leitura, pouca televisão, e tomo minha cervejinha de noite.
Wellington – A peça O Princês do Piauí tem relação com sua história pessoal?
BS – É a história de um garoto que sai de casa e vai perdendo tudo pelo caminho. E depois ele volta pra casa, mas com muitas perdas. De certo modo tem a ver comigo, mas se tiver foi inconsciente. Eu nunca considerei que tenha perdido. Eu sempre tô começando uma nova etapa.
Samária – E sobre a etapa dos shows musicais? Você dirigiu muitos artistas conhecidos, como foi produzir esses shows?
BS – Meus espetáculos de música eram essencialmente teatrais. No Rio, um dos produtores de Teatro do Recife me convidou para dirigir o Quarteto em Cy , em 1977. Elas eram quatro cantoras que ficavam sentadinhas num banco, cantando. Quando eu as dirigi, foi a primeira vez que elas se levantaram. A chamada do show era “vá ver o Quarteto em Cy em pé”. E foi sucesso de público e crítica. Foi o show e o disco Resistindo. A partir daí outros artistas foram me chamando. Eu fiz os cantores se moverem no palco, com técnica e tudo.
Luana – E como era extrair uma atuação mais dramática desses cantores?
BS – Tem uns que não adianta nem tentar, outros já são exagerados. A Elba Ramalho era preciso segurar. De muitos eu não era fã, não. Mas Marlene, Ademilde Fonseca, Carmem Costa, de quem eu era pivete de ouvir no rádio, eu era tiete. Com esse pessoal é que eu pirava. Dirigi Ângela Maria e Miltinho. Foi um espetáculo lindo! A TV Globo queria acender luz para gravar para o Fantástico. Eu disse: podem gravar, mas sem acender luz. Mas é para o Fantástico! Eles foram falar com Ângela e ela disse: – Quem manda é o diretor! (Benjamim para por um segundo, estufa o peito e continua, com ênfase) Aí eu disse: – Não!
André – Como você vê hoje os grandes shows de artistas populares como Ivete Sangalo, Claudia Leite?
BS – Eu não vejo (risos).
André – Sabendo que você não vê, mas o que você sabe sobre esses espetáculos hoje?
BS – Hoje não existem mais espetáculos dirigidos. São luzes e projeções. Os dirigidos são de artistas das antigas: Bethânia, Gal, Caetano Veloso, Ney Matogrosso – que dirigem eles mesmos. Nesses você vê, além do aparato, a estrela. Hoje é alta tecnologia, estrutura… Os espetáculos que eu fazia eram focados na canção.
André – Na sua avaliação existe alguma relação entre grandes estruturas para shows e escassez de talento?
BS – Eu não gosto do repertório da Ivete Sangalo. Nenhuma das canções dela vai ficar na história da música. Você acha? São coisas tão descartáveis… Os grandes artistas, não só de público, mas de conteúdo, esses são os que deixam repertório. A Gal cantando uma música de Caetano é algo que vai ficar para sempre. O exemplo máximo de perenidade é Elis Regina, até o arranjo você acha que é moderno!
Luana – Você escreveu críticas sobre produção artística no Jornal do Commércio, em Recife. Dá pra fazer um paralelo do papel do crítico naquela época e hoje, quando a produção e a mídia estão mais diversificadas?
BS – A repercussão de uma crítica no Rio e São Paulo hoje não tem o mesmo poder que teve nos anos 1950, 1960, porque naquele tempo quem escrevia nos jornais eram pessoas de renome: Sábato Magaldi, Décio Pignatari, Yan Michalski, pessoas de alto nível intelectual. Escreviam com autoridade, tanto que têm críticas publicadas em livros! Hoje você não conhece nenhum crítico de peso. Acho que Bárbara Heliodora é a última. Mas não sei se o público deixa de ir a uma peça que ela tenha malhado. Antigamente deixava.
Samária – Você vai aos shows que vêm para Parnaíba?
BS – Fui pro show do Leonardo e só. Era tanta estrutura! Não vou porque aqui só vem axé e banda de forró. O último cantor que veio foi o Geraldo Azevedo. Eu dirigi ele no Recife, mas nem fui ao show aqui da Parnaíba.
André – Você escreve, dirige, produziu espetáculos de teatro, música, tem uma formação intelectual… Blanchot dizia que o escritor escreve para não morrer; e você faz isso tudo para que?
BS – Sobreviver! Tudo o que eu fiz foi para ganhar dinheiro, em todas as áreas. Nunca tive grupo amador, tudo foi profissional, para ganhar dinheiro.
***
Terminada a entrevista, tínhamos conhecido o segundo Benjamim Santos: inteligente, menos desconfiado, mais alegre. Com a intimidade recém-adquirida já nos arriscamos a duvidar de nosso entrevistado: não acreditamos que ele viveu aquilo tudo “por dinheiro”, como afirma.
Passamos para a primeira sessão de fotos e ali se revela mais um Benjamim em nossa frente: performático, desinibido. Ele se desdobra em frente à câmera e desafia: “Vocês não sabem com quem estão mexendo!”.
À noite encontramos Benjamim mais uma vez. Mais um Benjamim. Ainda mais solto, divertido. Depois de uma cervejinha nos convida a jogar porrinha. Nos sentimos nos botecos cariocas dos anos 1960. Perdemos todas as partidas. E, quando ele não jogava, antecipava os resultados dos que se arriscavam. Era o mais jovem ali àquela noite. A nós restava dizer uma coisa: merda, Benjamim!
(Entrevista publicada na Revestrés#03 – Julho/Agosto 2012)
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