Participaram dessa entrevista: André Gonçalves, Samária Andrade, Wellington Soares.
Fotos: Maurício Pokemon | Texto e edição: Samária Andrade
Luiz Alberto chega antes da equipe da revista ao restaurante de comidas típicas piauiense. Tenta sentar numa mesa discreta, ao fundo. Usa óculos escuros de marca, uma camisa Nike colada ao corpo e jeans. Tem estatura baixa, é magro e receptivo. Era hora de almoço. O restaurante vai enchendo e ele, ficando desconfortável. Acha que as pessoas estão olhando embora, para nós, ele passe facilmente por um piauiense típico, não fosse o sotaque carregado, meio malandro, com frases entrecortadas por “Pô!”, “Meu!”, “Caramba!”.
O escritor paulista de 62 anos, que passou a maior parte da vida preso, conversa conosco no intervalo entre duas oficinas de texto que veio ministrar no Piauí, ambas em presídios estaduais. Luiz Alberto foi preso por assalto à mão armada seguido de morte. Ele e seu bando assaltavam um posto de gasolina, quando o vigia reagiu e morreu com 22 tiros. Pelo excesso, Luiz foi condenado a 100 anos de prisão. Tinha acabado de completar 20 anos e ficou mais de trinta atrás das grades. Quando saiu da cadeia, há cerca de 11 anos, já somava 51 anos de vida.
Luiz tem o mesmo nome do pai – de quem apanhava, ainda criança, “até o corpo ficar todo lenhado”. A mãe, que ele idolatrava, se chamava Eida. A referência aos pais abre o primeiro livro de Luiz Alberto: “Dona Eida, minha mãe, dizia que até os seis anos eu era um santo. Meu pai, seu Luiz, dizia que eu era débil mental”. “Memórias de um Sobrevivente” foi escrito em 1979 e publicado pela Companhia das Letras em 2001, quando Luiz Alberto ainda vivia preso. O livro já vendeu mais de 20 mil exemplares e abriu portas para Luiz. Ainda na cadeia, ele passou a produzir uma coluna mensal para a revista Trip, onde escreve até hoje. “Eu pensava que ninguém ia ler a história de um preso que tentava compreender a violência, o encarceramento e a dor”, afirma. O escritor Fernando Bonassi, que ministrava uma oficina de texto no presídio do Carandiru, achou o contrário. Mandou digitar o material e mostrou a Drauzio Varella, que o levou para a Companhia das Letras.
As histórias de Luiz Alberto são muitas e quase sempre fantásticas. Nelas, ele está sempre se reinventando. Cansado de apanhar, fugiu de casa a primeira vez aos 11 anos. Morou em praças no centro de São Paulo, divertiu-se com drogas, prostitutas e com a extrema liberdade. Tornou-se punguista dos bons – batedor de carteiras – enquanto sonhava virar assaltante – coisa que dava mais status. Capturado pelo Conselho Tutelar, teve que voltar para casa. Para não voltar a apanhar, prometeu trabalhar. Roubou dinheiro em todos os estágios que conseguiu.
Fora de casa novamente, conheceu a prisão e foi torturado em pau-de-arara para delatar os parceiros de crime. Nunca o fez. Diz que a Polícia não queria prender ninguém, apenas desejava pegar “a parte dela” nos furtos. Conduzido ao RPM – Recolhimento Provisório de Menores – conheceu tudo o que uma prisão tem. Aos 16 anos apanhava dos guardas e dos meninos maiores. A mãe não fez esforço pela sua saída. Acreditava que naquela espécie de “internato”, Luizinho enfim se corrigiria. Viveu ali até os 18 anos, quando foi finalmente mandado para casa. “Quando saí já não era mais um ladrãozinho. Era um bandido”.
Em pouco tempo estaria de novo inventando maneiras de ganhar dinheiro e aproveitar a vida sem trabalhar. Na prisão de adulto, cometeu outro assassinato: 47 facadas em um companheiro de cela. Era alguém que queria lhe estuprar e por isso levou-se em conta a legítima defesa, ainda que o excesso de violência tenha pesado contra Luiz.
Na prisão, também se reinventou. Descobriu a leitura, deu aulas de história e português, era chamado de “professor”, começou a escrever e, em 1982, passou no vestibular para Direito na PUC. “Acordava às 5 horas da manhã e enfiava a cara nos livros”. Na concorrência de cinco mil candidatos para 450 vagas, Luiz Alberto Mendes Júnior é o nome aprovado em primeiro lugar em toda a área de Humanas. Em 1984, por intermédio do cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, que era Reitor da PUC, conseguiu chegar ao Secretário de Justiça do Estado e ao juiz, que autorizou que Luiz frequentasse as aulas.
Foi um aluno dedicado, mas a vida lhe pregaria mais uma peça. Descobriu que sair todos os dias do presídio tinha também um preço: os amigos presos começaram a cobrar que ele trouxesse armas da rua. Então resolveu fugir. Depois de 45 dias foragido, voltou ao crime, tentando assaltar um doleiro na cidade de Santos, São Paulo. Numa troca de tiros com a polícia, saiu baleado. Mais uma vez voltava à prisão.
11 anos depois de libertado, se reinventa mais uma vez, agora como voluntário. Saiu do presídio, mas de alguma forma continua preso a ele. Criou o guia “O Que Você Precisa Saber para Ficar Livre de Vez”, distribuído pela Secretaria de Segurança de São Paulo, com dicas para os que estão saindo das cadeias: como tirar documentação, aonde ir, o que fazer. “Quando saí eu não sabia nem andar”. Já foram publicadas três edições de 70 mil exemplares, totalizando 210 mil livretos. “Um best seller”, diz sorrindo. Além das oficinas de texto e do Guia, tem outros projetos e faz pesquisas sobre os presídios, sabendo de cor números e a situação da vida nas cadeias do Brasil.
Como escritor, também vive se reinventando. Não quer ser lembrado como aquele que só escreve sobre presídios. Faz também poesias e assina a coluna “Mundo Livre” na Trip, que tem uma tiragem mensal de 70 mil exemplares. Atualiza com frequência o blog que possui e é ativo no facebook. “Sou muito lido”, diz satisfeito. Em 2006 Luiz Alberto foi finalista do Prêmio Jabuti com o livro “Às Cegas”, concorrendo com Ruy Castro, que seria premiado com “Carmen, uma biografia”, sobre Carmen Miranda.
Nas redes sociais tem feito novos contatos e reencontrado pessoas que conheceu na prisão. No início de julho publicou fotos do cotidiano em casa, brincando com o cão, e em lançamento de livros. Leu nos comentários a mensagem que dizia: “Não te vi agarrado com cães, em pose de galã ou em lançamento de livro”. Era um detento, que se apresentava e contava a própria história, afirmando que leu os livros de Luiz Alberto na prisão e, como ele, virou universitário. “Você me ensinou coisas valiosas. Ao ver suas fotos, vejo a imagem daquele que sobreviveu a tudo” – escreveu o detento. Em outro post, no mesmo dia, Luiz Alberto reflete: “Estamos ligados aos outros por termos os mesmos sentimentos, mas principalmente pela dor”.
Luiz Alberto nunca teve carteira assinada. “Vivo na correria de dar palestra, oficina, mandar projeto para todo o lado”. Teve muitos relacionamentos e dois filhos. Ainda que queira ser discreto, às vezes temos que falar alto e repetir as perguntas. Ele ficou surdo de um ouvido em função das muitas surras que levou no presídio. Também é quase cego de um olho e, da vida bandida, ainda carrega três balas no corpo.
Mais à vontade, elogia a culinária piauiense, pede mais cajuína e elege a paçoca como o prato de sua predileção. Interrompe várias respostas pra exclamar- “Pô, comida boa pra caramba!”. Ou para desconfiar: “Eles continuam olhando pra mim, hein?”. Vai ter que se acostumar, se seu sonho se concretizar: “Quero ter 20 livros publicados, todos fazendo sucesso, ser reconhecido por todos nas ruas”. Faz uma pausa e conclui: “Tenho mais de dois mil textos no meu computador. De repente eu chego lá, né?”.
E quem pode duvidar de Luiz Alberto Mendes?
André – Desde que deixou o presídio o seu trabalho sempre esteve ligado aos presidiários e as prisões. Você avalia por quê?
Luiz Alberto Mendes – Eu não gosto muito de entrar em prisão (dá uma pausa e continua com maior ênfase). Eu não gosto de jeito nenhum! Porque ainda é opressivo pra mim. Mas eu sou convidado para oficinas, trabalhos sociais, e tenho um comprometimento com essa gente. Sem família, sem ninguém, eles não têm chance. O índice de reincidência em São Paulo é de 75%. Ou seja, quando o cara ainda está preso, já está quase condenado a voltar para a prisão. E voltam cometendo crimes mais graves. É uma tragédia social que me preocupa muito. Como é que vai ficar isso aí?
André – Com um índice de reincidência tão elevado, que solução você consegue imaginar? Qual o papel de trabalhos como as oficinas de leitura e escrita que você faz nos presídios?
LAM – Na prisão, pegam o moleque que roubou um xampu, o cara que assaltou um banco, o que sequestrou e matou, botam tudo junto e esquecem. A sociedade é omissa, abandona a prisão nas mãos de carcereiros e da polícia, trata o preso como se fosse uma bomba que se joga para o alto e ela fosse estourar longe. Mas estoura aqui mesmo! Que tipo de cultura vários criminosos podem produzir juntos? A cultura do crime, que envolve e impregna o preso. Ele não enxerga possibilidade de ser outra coisa. Penso que a solução seria a sociedade conhecer os presídios, oferecer uma possibilidade diferente às pessoas que estão lá. Você pode não ter como substituir a cultura do crime, mas tem como ultrapassá-la e oferecer a chance de escolha entre uma coisa e outra. Os livros e as pessoas que me trouxeram os livros me salvaram.
Samária – Em alguns crimes de grande comoção por vezes surge um sentimento de que a prisão não é pena suficiente. Existe uma pena maior do que estar preso?
LAM – As pessoas que pensam assim não sabem o que é uma prisão. A vida do preso é extremamente difícil. Você fica longe das pessoas que ama, submete essas pessoas a constrangimentos e humilhações, tem que conviver com os outros presos, que muitas vezes são pessoas revoltadas, neuróticas, até psicopatas. É uma vida de guerra.
André – Dentro desse universo complicado da prisão, existe espaço para o afeto?
LAM– É difícil, talvez dentro da homossexualidade (pausa). Nas oficinas de escrita, os presos heterossexuais evitam dinâmica onde haja toque físico, não gostam que se ponha a mão, para não parecer que são homossexuais. A prisão te endurece, quebra a sensibilidade. A gente fala que coração de malandro tá na sola do pé – pra pisar em cima e não sofrer. Nas minhas oficinas, eu conto minha própria história, pra sensibilizar e pra que eles acreditem em mim, saibam que eu sou um igual. Eu tenho essa responsa de falar porque passei por situações até piores que a maioria. Isso faz com que eu possa ser sensível com eles e eles comigo. Mas na maioria das vezes o cara bloqueia a sensibilidade.
Wellington – Que tipo de histórias você costuma contar nas oficinas?
LAM – Histórias que eu vivi. Na Casa de Detenção eu fazia parte do grupo de 25 presos que eram professores. Nós dávamos aulas do Telecurso (da Rede Globo). O Alex, preso que era meu aluno, disse: “Pô, por que você não arruma uns filmes pra passar pra gente?”. No início eram 10 pessoas assistindo. Quando percebemos, tinham 400 pessoas! Passaram-se os anos e eu reencontrei o Alex noutra penitenciária, sendo faxina. E os caras da faxina eram todos do PCC (Sigla para a organização criminosa Primeiro Comando da Capital). Eu pensei: “O Alex vai virar um puta bandido. Que pena”. Então há pouco tempo recebi um in box no face. Era o Alex, dizendo que casou, tem filhas, se formou em Jornalismo, é editor de um jornal. Tem outro cara, o Nelson Piedade, o único por quem eu botava a mão no fogo, que saiu em condicional e voltou seis meses depois com sequestros e morte. Pô, tem que ser muito criminoso pra fazer um sequestro! E tinha outro cara cruel – o Pantera – que me disse: “Quero eliminar o primeiro grau, mas não quero ir nas tuas aulas com esse monte de bunda mole”. De repente ele começou a frequentar as aulas e, quando eu fiquei encarregado da escola toda no presídio – 600 alunos – foi quem mais me ajudou. Há alguns anos comecei a acompanhar no facebook a página “Beco dos Poetas”. Fui ver o nome do administrador e era o Pantera! Hoje o Beco é editora, publica livros, promove saraus. São três histórias incríveis e com destinos diferentes.
André – Você conta histórias de algumas pessoas que se recuperaram e há o seu próprio exemplo. Vocês são exceção ou a história de vocês significa que, tendo condições, mais pessoas podem se recuperar?
LAM – Eu me recuso a ser modelo de qualquer coisa. Mesmo porque, sendo humano, temos defeitos e estamos sujeitos a erros. Claro que, conscientemente, eu procuro não errar. Mas eu posso dar mancadas, entende? (pausa). Tenho medo que de não conseguir segurar a onda, medo de reagir mal em alguma situação de frustração ou maltrato. Então eu fico sempre um passo antes, fico detectando as situações de longe, me esquivo muito (faz silêncio).
Wellington – Mesmo sendo autor de livros publicados por uma grande editora e tendo uma coluna na Trip, uma grande revistas do Brasil, você nunca teve emprego com carteira assinada. Como é que você vê isso?
LAM – Por que os caras voltam pra cadeia? Porque não há apoio, confiança, respeito, na humanidade desses caras. Por outro lado, como você vai respeitar um cara que amanhã pode te dar um tiro? E você tem que duvidar do discurso tipo “eu não tenho preconceito com preso”. Meu, se você não tem preconceito, tá se arriscado a tomar uns tiros! O preconceito, nesse caso, é uma necessidade, uma possibilidade de defesa.
André – Certa vez no programa Provocações, de Antônio Abujamra, você disse que era uma pessoa “estupidificado” – estúpido, bestializado e embrutecido. Então, com as leituras, teve início o seu processo de “desestupidificação”. Você acha que esse processo tá concluído?
LAM – Eu ainda sou um estúpido (fala com convicção). Você considera que não seja um estúpido?
André – Às vezes, sou bastante (pausa). Qual é o papel da literatura dentro desse processo? O que ela traz pra quem está num universo limitado fisicamente e sem acesso ao mundo exterior?
LAM – Literatura é horizonte. Mario Benedetti (poeta uruguaio) diz que existem muitos amanhãs e muitos “ontens”, mas só um hoje. O hoje é composto de amanhãs, porque é ideal, você tem sempre o pensamento de que vai ser melhor. No meu caso, a literatura ofereceu a oportunidade do amanhã. Eu era um jovem sem perspectiva, estava condenado há mais de cem anos e, quando comecei a ler, percebi que conhecia poucos metros quadrados além daquela cela, do meu bairro e do centro de São Paulo. Com a leitura conheci outros povos, situações, valores. Pude comparar e ver que meus valores não se sustentavam mais. Quando o cara escreve, impregna o texto com a alma dele. A literatura tem essa magia: você é capaz de encontrar a emoção do autor.
Wellington – A sua escrita é forte, direta, um tanto visceral. Que influências literárias lhe marcaram?
LAM– As pessoas me perguntam: “onde você descobriu esse estilo, agressivo, visceral?”. Eu falo: “nem sei se tenho estilo”. Mas se tenho algum, isso veio das cartas que escrevia na prisão. Aqui fora as cartas estão totalmente ultrapassadas, mas na cadeia elas são o único meio de comunicação. E você tem que escrever de um modo que convença a pessoa a lhe responder e a lhe visitar. E manter contato com alguém na cadeia é um constrangimento: você vai ficar pelado, dá pulinhos. As cartas devem ser boas o suficiente para manter aquela pessoa ligada a você. Eu me empenhava de tal maneira que virei um especialista. Tive oito companheiras para quem mandava cartas. Namorei psicólogas, assistentes sociais, advogadas – que eu trazia para perto de mim pelas cartas. Escrevi muito para minha mãe também. Mas se você quer saber uma influência literária, eu sou apaixonado por Graciliano Ramos (autor de Memórias do Cárcere). Ele acreditava que a palavra não foi feita para enfeitar, mas para ser usada.
Wellington – Em textos e entrevistas você costuma se referir a relação com os pais da seguinte forma: rancor para com o pai e amor profundo pela mãe. Hoje você já consegue compreender melhor essa relação?
LAM – Na verdade eu amava meu pai. Mas era uma relação confusa. Ele era valentão e eu o admirava, queria ser igual a ele. Assimilei toda a violência e valentia de meu pai. Quis ser tão valente quanto ele. E tinha a maior bronca porque ele achava que eu era medroso, covarde. Depois, quando começo a me tornar um moleque problema, ele fica desgostoso e passa a me espancar. E fazia aquilo até com um prazer sexual, um sadismo. Batia até cansar e sentava no sofá, ofegante. Ele morreu e eu não pude perguntar: porque ele bebia tanto e tão desesperadamente? Precisamos discutir mais as drogas. Algumas pessoas encontram fuga na droga, na bebida, no consumismo, mas do que estão fugindo? Da existência? Isso sempre me preocupou e eu nunca soube responder. Já minha mãe era minha aliada, escondia o que eu fazia de errado. Ela me visitava na prisão e a gente conversava por sete horas. Eu assistia novela pra conversar com ela, ela lia os livros que eu gostava pra conversar comigo. Nós tínhamos muita cumplicidade. Ela sabia exatamente quem eu era e não tinha ilusão a meu respeito. Ela achava que eu seria bandido o resto da vida (pausa demorada). Ela julgou errado.
Samária – Você foi o primeiro preso de São Paulo a fazer vestibular e o primeiro em classificação na área de Humanas na PUC, sendo aprovado para Direito. Já fazendo o curso, fugiu da cadeia. Por que fez isso?
LAM – Fugi. Abandonei uma luta de anos (nova pausa demorada). As pessoas pensam que foi de bobeira, mas não foi. Eu tinha uns amigos que queriam que eu trouxesse arma pra dentro do presídio. Eu não podia fazer isso, mas por outro lado eu tinha um compromisso com aqueles caras. Na cadeia, amigo é aquele que olha as suas costas, te protege, não te abandona. Eles não compreendiam porque eu não os ajudava, não entendiam meus escrúpulos. Então preferi ir embora do que fazer coisa pior. Eu fui até a casa de minha mãe e disse: “ô, tô fugindo”. Imagine como foi dramático! Minha mãe falou: “Pois não seja preso novamente, porque eu nunca mais vou lhe procurar”. E eu disse: “prefiro morrer a ser preso”. “Pois morra”- ela disse. Um tempo depois fui preso num tiroteio. Escrevi pra minha mãe contando que estava vivo e preso. Não pedi pra ela me visitar. Uma semana depois, vi minha mãe subindo as escadas. Aquele foi um dos momentos em que tive mais medo na minha vida (fala mais devagar e com pausas). Medo de uma tampinha, uma mulher de 1 metro e 42 (ri). Eu temi a reação dela. Aí ela abriu um sorriso, me beijou e abraçou. Lembrar essas coisas ainda dói (quando conclui tem os olhos cheios d`água).
Wellington – No livro Memórias de um Sobrevivente você fala sobre a questão da sexualidade nos presídios, com histórias de assédios e o risco de ser estuprado. Você chegou a um ponto em que teve que matar uma pessoa. Como esses assédios acontecem?
LAM– Os caras novos que chegavam já eram “vendidos”. Os mais velhos diziam: “vai pra cela tal. Você é meu, eu te comprei”. E o pagamento era cigarro, maconha. Os caras encostavam a faca ou jogavam o cobertor na cabeça, e tchum, já era. Como eu já tinha um nome de bandido, eles tinham um certo respeito por mim. Mas tinha um cara que me perseguia. Uma vez me chamou no xadrez e, quando eu entrei, já fui mandando facada. Ele morreu depois de uma luta demorada. Eu levei muito murro, fiquei machucado, fui pro hospital. O cara tomou 47 facadas. Quando ele caiu no chão eu tava enlouquecido, fora de mim, fiquei um monstro. Fui absolvido por legítima defesa, mas, pelo excesso de golpes, condenado a um ano e seis meses. É difícil lembrar isso. Eu penso: “eu podia ter feito diferente”. Mas não dá pra modificar o que passou.
Wellington – A partir desse acontecimento, os outros presos te deixaram em paz?
LAM – Não. Até os 30 e poucos anos tinha sempre alguém me perseguindo, só que eu metia a faca. Tinha até contado outras histórias nos originais do livro, mas a Companhia das Letras (editora) pediu para eu modificar. O “Memórias de um Sobrevivente” tinha mais de 800 páginas e a editora fez eu cortar metade. Disseram que eu ia massacrar o leitor com aqueles acontecimentos. E ia mesmo – eles aconselharam bem. Só que a realidade não foi contada. Ali tem 10% da verdade.
André – Uma discussão recente que divide opiniões no Brasil diz respeito à redução da maioridade penal. O que você pensa sobre isso?
LAM – Sou absolutamente contra. Reduzindo a maioridade penal, vão começar a usar a molecada ainda mais nova. Daqui a pouco vão criminalizar aos 14 anos, o cara pobre já vai nascer criminalizado. E isso não resolve nada: apenas 1% dos crimes hediondos é creditado aos menores de idade. Com as medidas sócio educativas baseadas no ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) os moleque têm 30% de reincidência, muito menos que os adultos (que têm 75%). Na cadeia não existe a mínima preocupação em recuperar ninguém. Os presos vivem em situação extremamente precária e a maioria dos presídios no Brasil é igual ao Irmão Guido (Penitenciária que fica em Teresina, Piauí, onde Luiz Alberto fazia uma das oficinas). Você conhece a Irmão Guido?
André – Não
LAM – Nossa, aquilo ali é uma das piores coisas que já vi! Na cela de triagem a telha é de zinco, quando o sol bate é um forno elétrico. Em São Paulo, embora haja superlotação, as penitenciárias são melhores. Mas saindo do eixo Rio-São Paulo a situação é sub-humana. No Brasil todo a maioria dos presídios são cemitérios em vida. E essa é uma situação que todo mundo aceita.
Wellington – Você foi procurado para transformar suas memórias em filme. O que você pensa sobre filmes nacionais que enfocam a violência, a polícia, a vida nos presídios ou na periferia e tiveram grande repercussão, como Tropa de Elite e Cidade de Deus?
LAM – Cidade de Deus é um filme bastante interessante. O Paulo Lins (autor do livro que deu origem ao filme) tinha escrito um livro com mais de 600 páginas. Quando fizeram o filme, ele teve que diminuir pra cerca de 400. Ele praticamente reescreveu o livro. O filme é bacana, bem feito, mas fala de um momento que já passou. Já Tropa de Elite é uma porcaria, um filme bastante mentiroso. Uma vez fizeram uma entrevista comigo e o Rodrigo Pimentel (ex-capitão do BOPE que inspirou o personagem principal de Tropa de Elite e é um dos roteiristas do filme), o repórter começou a nos questionar e a tentar fazer comparações – ele como ex-policial e eu como ex-ladrão. Então o repórter perguntou: Quantas pessoas você já matou? Eu respondi: Registrado, duas pessoas. E Rodrigo Pimentel disse: “Ah, eu não posso falar sobre isso, essa pergunta vai me prejudicar”. Aí você percebe: pô, o cara matou de montão, matou dezenas! É porque na polícia, cada vez um da equipe se apresenta com os corpos e aquilo não conta como morte. Pouco importa quem deu o tiro fatal. Foi “a equipe” que matou (fala com ênfase).
Wellington – Tendo vivido no Carandiru, o que você pensa sobre o filme baseado no livro de Drauzio Varella?
LAM – A primeira parte do livro é bacana, a descrição do Carandiru é perfeita. Mas aí tem as histórias de doze pessoas, meu, é tudo mentira! O filme foi feito em cima de mentiras. O Dr. Drauzio era médico dos caras. Você acha que o preso vai falar para o médico que cuida dele por bondade: “ô, eu matei, eu roubei, e eu fiz isso porque eu quis, eu gostei de fazer isso”. Eu conheci os caras que falaram com o Drauzio, meu, era tudo bandido. Mas parece que só eu que roubei e matei porque quis. O resto do mundo é inocente e eu sou o culpado.
Samária – Sobre a possibilidade de mudança dos indivíduos, você considera que as pequenas corrupções do dia a dia podem dizer algo de significativo sobre a personalidade ou índole das pessoas?
LAM – As pessoas são muito ricas. E são passíveis de tudo, né? O homem é um constante devir, uma capacidade infinita de vir a ser, uma viração. Então é difícil prever e até raciocinar sobre o ser humano. O Bernard Shaw (dramaturgo irlandês) dizia: a única pessoa que me conhece é meu alfaiate, porque toda vez que eu vou lá ele tira as minhas medidas.
Samária – Depois de tanto tempo preso, o que você mais estranhou ao sair?
LAM – Assim que saí, não conseguia andar na rua, tinha perdido o mecanismo de me desviar das pessoas. Eu andava e ia batendo nos outros, voltando, eu não conseguia furar o bloqueio. Eu dava voltas enormes pra não enfrentar multidão.
Samária – E o que mais gostou ou lhe impressionou?
LAM – Eu fiquei mais de trinta anos sem ver cachorro. Então, quando saí, fui pra casa da minha sobrinha, que tem quatro cachorros enormes, e vi: que coisa incrível, que vida são os cachorros! Se eu vejo um cachorro passando na rua, sei a raça, média de idade, se é abandonado ou tem dono. Outra coisa incrível é o mar. Eu fui morar em Barra do Piraí (Rio de Janeiro) e comecei a frequentar o mar. Vinham aquelas pessoas na pranchinha, zuuuum, meu Deus, como é que pode? Até hoje gosto de olhar a terra afundando e a água do mar entrando na areia. As árvores também me impressionaram. Eu comecei a frequentar parques e a adquirir livros de fotógrafos especialistas em árvores. Já estou há 11 anos fora, mas continuo achando muitas coisas extraordinárias! Essa comida aqui foi da hora, principalmente a paçoca. Ainda tem mais?
André – Jorge Luís Borges acreditava que toda escrita é autobiográfica, ainda que isso não fique claro para o leitor. Ainda falta muito pra falar de você ou você já falou tudo o que queria?
LAM– Falta tudo! Eu sou outro. Amanhã tenho outras histórias pra contar. Vou contar desse almoço, essa conversa. Vocês me transformam e eu transformo vocês. A vida é assim: transforma a gente a todo instante.
***
Primeira coluna escrita por Luiz Alberto Mendes para a revista Trip, publicada em 15 de março de 2002.
“Se vens às quatro, às três já serei feliz”
Acordei já eram cinco horas da manhã. Pensei na rotina da prisão e todo meu ser estremeceu. Mas não! Era domingo, dia de visitações. O meu amor viria visitar-me. Meu rosto se alargou em um sorriso. Lembrei de um pensamento de Saint-Éxupery: ‘Se vens às quatro, às três já serei feliz’. Dores e tristezas foram deletadas e a alegria, como avezinha, fez ninho em meu coração. Levantei da cama disposto, colocando tudo para cima, de modo a facilitar a faxina. Fervi água, sabão em pó e detergente. Esfreguei paredes e chão com todo vigor. Joguei muita água para tirar espuma e sujeira. Sequei tudo com pano de algodão nas mãos. Encerei, passei palha de aço e lustrei até espelhar, com pedaço de cobertor. Suadão, fui ao banho, daqueles minuciosos. Fiz a barba no maior capricho; loção, hidratante e o indefectível desodorante Quasar, presente dela. Arrumei a cama com lençóis que guardo só para ela. Vesti roupas limpas, passadas, sapatos de camurça, meias e cuecas novas. Penteei os cabelos com gel; pronto, estava limpo e bem vestido, me achei bonitão. AMOR BANDIDO Desci para o portão da entrada de visitantes. Fiquei ali, esperando, ansioso, nervoso. Então ela chegou. Linda, sorrindo para mim todo o seu amor. Saia preta, blusa vermelha, salto alto. Cabelo escovado, rosto iluminado pelos olhos acesos de amor. Abracei-a apaixonado. Meu desejo era retê-la em mim para sempre. Beijei-a de leve, não gostávamos de chamar atenção. Um ‘oi, tudo bem?’ A que respondi um ‘tudo’. A emoção supria palavras. Abraçados, imersos em nós mesmos, subimos os andares. Coloquei meu tesouro para dentro, fechei o quiche e bati a porta. Era o código: ninguém incomodaria. Ah, como eu a amava. Ali não havia prisão, havia espaço para a expansão do amor. O sexo, duro como pedra, ameaçava explodir dentro da calça. Apalpo aquela bunda macia, ela me segura, estremeço, as pernas bambeiam e ela suspira. Beijos, a princípio doces, lábios acariciando lábios, depois exigentes, necessitados. As línguas se enroscam e o gosto do amor invade a boca. As mãos percorrem corpos, a cama convida e somos tomados pelo tesão incontrolável. Mãos, bocas sequiosas percorrem e param em oásis para se deliciarem. A penetração torna-se um carinho mais profundo, após satisfazer a fome, a sede, que estávamos um do outro. O movimento começa leve, carinhoso. Mas aos poucos, tudo exige pressão, vigor, ataque. Ela sobe e desce para derramar-se de prazer, recebo-a em gozo. Ao fundo, a televisão ligada na MTV abafa os gritos. Eu gemia, ela suspirava, então o êxtase estremecido. O fundo e o aperto, eu pulsando, ela em espasmos. Beijo-a agradecido e curtimos um soninho reparador. PRESA LÁ FORA Almoçamos a comidinha que ela preparou para nós, entre notícias da semana. Famílias, filhos, o trabalho dela, meus textos, editores, amigos e coisas nossas. Ela reclama das filas da entrada na cadeia, da humilhação da revista e da solidão da cama lá de casa. Acaricio, tento consolá-la. Dói. É muito sofrimento por minha causa. Mexe daqui e dali e a excitação nos acorda para o amor. Agora tudo é feito com calma, doçura e detalhes. Exploramo-nos com vagar em busca do cume do tesão. Delícias que conquistamos em anos de amor. Algo me aperta no fundo de mim mesmo e já não sou mais eu somente. Sou eu, ela, as pessoas e todas as coisas vivas. Abençoo o mundo, perdoo a todos e até a mim mesmo. Tomamos banho, escuto a sirene anunciando o fim do horário de visitações. Nos vestimos, agora calados, tristes na certeza da separação. Levo-a ao portão, calado. Abraço-a, ela estremece e chora baixinho em meu peito. Ergo seu rosto com ambas as mãos, beijo seus olhos, enxugo seu rosto e sinto as lágrimas descerem pela minha cara, incontroláveis. Solto-a no portão, vejo-a sair com seus passos vacilantes e volto, cego, sem ver ninguém, para minha cela. Pronto, acabou. Sento-me, papel e caneta na mão. Vou escrever para ela. Retê-la em mim.
Luiz A. Mendes [mendes@revistatrip.com.br], 49, está preso há 29 anos na Penitenciária do Estado de São Paulo – onde recebe visitas semanais (íntimas ou não), que podem durar até 7 horas.
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Cabe mais um aí?
Segundo dados recentemente publicados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Brasil passou a ter a terceira maior população carcerária do mundo, com 715, 6 mil presos. O ranking é liderado pelos Estados Unidos com 2,2 milhões de presos. Em seguida vem a China com 1, 7 milhão.
O sistema carcerário brasileiro tem capacidade para 357,2 mil presos, estando portanto com um déficit de 210, 4 mil vagas.
O estado com maior população carcerária é São Paulo, com 204, 9 mil presos, seguido por Minas Gerais com 57, 4 mil e Rio de Janeiro com 35,6 mil. A menor população carcerária é a de Roraima, com 1, 6 mil presos.
Pela lei brasileira, cada preso deve ter no mínimo seis metros quadrados de espaço (na unidade prisional). Há situações em que cada preso tem apenas 70 cm quadrados.
(Entrevista publicada na Revestrés #20 – 2015)
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