(Participaram desta entrevista:  Samária Andrade, Áureo Júnior e  André Gonçalves)


Ele foi trotskista na juventude. Paulista da gema, nasceu na Avenida Paulista. Estudou arquitetura na badalada Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo- FAU-USP. Foi contemporâneo de Guilherme Arantes e, nos corredores, encontrava Fernando Meirelles e ouvia histórias sobre Chico Buarque. Em Teresina tornou-se Secretário de Planejamento. Tinha um terno amassado que puxava da gaveta quando o prefeito o chamava para alguma audiência. Desde que se tornou professor, sempre corre o risco de você passar por um mercado, um circo ou um cemitério e vê-lo dando aula.

Todas essas afirmativas se referem à mesma pessoa.  Por isso, esse texto poderia começar por qualquer uma das frases acima e, ainda assim, é provável que elas não definissem Paulo Vasconcellos Castello Branco Filho – “Assim mesmo: com dois ‘eles’ no segundo e terceiro nome” – diz, não por vaidade ou tradição, mas pela curiosidade.

O paulista é o primeiro dos nove filhos de mãe pernambucana e pai piauiense, militar da aeronáutica. Pela profissão do pai, acostumou-se cedo às viagens. Recém-formado, veio passar uma temporada no Piauí no início dos anos 80 e, desde então, só costuma sair de Teresina a passeio- o que não demora muito.

Casou-se com Marília, filha de família tradicional piauiense e que, como ele, escapa da regra: fala pelos cotovelos, o acompanha em suas viagens e, formada em Artes, vive mudando a decoração da casa. Eles têm dois filhos, mas, hoje, só o casal ocupa o confortável apartamento na margem do rio Poti.

É lá que Paulo recebe os amigos e prepara os pratos que Marília – que não cozinha – olha com desconfiança. Mais do que cozinhar, o que Paulo gosta mesmo é de exibir os ingredientes – quase sempre exóticos. Diverte-se com as reações. No dia da entrevista, não conseguimos identificar o suco que nos serve. Ele revela sorrindo: “É pêssego com tangerina!”. Aos 60 anos, Paulo é um menino levado.

Ele vai de Paris às pequenas cidades do interior do Piauí com o mesmo entusiasmo. No dia em que conversamos, tinha voltado de Inhuma, a 240 quilômetros de Teresina, com cerca de quinze mil habitantes. “Você sempre vai encontrar elementos novos, próprios daquela cidade. Cada lugar tem sua personalidade”, ensina.

Aprovado em concurso público da Universidade Federal do Piauí em 1984, torna-se professor do curso de Artes. Também já deu aulas em Comunicação e ministra disciplinas em Arquitetura. Ainda é professor de Arquitetura na faculdade particular Camilo Filho.

Paulo continua a percorrer ruas e bairros de Teresina com o interesse de quem os visita pela primeira vez. Por isso aponta problemas com propriedade, identifica hábitos culturais ou sugere um restaurante, um artesão ou um tocador de sanfona que tenha acabado de descobrir.

Ele voltou a morar em São Paulo na década de 90 para fazer pós-graduação em Arquitetura. Passada essa etapa, volta a Teresina e conclui: o que lhe comove não são as metrópoles, mas as cidades de pequeno e médio porte.

Na capital do Piauí, continua a dar aulas e envereda pela publicidade nas empresas do Grupo Claudino – um dos maiores grupos empresariais do Nordeste. Ali, põe algumas de suas ideias em prática: ajuda a criar um festival de artes no shopping center do Grupo (Artes de Março, no Teresina Shopping) e produz desfiles natalinos na principal avenida de Teresina.

Paulo é expressivo e fala fazendo caretas. Aperta os olhos ou balança a cabeça como se aquilo fosse ajudá-lo na ênfase que pretende dar. É crítico e conversa sugerindo ideais. Na entrevista à Revestrés tentamos captar o pensamento do arquiteto-professor-viajador sobre arquitetura, decoração, mercado, ensino, as necessárias viagens e a paixão pela vida na cidade.

 

Samária– Você é um arquiteto apaixonado pela vida na cidade. O que a cidade tem que lhe encanta?

Paulo Vasconcellos – Eu só concebo o homem morando na cidade. Essa visão do homem na natureza, no meio rural, é utópica. Na cidade nós concentramos uma série de elementos facilitadores para a condição de vida. Naturalmente eu não me refiro a esta cidade com a qual nos deparamos hoje. Porque mesmo as cidades de países desenvolvidos tem uma série de lacunas a serem resolvidas. A cidade é um assunto muito complexo. Mas é na cidade que está a viabilidade do homem viver no planeta.

Áureo – Nesse assunto complexo que é a grande cidade, o que você destaca como um inimigo da vida cotidiana hoje?

PV– O carro. Ele ocupa tanto a área física, no solo, como o espaço em movimento. O carro passou a ser um vilão da vivência do homem, do contato, dos encontros. Ele vai sugando os espaços públicos. E cada vez mais vamos cedendo espaço para o carro! (fala com ênfase). Há uma reação que vem se esboçando no mundo, ainda que timidamente, para tentar viabilizar a cidade sem a presença do carro no meio urbano. Hamburgo, na Alemanha, está numa operação audaciosa para se livrar do carro nos próximos 20 anos.

André – O uso da bicicleta é uma alternativa para os problemas de mobilidade?

PV – Em Teresina, não. Na ânsia de se resolver os problemas e se buscar uma cidade mais humana, a gente parte para soluções românticas. Talvez em cidades com distâncias menores e onde o convívio com o calor seja mais suportável, a bicicleta seja uma alternativa. Mas em Teresina o calor é muito grande e as distâncias já são consideráveis. A gente tem que partir para soluções de transporte coletivo e para organizar o tecido urbano, porque ele induz inúmeras viagens desnecessárias.

Áureo – A jovem Teresina já apresenta males antigos nos grandes centros do Brasil: problemas com mobilidade, busca por mais espaços verdes, moradia, revitalização do centro, saneamento e outros. Qual desses males é o mais grave hoje em Teresina?  

PV – Acho que é o crescimento horizontal desordenado e explosivo. A cidade está se expandindo horizontalmente de uma forma absurda. É possível percorrer, dentro do espaço urbano de Teresina, 55 quilômetros. Os custos que isso demanda são enormes! Todas as operações encarecem: celular, rede de esgoto, água, caminhão de lixo. Nós temos menos de um milhão de habitantes e uma área compatível com uma cidade de três milhões de moradores.

Áureo – Porque isso está ocorrendo?

PV – Tem falta de planejamento, pressão da indústria imobiliária, especulação imobiliária. Mas eu acho que a causa principal é a falta de senso crítico em quem opera os serviços públicos, prefeituras, órgãos de gestão. A gente precisa de uma visão mais técnica para pensar as questões da cidade. A densidade urbana tem que ser estudada, porque é ela que vai proporcionar menores custos para se operar a cidade. Você pode estimular a densidade junto aos eixos de maior condição de mobilidade urbana. Esse é o conceito do plano diretor de São Paulo. Em Teresina você poderia estimular a densidade na área do chamado pré-metrô. Ao longo desse trajeto temos espaços sem iluminação e sem urbanização. Como é que a gente nunca teve uma política de adensamento na área do nosso maior vetor potencial de transporte público?! (questiona com ênfase).

Samária – E uma política de adensamento poderia recuperar o pré-metrô como alternativa de transporte coletivo? Ele é uma ousadia ou algo que não deveria ter sido feito?

PV – Ele não é um metrô obviamente, mas tem uma potencialidade porque é uma via férrea com condição favorável de deslocamento para transporte público. Mas, para ser operacional, um metrô deve ter pelo menos um milhão de passageiros-dia. O nosso pré-metrô tem cerca de quatro mil-dia. Então dizer que o pré-metrô funciona é uma brincadeira! Matematicamente falando, ele não faz nenhum sentido. Metrô hoje é engenharia, cálculo, não é empirismo. O que assusta é que a instalação do metrô foi unanimidade: governos municipal, estadual, federal, canais de comunicação. E era uma proposta equivocada desde o início. Ninguém questionava, porque se vendeu a ideia de que seria um metrô! E aqui a gente se ilude com propostas que possam trazer uma solução que nos dê um status de centro mais desenvolvido. Acho que isso está relacionado a uma baixa autoestima. Hoje temos, dentro da cidade, uma operação de risco iminente. Eu diria que é uma irresponsabilidade deixar o pré-metrô continuar circulando!

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André – O crescimento das cidades gera necessidades que esbarram em questões econômicas.  Como conciliar a necessidade de atender as demandas e o que realmente pode ser feito em termos de recursos?

PV– Apesar de Teresina ser uma cidade pobre – essa palavra às vezes é dura, mas tem que ser dita (pausa)… Se por um lado a cidade tem poucos recursos, por outro ela não está convivendo com problemas urbanos cujas soluções são muito caras, como já acontece em Salvador, Belo Horizonte, Campinas. Então a gente tem a oportunidade de se antecipar e tentar minimizar custos. Temos um desenho urbano racional e, com isso, a possibilidade de implantar um sistema de transporte coletivo sem custos tão altos. Na questão ambiental, temos áreas verdes intercaladas no tecido urbano que podem ser vocacionadas para a preservação. Agora, se não fizermos alguma coisa logo, vamos perder o bonde da história e vai ficar muito caro resolver. É importante também a gente saber que nem sempre as soluções adotadas em centros de primeiro mundo são adequadas às condições econômicas de nossa cidade. Algumas implicam em gastos tão altos que talvez se tenha que abrir mão de outras questões que a cidade necessita (fala quase lamentando). A gente tem muita impulsividade pra resolver, mas pouco senso crítico para contrapor às soluções que aparecem. E naturalmente não é o Governo Federal ou um banco internacional que vão fazer esse contraponto crítico. Somos nós, os moradores da cidade.

André – E a que você atribui esse pouco senso crítico para encontrar soluções mais adequadas?

PV – Teresina é uma cidade com experiências urbanas recentes. Nas décadas de 30, 40, a cidade tinha aspecto de zona rural. Poucas ruas calçadas, criava-se animais na rua, tínhamos uma cultura rural. Na década de 70 tivemos uma explosão demográfica, o maior índice de crescimento populacional urbano que experimentamos. A gente ainda não tem, coletivamente, um senso crítico apurado, experimentado, no sentido urbano.

Samária – Qual a participação das escolas de Arquitetura nesse contexto?

PV – As escolas de arquitetura são recentes e dedicam pouco tempo para a questão urbana – o que é um grande erro. Primeiro porque hoje essa é a área com maior potencial de emprego e segundo porque quando a gente fala em “morar”, não deve raciocinar estritamente na nossa casa. Morar tem um sentido amplo. A gente mora na rua, na cidade. O problema de a gente ser assaltado, atropelado, enfrentar uma epidemia de dengue, é um problema do “morar” mais global. Então, as escolas estão defasadas nesse sentido. Os cursos de engenharia civil, ciências sociais, econômicas, jurídicas, também têm que se defrontar mais sobre a causa das cidades. Na Academia, na gestão pública, nas organizações comunitárias e não governamentais, a cidade ainda é timidamente defrontada, pouco incorporada nas prioridades.

Samária – Quando se fala em “curso de arquitetura” existe uma tendência a se pensar mais sob uma perspectiva pragmática ou mercadológica e menos sob o ponto de vista de uma área de estudo com preocupações mais coletivas?

PV – A arquitetura no Brasil vive uma crise. Desde o ciclo do modernismo até os anos 70, tínhamos uma arquitetura e urbanismo de referência, com claros compromissos sociais. A categoria dos arquitetos tinha uma presença efetiva junto às principais causas sociais e um discurso que buscava causas coletivas. Só que a arquitetura foi sendo engolida pelo mercado. E esse é um mercado muito imediato, que vende produtos. Muitos profissionais que se formam vão ser vendedores – por falta de alternativas de colocação –  e vão trabalhar por comissão. Muitas vezes indicam produtos mais pelo potencial da comissão que pela excelência técnica-funcional que esse produto possa trazer. Aí entra também a questão da necessidade de subsistência do profissional, que não se pode ignorar.

André – Como o mercado exerce influência ou poder sobre o profissional de arquitetura?

PV – O mercado do consumo trabalha com determinadas vitrines: na arquitetura há a vitrine do design de interiores. Eu acho que isso gera um jogo de ilusão e pode tornar o profissional pequeno. Eu falo pequeno entre aspas, no sentido de que ele começa a pensar nos limites de uma sala de estar, da ambientação de um terraço. Ele não consegue perceber que os espaços são integrados, que a casa é consequência do espaço da cidade e vice-versa. Ele deixa de ter a condição de uma visão macro sobre o espaço – que é uma visão da escola europeia. A escola americana vê a questão mais setorizada. Enfim, eu até tinha um pouco de preconceito com a arquitetura de interiores. Hoje reconheço nela uma necessidade real. Ela atende a uma demanda de mercado de classe A, B, mas tem consequências sobre outras classes e espero que, num futuro próximo, possa atender demandas mais sociais. Muitas vezes a arquitetura de interiores vira decoração –  ainda que o arquiteto odeie essa comparação. A maior crítica que faço é que ela deve ser praticada com uma visão mais ampla e integral. Esse é exatamente um dos pontos que fascinam na nossa profissão: lidar com conhecimento de muitas áreas – ciências humanas, tecnologia, artes, filosofia, matemática, a criatividade. Poucas profissões têm condição de trabalhar numa encruzilhada de conhecimentos tão vasta! Às vezes o arquiteto não percebe essa possibilidade e pensa que sua atividade é menor. Você tem que se formar um arquiteto por inteiro e não um técnico em ambientação, como hoje saem muitos das escolas.

Samária – Você enxerga a arquitetura ligada a algumas áreas como artes, filosofia, a necessidade de criatividade. No entanto a gente percebe um processo de estandardização, com uma proliferação de projetos parecidos. Existe uma valorização de modelos estandardizados? E por que isso acontece?

PV – Isso é uma aberração, porque nem sempre os projetos são condizentes com a nossa condição climática e dados culturais. O pessoal vai pro Salão de Milão e fica no control-C- Control-V, né? Isso tem influência também das publicações de decoração. Quando essas arquiteturas são transplantadas, ocorre a estandardização e um conjunto de incoerências. Em Teresina nós temos que nos voltar para uma arquitetura bioclimática, condizente com as demandas do nosso clima e com nossas demandas culturais, com a oportunização de matérias primas locais. Uma arquitetura nunca pode estar dissociada do seu meio.

Samária – Seguindo esses modelos estandardizados, existem pontos comerciais e até residências que são como grandes caixotes. Daqui a alguns anos, quando olharmos para esse tipo de arquitetura, vamos ter motivo de orgulho?

PV – Essa é uma grande dívida que eu e tantos outros arquitetos temos com a cidade. Existem já alguns colegas trabalhando nessa causa. Mas isso vai demandar um tempo. Eu tenho me preocupado muito com a proliferação desses “caixotes”. Você tem grandes paredões recebendo insolação durante o dia todo. Esses paredões se transformam em acumuladores térmicos. Ainda que se argumente que essas construções sejam remanescentes do modernismo, elas não adotam as soluções que o modernismo trazia como os brises (quebra-sol), as pérgulas, os beirais avançados, a projeção de sombra na parede. Nossa arquitetura de hoje não encontra soluções para a convivência com o calor. A gente se acostuma tanto com ar-condicionado que não sabe mais conviver com temperaturas mais altas, como nossos pais e avós. Eles se defendiam do calor com um traje mais adequado, horários de trabalho alternativos e a própria arquitetura tradicional piauiense, que tem muito a nos ensinar. Mas a gente ignora.

As escolas de arquitetura
são recentes e dedicam pouco
tempo para
a questão urbana
– o que é um
grande erro

Áureo – E o que a arquitetura tradicional piauiense tem a nos ensinar?

PV – Deveríamos dedicar mais atenção às casas de fazenda. Não somos sintonizados com essa herança de beirais altos, de pé direito amplo, muitas janelas, paredes grossas – que faziam um melhor rebatimento térmico. Eram casas construídas com referências de norte e sul sempre adequada. Preocupavam-se com a parede que recebe a insolação da tarde e conseguiam conviver bem com períodos de muita chuva e muita seca (ver box).

Áureo – Onde você vê algo que possa ser identificada como “a arquitetura do Piauí”?

PV – Vejo nessas casas de fazenda. Nosso processo de ocupação do espaço chamado Piauí foi através de uma economia essencialmente rural onde a casa de fazenda fazia as vezes de polo urbano. No seu entorno moravam agregados e, a partir dessa estrutura, tivemos a ocupação populacional do estado. Algumas dessas casas poderiam servir como uma rede de pousadas rurais, como existe em Portugal, Espanha, onde você pode ter contato com as origens, o mundo rural e casarios que são verdadeira preciosidade arquitetônica. Também vejo uma arquitetura piauiense na moradia popular, em casas de taipa e palha, que também têm um legado de conhecimento e técnica no processo construtivo. Tanto a casa de fazenda como a casa popular são arquiteturas que usam matéria prima local e tem o enfrentamento do calor. Essa arquitetura piauiense é pouco estudada.

André – O desenvolvimento das cidades costuma impactar a região do centro dessas cidades, onde há resquícios de uma arquitetura original, geralmente transformada em comércio ou demolida para estacionamentos. Que consequências isso pode ter para a ideia de identidade da cidade?

PV – Centro é uma palavra forte, né? (faz pausa). O centro é a nossa identidade, onde tudo começa, nossa matriz, é de lá que a cidade vai se esparramando e tomando corpo. Os centros urbanos vêm sofrendo crises, especialmente nas Américas. Eu diria que a Europa tem conseguido lidar com essa questão de forma mais consequente e, com isso, tem uma representação de identidade cultural mais vigorosa. Na Europa, é no centro que estão os principais equipamentos culturais, as referências históricas, antigas moradas, representações arquitetônicas, esculturas. Nas cidades das Américas o centro está sendo abandonado. O esvaziamento do centro vira degradação urbana. Em Teresina isso já é visível, mas ainda possível de ser revertido. Isso aconteceu com grandes cidades como Detroit, Nova York, Recife, Salvador, que adotaram alternativas como construção de shoppings no centro, transferência de equipamentos e demandas polarizadas, sejam comerciais ou culturais. Um dos grandes problemas de abandonar o centro é que ele já tem uma infraestrutura instalada – com água, luz, rede de comunicação. E essa rede começa a ficar ociosa. E o centro não funciona à noite, nem no final de semana. Tivemos um custo para implantar a infraestrutura e a cidade passa a não usufruir totalmente desse investimento.  Então é preciso levar gente para o centro.

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(Foto: Mauricio Pokemon)

André – E como fazer isso? Que outras soluções, além da transferência de serviços e equipamentos administrativos?

PV – É preciso que o centro seja habitado. Então políticas habitacionais podem ser facilitadas, com incentivos fiscais, redução ou liberação de impostos. Se pessoas moram no centro, você minimiza problemas com transporte. Há uma certa tendência a se pensar em barzinhos e centros culturais pra “animar” o centro, mas essa é uma possibilidade limitada. Não digo que não seja uma solução, especialmente em cidades turísticas. Mas não é só isso que vai resolver. Às vezes se buscam ações de maquiagem, vide o Pelourinho, em Salvador, que ficou lindo, mas logo depois voltaram todos os problemas. A gente precisa ter a transferência de atividades do dia a dia, movimento constante nas praças, o centro precisa ter vida porque ele é como o tecido humano –  se não for irrigado, entra em colapso.

Samária – Você conhece muitas cidades europeias e considera que elas estão resolvendo a relação com o centro melhor que as cidades americanas. É possível destacar alguma das alternativas aplicadas lá que possam ser adotadas nas cidades brasileiras?

PV – Nas cidades europeias muitos campi universitários ficam no centro das cidades. Que maravilhoso é isso! (fala entusiasmado). Você vai andando e ! – tá no meio de uma universidade! Você aparece no pátio, convive com os alunos, e eles estão na cidade! Aqui a Academia é ilhada do restante da cidade. Acho que alguns prédios públicos e áreas do centro poderiam ser reativados para uso das universidades.

Áureo – Que construções ou áreas seriam merecedoras de preservação em Teresina?

PV – Dou muita importância aos conjuntos arquitetônicos. Construções isoladas merecem destaque quando forem de muita relevância – seja porque aconteceu algo significativo ali ou porque se precisa de uma representação estético-arquitetônica de uma época. Mas os conjuntos têm um sentido coletivo e uma construção fortalece a outra. Temos um ou dois quarteirões na Frei Serafim ainda com a prevalência de casarões antigos, embora a avenida não tenha mais condição de preservação no seu conjunto. Algumas ruas do centro têm pequenos conjuntos de casas, como na região das ruas São Pedro e Olavo Bilac. Eu daria prioridade ao entorno das praças, como a Praça Pedro II, Liceu, Saraiva e João Luís Ferreira – todas ainda com casarios interessantes. O conjunto da Praça da Bandeira é muito significativo, apesar do desastre arquitetônico que é o Shopping da Cidade. A área tinha uma relação com o rio, que também era um elemento paisagístico, via de comunicação e abastecimento. Quando a praça surgiu, as cidades nem tinham essa tradição de avenida beira-rio. Mais do que uma praça, ali era um terreiro, um campo, um espaço integrado com o rio. O Shopping da Cidade chegou e rompeu isso.

Samária – É correto pensar que Teresina tenha pouco patrimônio arquitetônico a preservar?

PV – Se a gente comparar com outros centros mais antigos, pode pensar assim. Mas não se deve comparar, são coisas distintas. Teresina e Belo Horizonte, que são cidades mais novas, vão ter referências arquitetônicas que, no conjunto das cidades históricas, não seriam tão significativas. Mas Belo Horizonte tem um conjunto de arquitetura modernista belíssimo! Em Teresina temos arquitetura eclética e alguns elementos modernistas e art-déco. Cada cidade tem sua própria condição de valor patrimonial. Algumas áreas da arquitetura já foram mais preconceituosas e trataram algumas construções ou locais com certo desdém. Eu fui um bocado assim. Mas hoje acho que você não deve ter muitos preconceitos. Essa é uma das boas coisas que eu herdei da publicidade. Você aprende a ouvir e ver de tudo, buscando um senso de inserção do seu trabalho. A publicidade ensina você a experimentar pela visão do outro. Isso é muito importante para todas as profissões. Às vezes a gente se acostuma a ver as coisas de uma forma unilateral. Uma das coisas mais bonitas que existem na publicidade é o mergulho que o profissional tem que fazer em relação a outras realidades.

O conjunto da Praça da Bandeira é muito significativo, apesar do desastre arquitetônico que é o Shopping da Cidade. A área tinha uma relação com o rio. O Shopping da Cidade chegou e rompeu isso

Samária – Sobre os conjuntos habitacionais populares, como você, como arquiteto, olha para aquelas várias casas iguais, sem muita margem para o gosto ou personalidade de quem vai ocupar o imóvel?

PV – A sorte é que rapidamente as pessoas transformam essas casas, né? (risos). Talvez pudesse até se adotar uma política em que parte do financiamento já fosse reservada para o proprietário fazer as transformações que quisesse e a legislação permitisse. Mas o fato é que pra você construir em um custo baixo é muito complicado. Um dos maiores desafios do arquiteto é a habitação popular. Na mansão você dispõe de todos os recursos! O difícil é pegar 25 mil reais e fazer uma casa com condição de habitabilidade. Num primeiro momento eu considero que é inevitável a padronização, na medida em que isso implica em custos. Mas essa padronização pode ser minimizada por meio de pequenas interferências que impactem poucos nos custos, como mudanças cromáticas ou de alternância de espaço. Agora, quando eu digo que essas casas tendem a ser inevitavelmente iguais, eu não estou concordando com o modelo de arquitetura adotado nos conjuntos populares, que também é importado de outras realidades e transposto aqui. As casas de habitação popular em Teresina também devem atentar para os condicionantes climáticos e culturais. Nós temos a cultura da conversa na rua, da roda na calçada, então a gente poderia ter casas com terraços dando pra rua, buscando o resgate do espaço de transição do público e privado, que é uma característica própria da arquitetura popular espontânea. Você vai ao bairro Poti Velho e vê isso: o cara faz um puxadinho, coloca uns tamboretes, e ele conversa, interage, é como se fosse a sala na rua.

Samária  – E sobre a questão do tamanho desses conjuntos habitacionais?

PV – Esse é um problema maior, porque os conjuntos são feitos em grandes glebas, distantes da cidade.  O ideal seria ocupar pequenos terrenos na área já urbanizada, sem submeter as populações a distâncias malucas como o Conjunto Jacinta Andrade – que é uma aberração e também passou por todos: Governo Federal, Estadual, Municipal, Caixa Econômica. Até hoje os moradores do Jacinta Andrade estão ilhados! E existem espaços vazios enormes entre o conjunto e o restante do tecido urbano. Então se, ao invés de um Jacinta Andrade, fossem 30, intercalados no atual tecido urbano, a gente iria minimizar as distâncias e contribuir com o aumento da densidade urbana, inclusive diminuindo o efeito das casas repetidas, porque elas estariam inseridas em outro contexto já preexistente.

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(Foto: Mauricio Pokemon)

André – Sendo professor de universidade pública e particular, você percebe diferenças na formação entre os que estão numa escola pública e os que estão numa particular?

PV – Vejo diferenças, mas não acentuadas. Nem sempre o aluno da escola particular está no curso por uma questão vocacional. Parte desses alunos atende a uma demanda dos pais. Existe um pouco de espírito de ensino médio e alguns alunos tendem a ser mais imaturos e a ter um processo de formação cultural mais limitado. Já na universidade pública o aluno tende a ser menos paparicado, ele tem que se virar, já há uma clara ruptura com o ensino médio.  Mas tanto na universidade particular como na pública, vejo alunos de excelência.

André – Como professor você tem métodos não muito convencionais. Viaja com turmas de alunos, dá aulas nos bairros, circos, mercados. Por que você defende esses métodos de ensino?

PV – Porque aula é muito chato (risos). Então você tem que buscar alternativas de gerar conhecimento, tratar criticamente os assuntos, com atividades diversas. E tem que ir para outros ambientes e saber que não há uma receita só. O que funciona numa turma, não funciona noutra. As viagens devem ter um sentido de conhecimento in loco, onde elementos do local possam interagir com conteúdos ministrados em sala, ainda que essa interação nem seja explícita. A viagem contribui com o processo de formação crítica do aluno. As universidades deveriam incentivar mais as viagens, mas há um certo preconceito, porque algumas terminam sendo meramente de passeio. O professor deve ter alguns cuidados, mas não pode burocratizar a viagem. Transpor o ambiente da sala para a viagem é um erro. Tem gente que chega na cidade e vai para um auditório! Assim não precisava viajar (risos). Viajar é uma oportunidade única para você ter aula no coreto da praça, na rua, no cemitério.

André – Por falar em viagens, na vida pessoal você é um viajador quase compulsivo. Qual o significado de viagem pra você?

PV – Viagem é um processo de renovação, de vida, de aprendizagem. É você sair de uma realidade em que vive cotidianamente e se transpor para outra, e experimentar coisas novas, que podem ter um significado importante de ordem pessoal ou profissional. A viagem nos expõe a encontros com pessoas, soluções, paisagens, elementos estéticos. E tanto faz que a viagem seja para uma cidade estrangeira ou para o interior do Piauí. Você tem que andar pela cidade, conviver. Você sempre vai encontrar elementos novos, próprios daquela cidade. Cada lugar tem sua personalidade.

André – Existem cidades na Europa que, para nossos padrões, podem ser muito pequenas, com cerca de cinco mil habitantes. No entanto essas cidades possuem tudo o que é relevante e necessário para que as pessoas tenham uma vida confortável ou prática. No Brasil, normalmente uma cidade de cinco mil habitantes é um vilarejo que tem pouco a oferecer. Por que essa diferença é tão grande?

PV – Pensar uma cidade é buscar qual a sua contribuição produtiva, sua inserção na economia, o que ela produz e gera, como consequência, uma condição de renda para sua população. As pequenas cidades da Europa tendem a ser vocacionadas para alguma atividade econômica. Elas se especializam na produção agrícola, vinícola, atividades pesqueiras, indústrias de um determinado ramo. Com isso se tornam viáveis. Na maioria das pequenas cidades do Nordeste não há uma linha de contribuição econômica estruturada, com trabalhadores treinados. Grande parte dessas cidades está voltada para a agricultura de subsistência, sem condição de competir no mercado. No interior de São Paulo, Minas, Paraná, existem cidades especializadas em produzir vassouras, bonés, edredom. Então a cidade é pequena, mas tem uma substância econômica e, com isso, vai ter uma condição de vida melhor. A França tem mais de 30 mil comunidades enquanto o Brasil tem pouco mais de cinco mil cidades – é mais de seis vezes a quantidade de municípios do Brasil numa área muito menor!  Muitos países adotam uma política de manutenção das pequenas e médias comunidades, subsidiando esses centros para que se tornem viáveis, porque eles entendem que a acumulação da população em grandes cidades traz custos muito altos para as ações governamentais.

Samária – De todos os locais que já conheceu, qual a cidade mais gostou?

PV – Como turista, Veneza, porque é diferente de tudo. Mesmo que você já tenha visto muito na mídia, Veneza sempre lhe surpreende. Em relação a patrimônio, me impressiona o conjunto arquitetônico de Florença, que tem um traço humano pensado, fruto de articulação intelectual estudada e consequente. Como viajante, fico com as cidades do interior da França – a região da Provença, Arles, Alsácia, Estrasburgo, Riquewihr. No Brasil destaco Ouro Preto e seu conjunto. As cidades que mais me fascinam são as de pequeno e médio porte, porque elas se mostram ao viajante em sua plenitude. Eu fico muito comovido.

André – O filósofo Anthony Appiah, especializado em estudos culturais, pesquisa os movimentos humanos nas grandes cidades e tem se preocupado com a convivência entre as pessoas. Ele lamenta que as cidades superpopulosas começam a significar um problema, mais do que urbano, humano. Appiah considera que o ser humano tem dificuldades para viver em espaços com mais de um milhão de habitantes. Acima dessa quantidade, as pessoas já não se sentem próximas e tendem a ser mais violentas, indiferentes ou menos corteses. Isso faz sentido?

PV – Muito sentido. Incentivar uma rede de cidades de porte médio pode ajudar a conter o fluxo migratório, a diluir os problemas urbanos e pode contribuir com a qualidade de vida, que tende a ser maior nas cidades menores e bem estruturadas.  O processo de metropolização é próprio das economias de mercado e o capital tende a buscar os maiores mercados. Por essa lógica, só os grandes centros se autoviabilizariam, né? Mas ao mesmo tempo estamos assistindo a saturação das maiores cidades. Em São Paulo você se torna invisível para o outro e vice-versa. Acho que em Teresina a gente ainda conhece muita gente. Mas estamos chegando num limiar.

André – Não lhe parece que somos vítima de um fetiche do tipo: “eu só vou ser feliz na cidade grande”?

PV – Parece que estamos perdendo a oportunidade de interagir nas nossas grandes cidades. Eu sinto que nas pequenas comunidades as pessoas são… felizes!  (após pequena pausa, diz a última palavra com ênfase).

 

Nem casa-grande, nem senzala

O interior do Piauí tem cerca de cem casas de fazenda, cada uma com uma média de 250 anos – embora a datação seja imprecisa, pois nem sempre os imóveis rurais mais antigos têm sustentação documental adequada. Algumas dessas casas de fazenda abrigavam em seu interior agências dos Correios, comércio de pequenos produtos e outros serviços. Muitas são cercadas por outras menores, geralmente pertencentes a vaqueiros e trabalhadores da fazenda. Há uma hierarquia entre essas casas, geralmente identificada pelo teto – de telha ou palha. E mais: alguns desses imóveis chegam a ter 100 aposentos na casa principal – acredite!

Todos essas curiosidades fizeram com que o arquiteto Paulo Vasconcellos elegesse as casas de fazenda como objeto de estudo para a pós-graduação em Arquitetura. Ao significado cultural que essas casas têm, pois foram a base do processo de desenvolvimento econômico do Piauí, ele somou os estudos sobre a sabedoria da construção, com o uso de matérias primas locais e técnicas para enfrentar as condições climáticas.

Com uma fonte econômica mais extensivista e menos agrária, o Piauí terminou por adotar um modelo que diferia da condição tradicional de casa-grande e senzala. “A atividade de cuidar do gado exigia que os empregados das fazendas ficassem desgarradas da casa maior. O vaqueiro precisava de certa liberdade para trabalhar”, afirma Paulo.

Para cuidar de toda a área da fazenda, eram construídas casas secundárias do mesmo proprietário, cada uma com outro conjunto de casas em volta de si. A fazenda Abelheiras, com sede em Campo Maior, chegou a possuir 11 conjuntos de casas de vaqueiro.

Em suas pesquisas, Paulo visitou cerca de 40 casas de fazenda no interior do Piauí e Maranhão, algumas em bom estado de conservação. O que fazer com esse patrimônio quase desconhecido? O arquiteto sugere que elas podem servir a um turismo de tipo rural, transformando-se em pousadas. E lamenta: “A arquitetura tradicional piauiense tem muito a nos ensinar. Mas a gente ignora”.

 

(Publicada na edição #15 – julho/agosto de 2014)