(Participaram dessa entrevista: Wellington Soares, Samária Andrade, André Gonçalves e Maurício Pokemon)
Um dia em São Paulo, outro em Paris. Também pode ser em Belém do Pará, Veneza, Recife, Tóquio. No dia dessa entrevista estava em Fortaleza, Ceará, concluindo um dos cursos que ministra sobre fotografia e arte contemporânea. Eder Chiodetto, paulista, 50 anos, descendente de avós italianos, percorre o Brasil e o mundo: pesquisando, orientando cursos, tentando descobrir e estimular novos artistas, assinando a curadoria de exposições.
Ele vem de uma carreira sólida como fotógrafo, crítico e editor de fotografia em um dos maiores jornais brasileiros, a Folha de São Paulo. Com 13 anos de casa e em ascensão profissional, largou tudo e, na metade dos anos 2000, começou a trilhar o caminho que lhe levaria às pesquisas e curadorias. “Eu mesmo me assustei quando me sugeriram que eu podia ser curador. Isso nunca foi um projeto meu, ou nunca foi uma intenção clara. Eu nem sabia como se organizava uma exposição, o que fazia um curador”.
E o que é um curador? É ele mesmo quem explica no livro eletrônico de sua autoria, “Curadoria em Fotografia – da pesquisa à exposição”, produzido graças ao Prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia 2012: “A palavra ‘curador’ deriva do latim “curatore”, cujo significado mais próximo em português é ‘tutor’, ou seja, ‘aquele que tem uma administração a seu cuidado’”.
Disponível para download (ederchiodetto.com.br), a peça pretende “dar uma contribuição à ainda incipiente bibliografia sobre curadoria em geral e, mais especificamente, sobre curadoria em fotografia”, segundo o próprio autor. O livro traz exemplos reais de cerca de 60 exposições que Eder realizou como curador até a data da publicação. Há trabalhos no Brasil, Paris e Japão.
Embora natural, pela própria inquietude e vontade de novidades que alimentam Eder, mudar de editor de fotografia de um grande jornal para curador iniciante não foi fácil. “Eu tinha um salário estável, precisava me manter, tinha o lado prático da vida”. Mas também não era a primeira vez em que ele se arriscava. Aos 19 anos, morando em Santos, o garoto já era funcionário concursado da Petrobras, onde trabalhava como técnico em hidrocarbonetos. Foi nessa época, em meados da década de 1980, que viu uma reportagem sobre a abertura de uma mostra de fotografia em uma galeria em Santos. Era uma exposição de trabalhos de alunos do fotógrafo Araquém Alcântara, além de uma individual do professor. “Fiquei tão impressionado que Araquém me convidou para conhecer seu escritório. Fui até lá no dia seguinte e me inscrevi no seu curso. Um ano depois estava me formando e também expondo com os colegas”.
Chiodetto se mudou para São Bernardo do Campo e foi estudar Jornalismo. Júlio Veríssimo, professor do curso e editor de um caderno regional do jornal Folha de São Paulo, gostou de suas fotos e lhe convidou para ser freelancer no jornal. Em pouco tempo era fotógrafo contratado, largando na Petrobras um salário cinco vezes maior. “Aceitei na hora. Era um sonho trabalhar na Folha!”.
Ele ascendeu na profissão e, em 2002, tornou-se editor geral de fotografia, escrevendo também críticas sobre o tema. “Embora fosse o topo da carreira naquele contexto, foi o período menos interessante profissionalmente”, avalia. “As funções administrativas me tiraram a possibilidade de pensar as imagens e as pautas de forma mais criativa e mesmo o ímpeto de escrever. Foi o fim de um ciclo”.
Buscava agora pensar a fotografia fora do contexto do fotojornalismo diário. Interessou-se pela pesquisa, fez mestrado na USP (Universidade de São Paulo), montou seu próprio ateliê (Fotô Produção e Consultoria em Imagens), tornou-se Curador de Fotografia do MAM – Museu de Arte Moderna de São Paulo, e hoje está na posição de ser um dos curadores mais requisitados no Brasil, especialmente em fotografia contemporânea. “Eu não percebia ainda, mas havia vida fora do jornal” (risos).
Com jeitão despojado, voz grave, quase sempre de bermuda, quase dois metros de altura (1m94), ele chama a atenção por onde passa. Não parece fazer esforço para isso. Em Fortaleza, apenas como convidado na exposição do artista paraense Rodrigo Braga (aberta no Museu de Arte Contemporânea, Dragão do Mar, dia 29 de outubro), atraia os olhares e as presenças, como libélulas em busca de luz. O que será que ele está achando? “Rodrigo é maravilhoso!” – solta o comentário de modo quase aleatório, enquanto se tenta “pescar” sua opinião.
Na manhã seguinte, Chiodetto conversa com Revestrés no hotel onde está hospedado, na Praia de Iracema. Na recepção, quando perguntamos por ele, a resposta vem em bom cearês: “é um bem altão, né?”. A entrevista acontece sem cerimônias na mesa do café da
manhã, enquanto ele se serve de frutas e cuscuz de milho com ovos mexidos. Faz algumas pausas, como se elaborasse o pensamento. As respostas invariavelmente vêm sinceras, sem descuidar do espírito crítico e com certo bom humor, algumas entremeadas por um riso entre o grave e o irônico.
Ele fala de arte, fotografia, arte contemporânea, resistências e dos demônios que se tem que enfrentar a cada dia.
André – Vou começar por uma pergunta bem fácil. A fotografia, em seus mais de 170 anos, já foi muita coisa. Na segunda década do século XXI, o que podemos considerar como o que seja “fotografia”?
Eder Chiodetto – essa é a fácil?! (risos. Faz pausa e continua). Falando de uma forma simbólica, que é por onde eu gosto de trafegar na fotografia, acho que ela é nossa resistência em aceitar as perdas, nosso artefato afetivo que tenta, por todas as contas, deixar os vestígios de nossa passagem. É a loucura da fixação da nossa história no tempo. Acho que desde que surgiu, esse seria o moema da fotografia. Mas acho que ela representa grande parte da aventura humana, da dificuldade que temos de nos aceitarmos como vulneráveis. Sempre fico assustado quando penso que a fotografia, por mais banal que possa ser, tem a capacidade de sobreviver a todos nós. Mesmo em um mundo com excesso de imagens, todo gesto fotográfico, cada clique, está sempre perpassado pelo pavor e a poesia de nos sabermos vulneráveis.
A arte contemporânea consegue nos tirar do formato automatizado em que vivemos, meio robotizados, direcionados por uma racionalidade. Ela trai tudo isso, ironiza, faz a gente enxergar a vida por uma angular maior.
Samária – O seu trabalho em fotografia hoje está muito ligado a arte contemporânea. O que você considera que seja a função da arte contemporânea?
EC– A arte contemporânea consegue nos tirar do formato automatizado em que vivemos, meio robotizados, direcionados por uma racionalidade. Ela trai tudo isso, ironiza, faz a gente enxergar a vida por uma angular maior. Através da arte contemporânea, e da arte em geral, a gente consegue perceber as outras dimensões do viver. Viver sem arte seria algo muito terreno, seria não entender a vida. A arte me catapulta a um outro universo (faz pausa)… que é onde, na verdade, eu prefiro viver (risos).
André – Pode-se perceber certas resistências a determinadas manifestações artísticas, em especial as chamadas artes contemporâneas. O que causa isso? Trata-se de um desconhecimento ou preconceito? Por que existe uma desconfiança sobre a arte em suas manifestações menos formais?
EC – Seja qual for, a arte necessita de alguns códigos de acesso. E esses códigos exigem certa sensibilidade, mas sobretudo um desejo de querer deslizar por eles. Pessoas com uma racionalidade exacerbada têm maior dificuldade de conseguir transitar entre códigos mais complexos. Não que a arte seja necessariamente codificada de uma forma complexa, existem vários tipos de manifestação. E também é importante salientar que o acesso a arte se dá por pessoas de vários níveis culturais. O divisor não é sócio econômico, é mais uma sensibilidade que vai sendo lapidada com o tempo. Mas a arte exige a capacidade de estar disposto a se deixar permear pela poética, pela proposta. E a gente vive um momento muito duro, né? (fala lamentando). As pessoas querem tudo mastigadinho, não têm tempo ou paciência. A gente vive numa velocidade grande e com muita circulação de dados. Então tudo o que pede para ser degustado paulatinamente encontra dificuldade. As novas gerações têm dificuldade com a literatura, por exemplo, porque ela pede que você esteja sozinho, em silêncio, imerso num mundo particular. A gente vive a fantasia de que está conectado o tempo todo, de que é possível estar em qualquer lugar do mundo a qualquer momento. Na verdade isso nos fragiliza, porque nos tira do centro, da possibilidade de uma concentração, de estarmos absortos.
André – Ainda falando em resistências, recentemente você divulgou uma oficina que está realizando junto com Pinky Wainer que tem como tema “Machucar a fotografia”. Então alguém comentou que isso não se trata de fotografia. Você acha que a fotografia deve obedecer certos cânones que devem permanecer intocáveis? Os fotógrafos brasileiros resistem à entrada de interferências na fotografia?
EC – Eu acho de uma ignorância atroz você atuar numa linguagem e achar que todo mundo tem que obedecer a seu padrão. Se você me fala: “Eder, eu gosto de preservar o enquadramento”, eu vou falar: “Pô, vai no seu caminho”. Se outro me fala: “Eu fotografo mas depois apago, pinto, rasgo e jogo a fotografia pra cima”, “Se isso tá na sua verdade, eu dou a maior força”. Qualquer corporativismo que queira determinar um uso da linguagem como “o” correto é uma grande bobagem. Eu vejo pessoas vociferando “isso pode, isso não pode”, e tentam parecer que isso seja um sentimento coletivo, quando na verdade pode ser uma dificuldade pessoal que externam buscando representar uma classe, quando isso não é uma verdade. Linguagem é um organismo vivo! Ela só enriquece quando a gente a contradiz, abusa dela, respeita códigos, desrespeita códigos. Você vai alimentado a linguagem e ela vai virando um lexo mais complexo e interessante de se usar. Tudo pode, desde que seja justificado, conceitualmente, poeticamente, por uma verdade interior. Então existe um jeito certo de se fazer? Vamos ser todos Cartier Bresson para o resto da vida? (fala com ênfase. Depois continua como se tivesse se divertindo). A fotografia é um bicho muito danado, né? Ela vai se transfigurando no que a gente quer. Ela é documento, anti-documento, arte, registro. Ela pode ser o que a gente quiser. A fotografia enlouquece as pessoas que querem colocá-la numa caixinha. Ah, vamos quebrar as nomenclaturas! A fotografia é uma linguagem viva, pulsante, contraditória!
Maurício – Que critérios você costuma usar para fazer a edição de um ensaio fotográfico ou uma curadoria?
EC – Quando um fotógrafo ou uma instituição me chamam para conhecer seu acervo e pensar um projeto, eu adoro imaginar que estou preste a mergulhar no mar. E a metáfora do mar é interessante porque não há caminhos pré-definidos, mas você sabe que está partindo de um lugar com a ideia de chegar a algum porto. Entre a origem e o destino há um caminho a ser traçado e, nesse caso, não necessariamente o caminho mais curto. Mas um caminho que me leve para uma correnteza potente daquele trabalho, que eu chamo de descobrir as “linhas de força”. Então o meu critério seria olhar o acervo, entender os caminhos desse artista e traçar as linhas de força que deixem a poética do trabalho mais vibrante. Dentro dessas linhas de força faço relações e encontro o que seria o núcleo de um livro, uma exposição. Essa busca vem imantada de várias questões: como o trabalho dialoga com as referências do autor? Como dialoga com a história da linguagem a que o artista se propõe? Como reflete questões originais? Eu sempre gosto de clarear isso.
André – A Curadoria de arte tem crescido em importância e poder e pode-se perceber certa tensão nos papéis que passam a ocupar artista e curador. Pra você, qual o papel do curador? E qual a importância dele para o artista?
EC – Eu já ouvi afirmações de que agora só existe exposição de curador e o artista ficou em segundo plano. Com certeza tem algumas verdades aí, mas é tudo relativo e dialético. Obviamente tem artista bom, como artista ruim; tem curador bom, como curador que extrapola suas funções. O curador deve tentar entender o conceito do artista, avaliar como isso reverbera, ajudar a pensar desdobramentos e, de alguma forma, potencializar o trabalho desse artista. A ação do curador deve ser mediar, da forma menos ruidosa possível, os pontos de contato entre a poética do artista e o imaginário do espectador. Quando demasiadamente impositivas, as hipóteses da curadoria podem incorrer no risco de ignorar a capacidade de imaginação e interpretação do público. É preciso pensar a obra como estímulo, como ponto de partida, como trampolim. As estratégias de persuasão que o curador elabora, devem permitir ao público um salto seguro. Mas não excessivamente seguro. É como segurar um pássaro sabendo que se pesar a mão pode matá-lo e que afrouxá-la demais pode deixá-lo escapar. Além de dialogar com o público, outra função do curador é no diálogo com o artista, para que o artista não se debata sozinho. Por vezes, o artista orbita em torno de seu centro de criação de forma tão intensa que pode se tornar difícil trazer à tona seus debates interiores a fim de expor o trabalho. Costumo dizer que gosto de trabalhar com artistas em crise, pois essa crise raramente é sintoma de falta de criatividade, mas de necessidade de diálogo, de construção de pontes e atalhos que permitam clarear questões internas da obra.
Samária – No trabalho como curador você é procurado por pessoas desejosas de serem artistas. Existe algum conselho que acha importante oferecer a essas pessoas?
EC– Se você quer desenvolver a fotografia como uma linguagem autoral, meu conselho é: “esqueça a fotografia”. Vá para o cinema, a literatura, a filosofia. Seja curioso! Faça com que a vontade de fotografar lhe leve a ter vontade de se autoconhecer, porque só a partir daí a sua fotografia pode aparecer um dia. Depois disso, faça um curso técnico, aprenda a manusear o equipamento, porque você vai precisar, é meio como dirigir um carro. Mas a fotografia não acontece na fotografia, ela acontece dentro de você! E para que aconteça dentro de você, precisa haver uma base mais sólida, o que vai lhe levar, inevitavelmente, a conhecer o mundo e a si mesmo.
Samária – Você vinha numa carreira ascendente no jornalismo, ocupando cargos e funções importantes em grandes jornais. Foi difícil romper com isso e abrir um novo caminho?
EC– Eu entrei na Folha como fotógrafo freelancer do Folha da Tarde, que era o segundo jornal da casa. Quatro anos depois fui para a Folha de São Paulo. Fui editor assistente, editor adjunto, editor geral de fotografia, e nesse tempo já escrevia as críticas na Ilustrada. Esse percurso todo levou 13 anos. Pela minha natureza inquieta, não consigo ficar muito tempo fazendo a mesma coisa, isso vai me deprimindo. Então, passado esse ciclo, a minha saída do jornal foi natural, ainda que fosse traumática por questões financeiras. Eu deixei de ter um salário estável, precisava me manter, tem todas as questões práticas. Eu não percebia ainda, mas havia vida fora do jornal (dá o sorriso mais demorado da entrevista). Eu já estava começando a ser chamado para fazer curadoria e levei um grande susto com isso. Ser curados nunca foi um projeto meu, ou nunca foi uma intenção clara, até porque, na metade dos anos 90, ser curador no Brasil era algo nebuloso. Mas isso aconteceu na minha vida num momento bem interessante: foi quando a fotografia brasileira dava um salto, começava a ter maior visibilidade, os fotógrafos começavam a entrar nas galerias, e eu, que havia sido fotógrafo, era crítico, editava e escrevia sobre fotografia, acabei sendo reconhecido como uma pessoa que podia fazer aquilo, embora eu não fosse consciente disso. O jornalismo foi uma grande escola: de agilidade, forma de pensar, ética. A Folha era um jornal exigente quanto à qualidade, bom gosto, precisão. Eu trago isso comigo, tanto que sou conhecido no mercado como alguém que é capaz de fazer coisas rápidas e com qualidade.
Wellington – Ainda trabalhando na Folha você fez uma série de entrevistas com escritores brasileiros que viraram o livro e a exposição de fotos “O lugar do escritor”. O que de mais interessante ou original você descobriu ao entrevistar grandes nomes da literatura brasileira?
EC – Escrever, para mim, sempre foi como me lançar num precipício, aquela sensação de perda de si mesmo, sabe? Eu fui o adolescente que escrevia poesias. Aí fui fazer jornalismo por conta disso. E saí do jornalismo por conta disso também (risos). Quando fui entrevistar os maiores escritores brasileiros da época, eu queria saber como era para eles enfrentar a página em branco, porque para mim é sempre enigmático, eu nunca sei exatamente para onde ir, até que algumas palavras se mostram e eu começo a trilhar um caminho, que muitas vezes surpreende a mim mesmo ou a minha racionalidade. Eu queria saber como era para esses escritores: é fácil? Difícil? Existe algum ritual que ajude a escrever? Talvez eu tivesse a fantasia de que, depois de entrevistar Jorge Amado, Rachel de Queiroz, João Cabral de Melo Neto, Moacir Scliar, Hilda Hilst, eu ia sair com uma receitinha do bolo mais ou menos prática, né? E aí foi muito curioso porque percebi que cada um deles habita um inferno diferente. Cada um lida diariamente com a sua obsessão, e cada um tem um modo de resolver as questões que no dia seguinte voltam, e pedem para ser resolvidas a partir do zero! (fala com ênfase). Foi maravilhoso perceber isso! Você se dá conta de que alí é a alma humana sendo fustigada para encontrar o caminho do ato criativo. Isso me impactou muito. E também me libertou. Eu me cobrava uma lógica: “você senta aqui, e tem duas horas, e escreve esse texto, e pronto”. Claro que no texto jornalístico isso é fato. Você senta, escreve e acabou! Se tiver inspiração, melhor, mas se não tiver o jornal tem que sair do mesmo jeito. Agora, quando eu escrevo crônica ou um texto de curadoria, tenho outro tempo. A pressão que hoje eu me ponho para escrever me ajuda a ativar um processo mental que, na verdade, já é uma pré-escrita (faz uma pausa mais longa). Mas a sensação de se jogar no precipício continua, viu? (risos). O prazer que eu tenho quando fecho um texto e ele vibra como eu gosto, é indescritível, é um nirvana, muito mais do que fotografar. Foi isso que me levou a deixar de fotografar e virar curador, pesquisador, editor de imagens, escritor sobre esses assuntos – isso tem sido a minha substância (nova pausa demorada e continua decidido). Agora, não é porque você faz muito que fica fácil. Não fica. Fica mais difícil.
Samária – Talvez por isso você continue gostando, né?
EC – Pois é (risos). É um joguinho. Você marca um ponto e no outro dia tem uma nova configuração.
Samária – E como você está vendo a relação entre a fotografia e o mercado. Há espaço para a venda da fotografia?
EC – Desde a década de 90 o mercado da fotografia tem crescido a ponto de hoje não fazer sentido que se tenha eventos específicos para promover a fotografia, sem que ela esteja ligada a outras áreas, até porque muitos artistas estão fazendo fotografia, vídeo, escultura, instalações. Mas eu percebo que o Norte e Nordeste do Brasil têm mais resistência em comprar fotografia. Esses locais costumam valorizar mais a pintura e a escultura. Mas acho que isso tá sendo superado. O número de fotógrafos que integram o staff das galerias mais importantes do Brasil já é enorme, há coleções particulares que priorizam a fotografia. Se a gente comparar o panorama de hoje com o de dez anos atrás, a mudança é grande.
Samária – Sobre as coleções particulares, você tem uma atuação ajudando colecionadores a escolherem obras, o que não deixa de ser uma atuação na formação do gosto dessa pessoa. Como isso funciona?
EC – Minha principal atividade nessa área é no MAM (Museu de Arte Moderna de São Paulo), onde sou curador do Clube de Colecionadores de Fotografia. Uma das funções do Clube é ativar o colecionismo, trazer novos colecionadores para o mundo da arte. A cada ano, seleciono cinco artistas, cada um com uma obra. Essas cinco obras vão pra cem colecionadores. Isso é bacana porque gera um movimento, instiga as pessoas a terem suas coleções. Também oriento alguns colecionadores particulares. É um trabalho que gosto porque, como pesquisador, tendo entender esse colecionador. Não me atrai o colecionador que só pensa em investimento. E acho que nem eu atraio ele também (risos). Mas eu tento entender o que vai fazer com que aquele colecionador se apaixone pela sua coleção, tento traçar um perfil. Há alguns que se interessam mais por arte política, outros se encantam por documentário do imaginário. Isso eu vou descobrindo conversando, entrevistando essa pessoa, e dessa forma eu consigo ir auxiliando.
André – Você está sempre circulando por regiões fora do eixo Rio-São Paulo, mantendo contato com áreas mais distantes do chamado centro, onde também há grande produção. O que você encontra nessas regiões ditas mais periféricas que não encontra no centro, já que hoje, as referências são praticamente as mesmas?
EC – Tende a existir uma certa homogeneização naquilo que “pauta” os artistas, justamente pela globalização, possibilidades permitidas pelas tecnologias de informação e tudo mais. Mas eu percebo que quem mora em regiões mais periféricas costuma ser mais ligado a questões sociais da região, as relações, aos modos de vida daquele lugar. Nas grandes cidades os trabalhos tendem a ter um caráter mais subjetivo, de autoquestionamento. É curioso perceber essa marcação e me interessa mesclar esses dois mundos.
A ação do curador deve ser mediar, da forma menos ruidosa possível, os pontos de contato entre a poética do artista e o imaginário do espectador.
Wellington – Para os artistas que estão fora do centro, por exemplo: Piauí, Roraima, Acre – como eles podem acontecer? Eles conseguem ser reconhecidos sem sair de seus lugares?
EC – Há vários programas, como o Rumos, do Itaú, que tendem a levar pesquisadores para essas áreas na busca de ativar ou tentar descobrir o que tá sendo produzido ali. Mas acho que nunca foi fácil acessar outros centros para mostrar um trabalho. Paulo Herkenhoff virou um curador que tem se voltado para pesquisar a região amazônica, o Norte e Nordeste mais profundos, e tem feito um grande trabalho nesse sentido. Mas a gente ainda tem um grande fluxo de artistas que saem desses lugares e vão para os maiores centros tentando dar visibilidade a seu trabalho, ainda que isso, muitas vezes, acabe enfraquecendo a força que o trabalho tinha quando local. Esse é um jogo de forças que vai continuar a existir.
Maurício – Você percebe alguma região no Brasil que esteja produzindo um trabalho consistente, que numa visão de médio prazo possa se projetar?
EC – Num primeiro momento a gente tinha São Paulo, Rio de Janeiro e Belém como os mais fortes centros produtores de fotografia no Brasil. Hoje vejo que em Minas, Recife e Porto Alegre há uma geração nova surgindo com muita intensidade. De uma maneira geral, no Brasil, a geração pós 00 tá frutificando e já espalhada pelo mapa, o que é muito saudável.
Maurício – Seu interesse pela fotografia se deu através de uma visita a exposição de Araquém Alcântara, em 1986. Depois de quase 30 anos é lançada a coleção Ipsis de fotografia brasileira, com coordenação sua e trazendo Araquém no primeiro volume. Como você avalia a produção e percurso desse fotógrafo?
EC – O Araquém é quase meu pai (risos). É o primeiro cara com quem fiz curso, nos tornamos amigos e houve uma inversão: ele foi meu professor e eu me tornei editor dele. O Araquém é de uma geração de fotógrafos combativos, um dos primeiros caras a sair de redação pra tentar ter um trabalho autoral, e num momento em que não tinha mercado. Então ele se virou dando cursos, fazendo fotografias para empresas – tudo pra fazer a documentação que lhe interessava. E se tornou um dos fotógrafos mais importantes do país em flora, fauna e cultura popular. Ele é um dos grandes oceanos nos quais costumo mergulhar. E conheço vários Araquéns ali dentro. Às vezes ele é criticado por ter feito livros sob encomenda para empresas, explorando uma cara de Brasil exótico. Mas esse foi um preço que ele teve que pagar para se inserir no mercado e fazer o que queria. Ele tem um olhar especial, é um cara que lê luz como poucos. E é um filósofo, reflete sobre o próprio trabalho, é consumidor de poesia, cinema. O trabalho dele vem permeado de tudo isso e ganha grande densidade.
Wellington – Parafraseando Simone de Beauvoir, podemos afirmar que ninguém nasce fotógrafo, torna-se fotógrafo? Ou seja: o fotógrafo nasce pronto ou é uma construção?
EC – Eu conheço excelentes fotógrafos que não fotografam, fazem outras coisas: manifestam o olhar através da fala, da escrita. Acho que fotografar, na verdade, é ter pontos de vistas elaborados e pessoais. Essas são as pessoas com quem eu gosto de conviver. Mas eu não sei se já nascem prontos (pausa). Acho que tem o ânima, mas o meio é muito importante também para transformar as pessoas. Você nasce fotógrafo desde que perceba que nasceu fotógrafo (risos).
Samária – Eu lhe perguntei se tinha sido difícil a sua mudança de jornalista da Folha para Curador de fotografia e arte, mas na verdade você já muda há um bocado de tempo, né? Aos 19 anos era funcionário concursado da Petrobrás. Existe alguma coisa daquele garoto de 19 anos ainda hoje?
EC – ah, existe! (faz a maior pausa). Existe o mesmo desconforto saudável, a vontade de querer descobrir o mundo, querer fazer coisas novas, acreditar num sentido mais sensorial das coisas. Aquele garoto de 19 anos era o que escrevia as poesias (risos). Então quando eu me vejo hoje, preocupado com o formato do texto da curadoria, é aquele garoto que fica me cutucando, querendo me levar para um outro lado. Eu não tenho dúvida disso.
“Se ouvíssemos estas fotografias falarem, o que elas diriam?”
Pesquisar e escrever textos sobre a obra de artistas para espaços na própria exposição, livros e catálogos, é um dos trabalhos que mais têm agradado Eder Chiodetto. Alguns dos catálogos das exposições em que faz curadoria são tão disputados que se esgotam. O próprio curador, para ter certo catálogo em seus arquivos, teve que comprá-lo por cerca de R$ 300,00.
Esse tipo de texto é a oportunidade do curador falar com o espectador. E há vários mistérios aí. Para Chiodetto, escrever sobre arte em locais projetados para atrair grande público pede textos em certa medida didáticos, mas que incitem as pessoas a se interessar pelas obras expostas e mostrem a elas como a arte pode ecoar sobre determinados aspectos de suas vidas.
Ele afirma que tenta evitar textos herméticos e que, em determinado momento começou a se questionar sobre o lugar de onde o curador deve falar. Recusa a fala que parece vir de um ser soberano que detém o saber e o descreve de forma confusa, podendo se tornar mais hermético que a própria obra exposta.
Buscando tatear modos a partir das quais pudesse abordar determinado conjunto de fotografias, começou a imaginar que não deveria escrever “sobre” a obra, mas sim, “da” obra. “Se ouvíssemos estas fotografias falarem, o que elas diriam?”.
Abaixo, o texto de exposição que Eder Chiodetto fez para Dark Room, de Carlos Dadoorian.
“Apague a luz e me veja. Teu melhor olho é a mão. Mania tola essa sua de insistir em se colocar diante de lâmpadas, do espelho, dos olhos dos outros, de checar a olheira no retrovisor, se olhar no reflexo da vitrine. Argh! Tá querendo ver o que, se tudo o que você enxerga tá impregnado de você mesmo, das certezas que você criou para um falso conforto em horário comercial? Não é só porque você inventou esse mundo claro-careta para brincar de civilizado, que precisa acreditar nele, né? Argh!
Tá fingindo que não é o tesão que te comanda? Tá claro? Beba que logo escurece. Beba que a sombra vem. Beba!!! Aqui nesse Dark Room a vida vem em sobressaltos, com o tempo morto eliminado. Vida anfetamínica. Supra sumo de prazers, obsessões, gozos, fluídos, êxtases. Que porcentagem de tempo-prazer se vive no tempo-relógio de uma vida? Aqui o artista elimina os hiatos, os passatempos, o tédio, o entre. Restam gemidos, suores, subterfúgios que aceleram o pulso. Viver como cinema, como fábula para recriar-se no dark room da câmera, do laboratório, do cinema, do quarto. Vem logo! Apaga a luz que te ofusca e acende o escuro que te ilumina.”
(Publicada na Revestrés#22, setembro/outubro de 2015)