PARTICIPARAM DESTA ENTREVISTA: André Gonçalves, Maurício Pokemon, Samária Andrade, Wellington Soares. Convidado: Kássio Gomes – presidente da Fundação Quixote, promotora do Salipi (Salão do Livro do Piauí), professor de literatura e história da arte, editor de livros, vereador no município de Valença do Piauí. TEXTO E EDIÇÃO:  Samária Andrade. FOTOS: Maurício Pokemon (via Zoom).

Ignácio NÃO é um homem comum que come, dorme, mija, anda, corre, ri, chora… Devido à pandemia, agora ele passa grande parte do dia em casa, em seu escritório, em frente ao computador. É por lá que conversa com a equipe de Revestrés naquela noite chuvosa de se ouvir os trovões, tanto em São Paulo como em Teresina. Pelo espaço exíguo da tela do computador é possível ver pouco de seu ambiente: uma estante de livros, um dicionário Houaiss, uma gata que pula em frente ao teclado e é retirada delicadamente, a esposa Márcia, arquiteta, que chega e, com simpatia, quer saber com quem o marido conversava.   

O escritor Ignácio de Loyola Brandão, 84 anos, nasceu em Araraquara, cidade com pouco mais de 200 mil habitantes no interior de São Paulo, filho de um ferroviário e uma dona de casa. É autor de livros memoráveis da literatura brasileira, como Zero, que começa assim: “José mata ratos num cinema poeira. É um homem comum, 28 anos, que come, dorme, mija, anda, corre, ri, chora, se diverte, se entristece, trepa, enxerga bem dos dois olhos, tem dor de cabeça de vez em quando, mas toma Melhoral”. 

Quando Ignácio teve dores de cabeça, comprimidos não resolveram. Descobriu um aneurisma e se submeteu a uma cirurgia de risco. Mas garante que saiu transformado da experiência. “Eu vinha na rua e acelerava pra passar no sinal verde. E falei ‘Pra que isso? Tô correndo atrás de quê’”. 

Seu romance Zero foi publicado em 1974, na Itália, e proibido de circular no Brasil pela ditadura militar. A história do personagem José continua: “Lê regularmente livros e jornais, vai ao cinema sempre”. E essa poderia ser também um pouco a história de Ignácio. Ele trabalhou parte da vida em alguns dos maiores jornais do Brasil – como O Estado de S. Paulo, onde ainda mantém coluna. E continua apaixonado por cinema. Aliás, foi pelo cinema que se aproximou do jornalismo: descobriu que os dois jornais de sua Araraquara tinham entrada livre para críticos de cinema, mas não tinham críticos. Tornou-se um. E passou a assistir a tudo que é filme. Quando juntou boa coleção de textos publicados, mudou-se para São Paulo. Aos 21 anos, arrumou emprego de repórter no Última Hora, de Samuel Wainer. Agora tinha, numa mesa próxima à sua e sem muito tempo para estagiários, Nelson Rodrigues. E, na cidade, um mundo novo à disposição. “Eu era o caipirão e ali era São Paulo, com 300 salas de cinema, teatro, tudo!” 

Nem tão caipirão. Bem informado e com bom inglês, o jovem jornalista era escalado para entrevistar astros e estrelas internacionais. Seguiu assim até o início dos anos 1980, quando deixa o jornalismo para se dedicar à literatura. Diz que ama o que faz, mas queria mesmo era ter sido cineasta. E o cinema atravessou novamente sua história quando, em 1963, aos 27 anos, foi se aventurar na Itália, sem falar uma palavra de italiano. Em Roma, passando em frente a um pequeno cinema, resolveu entrar. O filme era 8 ½, de Federico Fellini, e a exibição já seguia pela metade. Conta que não entendeu nada e ficou para a sessão seguinte. Voltou no outro dia e mais outro e diz que, desde então, já viu o filme 148 vezes. A linguagem fragmentada de Fellini iria lhe influenciar. É nessa fonte que ele vai beber ao escrever Zero – um texto estilhaçado, com fragmentos diversos – trechos de notícias, recortes de frases, gravuras. Descobriu que aquilo podia formar um livro. Fez tanto sucesso que teve medo de ser um homem de um livro só. 

Que nada. Sucessos tão retumbantes quanto foram, entre outros, Não Verás País Nenhum (1981), Manifesto Verde (1989), O Menino que Vendia Palavras (2008) e, mais recentemente, Desta Terra Nada Vai Sobrar, A Não Ser O Vento Que Sopra Sobre Ela (2018). Reconhecido pela qualidade da escrita, é constantemente convidado a escrever livros biográficos e de empresas e marcas – os chamados livros institucionais – que já chegam a 50. “Eu cobro bem. E faço direito.” 

Mas nem sempre foi assim. Quando achou que tinha escrito seu primeiro livro, teve a petulância de entregá-lo ao crítico literário Antonio Candido. Recebeu deste o conselho de que enterrasse aquela papelada no quintal, evitando o risco de que alguém o lesse. O mesmo crítico, mais tarde, elogiaria Zero como uma obra de “realismo feroz” – termo que usou para definir o que considerou as melhores produções da época. 

Os reconhecimentos mais formais chegaram um pouco mais tarde. Em 2019, Ignácio de Loyola Brandão foi eleito, por unanimidade, para a Academia Brasileira de Letras (ABL) e, em janeiro de 2021, já de máscara por conta da pandemia de Covid-19, recebeu o título de Doutor Honoris Causa pela Unesp – Universidade Estadual Paulista, Campus de Araraquara. 

Ignácio é gentil e bem-humorado. Tem voz anasalada e é um contador de histórias nato – inclusive das suas. Algumas são tão mirabolantes que se fica em dúvida se de fato aconteceram, se ele estaria testando entrevistadores e leitores ou, quem sabe, criando um personagem naquele momento. Avisa que se permite interromper a entrevista em duas ocasiões: se a conversa ficar chata ou se tiver fome. 

Fica indignado quando se refere a acontecimentos políticos atuais – “A gente vive uma distopia, porque não dá pra acreditar que isso que vivemos é a realidade, né?”. Mas busca, na indignação, uma forma de resistência. Como o José, de Zero, que matava ratos no cinema, e que continua sua história assim: “Ele sabe que no dia em que tiver exterminado todos os bichos, perde o emprego. Um dia, não tinha mais ratos. José foi à Várzea, pagou 50 centavos a dois moleques, cada um trouxe três ratos. Assim, José continuou trabalhando.” 

Ao olhar nossa história recente é fácil supor que Ignácio não ficará sem trabalho. Aprendendo a mexer em redes sociais e aplicativos, ele usa seu computador como escudo e como lança: “Meu computador tá aqui, contra tudo o que tá aí, de ruim.” 

Foto | Maurício Pokemon

 

Samária A pandemia e o distanciamento social têm imposto restrições e a paralisação de atividades culturais e artísticas. O escritor, que, em tese, trabalha mais recolhido, está a salvo neste momento?  

Ignácio de Loyola Brandão Nem estamos tão a salvo: eu andava o país inteiro fazendo palestras – que inclusive ajudavam a me sustentar financeiramente –, e elas desapareceram. Junto com minha filha Rita (Gullo), que é cantora, durante seis anos fizemos um show que eu adorava: Solidão no Fundo da Agulha – eu contava histórias minhas e ela cantava canções. A ideia surgiu quando ouvi no rádio (ele cantarola): “Siempre que te pregunto, Que cuándo, cómo y donde, Tu siempre me respondes, Quizás, quizás, quizás”. Na hora me veio na memória a Araraquara onde nasci, as noites de domingo muito solitárias; eu em frente ao clube ouvindo uma orquestra maravilhosa – eu não entrava porque era pobre –, sentado num banco e tomando sorvete. Aí comecei a perceber que várias canções me lembravam momentos de vida. Fiz um livro e fizemos esse show. Eu sinto falta desses momentos, de contar histórias, de estar com as pessoas. Tô até acostumado a ficar sentado aqui, sozinho, e acho bom. E começaram a aparecer as lives: com escolas, centros culturais, programas de TV… Não ganhei um tostão esse ano que passou – por sorte tenho uma maravilhosa pensão do INSS (risos). Eu poderia ter ficado deprimido, mas as lives proliferaram e tenho falado com os lugares mais curiosos desse país. Tenho me comunicado de diferentes formas, tem essa coisa infernal do zap-zap (WhatsApp), eu me confundo todo, mas mando e recebo mensagens, foto, vídeo, uma frase. Há um governo tenebroso em cima da gente, a cultura vai diminuindo e não se sabe aonde vai parar. Mas sinto que é um momento de grande solidariedade, as pessoas procuram dizer coisas boas umas para as outras e isso é uma resistência. E meu computador tá aqui, contra tudo o que tá aí, de ruim. 

Há um governo tenebroso em cima da gente. Mas sinto que é um momento de grande solidariedade.  

André Quando tomou posse na ABL você disse que seus antecessores estavam sendo sucedidos por um ficcionista dedicado a entender o Brasil por meio do imaginário e da fantasia, às vezes usando o distópico. Em 2018, você escreveu Desta terra nada vai sobrar, a não ser o vento que sopra sobre ela, que se passa num país onde a peste se tornou epidemia, os ministérios da Educação, Cultura, Direitos Humanos e Meio Ambiente foram extintos e ninguém governa. Esse livro é uma premonição ou a realidade supera a ficção? 

ILB A realidade jamais vai superar a ficção e, ao mesmo tempo, a ficção jamais vai copiar a realidade. Antes disso, nos anos 1980, eu escrevi Não Verás País Nenhum. Sabe o que eu faço? Eu olho pela janela e passo isso pro computador. Tá tudo aí, é só olhar e escutar. Quando cheguei em São Paulo fui trabalhar no jornal Última Hora, com Samuel Wainer – é um grande orgulho da minha vida. Uma tarde cheguei no jornal, a redação estava vazia e quem estava lá, sentado? Nelson Rodrigues. Ele escrevia a coluna A Vida Como Ela É e eu admirava o Nelson! Ele ficava lá (faz grunhido ininteligível, curvado, imitando Nelson Rodrigues), fumando, eu ficava olhando. Uma hora ele olhou pra mim e falou: “Quem é você?” Eu disse: “Sou um jornalista daqui”. Aí criei coragem e perguntei: “Eu queria saber como o senhor consegue escrever todo dia uma história que prende a gente e que parece que se passou com uma tia, uma vizinha?”; (faz novo grunhido e continua) “É só olhar pela janela, meu filho”. Então é isso: é só olhar pela janela que a vida tá aí. Eu leio tudo, recorto, coleciono e vou construindo. A coisa que mais me impressionou, aos 10 anos de idade, foi quando ganhei de uma tia o livro Alice no País das Maravilhas. Me assustei quando ela cai no buraco e entra naquele outro mundo. Nossa! A vida inteira eu tive o sonho de cair numa toca de coelho da Alice. E caí: o Brasil era a toca de coelho. Tá tudo ao contrário. 

Kássio Como o senhor, que reescreveu o livro Manifesto Verde, avalia a flexibilização do Código Florestal Brasileiro (alterações na legislação ambiental que, como consequência, permitem aumentar o desmatamento)? 

ILB O mal que esse governo faz é inominável. Eles nos atrasaram ‘anos e anos’ (repete a expressão três vezes). Aquela frase nojenta, naquela reunião nojenta: ‘vamos fazer a boiada passar’. Só isso já dava punição. Eu escrevi dois livros falando de meio ambiente: Não Verás País Nenhum e Manifesto Verde. Comecei Manifesto como uma carta aos meus filhos Daniel e André. Eles eram crianças, faziam um trabalho de escola e falaram: “Pai, me explica o que é ecologia, meio ambiente?” Eu tava indo pro aeroporto e disse: “Mando uma carta pra vocês”. Eu sou muito carteiro. Fui para o Mato Grosso e de lá escrevi, à máquina, uma longa carta, e pus no correio. Não tinha notebook e e-mail naquele tempo. Eu tinha um material grande do Não Verás País Nenhum sobre poluição, devastação, camada de ozônio etc. Meu filho mostrou a cartinha à professora, ela leu em classe e tirou cópias pros alunos da escola. Depois um editor do Círculo do Livro me procurou querendo um brinde para oferecer aos assinantes. Eu reescrevi o Manifesto Verde e fizeram uma edição de cem mil exemplares gratuitos. Mais tarde a Editora Global foi refazendo em muitas outras edições. Então têm livros que vão acontecendo e tomam vida própria.   

Depois disso escrevi mais três ou quatro livros e enterrei todos no quintal. Pensava: se um dia for alguma coisa na vida e alguém achar essas merdas e publicar, eu tô fodido.  

Wellington O caminho do escritor por vezes é tortuoso. Tem a história de que o primeiro livro que você escreveu e submeteu à apreciação do crítico literário Antonio Candido foi reprovado e que ele lhe recomendou que enterrasse o livro no quintal. De que modo essa sinceridade ajuda no surgimento de um escritor?   

ILB Esse romance se chamava Cravo Sobre Gin Seco e se passava em um bar, em São Paulo, o dono sempre andando com um copo de gin na mão e um cravo dentro, e ele mostrava a noite paulistana aos 11 personagens da história. Eu consegui chegar no Antonio Candido via Araraquara e por um amigo, Renato Correia Rocha, porque a irmã dele, Gilda, era casada com Antonio Candido. Ele sempre foi muito educado, leu e me disse: “A ideia é curiosa, mas você fez onze personagens iguais! Eles falam igual, têm o mesmo problema, os mesmos sentimentos. O leitor, quando vê um personagem, já deve saber quem está falando. Os teus, não. Tu tem que dizer o nome ou ninguém sabe. Faz assim:  junta tudo num personagem só. Não! Melhor: isso não vai funcionar porque teu livro é uma porcaria. Enterra ele no quintal pra ninguém ler”. Ele me deu uma grande lição. Depois disso escrevi mais três ou quatro livros e enterrei todos no quintal de Araraquara. Pensava: se um dia for alguma coisa na vida e alguém achar essas merdas e publicar, eu tô fodido (risos). 

Wellington Já Zero se tornou um livro celebrado pela crítica, que o considera um marco na luta contra a ditadura militar. Passados 47 anos da publicação, o que representa esse texto pra você e pra atual democracia brasileira? 

ILB Quem deve responder essa pergunta são os críticos e teóricos. Pra mim, esse livro foi uma necessidade absoluta e eu levei 10 anos escrevendo. Comecei em 1964 e terminei em 1973. Ele é um retrato de um momento que a gente não sabe como sobreviveu. E foi uma virada total na minha vida porque, quando consegui publicar na Itália, três editoras brasileiras tinham recusado o livro – ninguém era louco de publicar aquilo (Zero foi publicado na Itália em 1974 e, no Brasil, em 1975. Logo depois foi proibido de circular até 1979). Jorge Andrade, meu amigo e dramaturgo, foi pra Roma e levou o livro com ele pra ler no avião. Chegando lá encontrou com Luciana Stegagno (crítica literária, especialista em literatura de língua portuguesa) e ela perguntou: “Não está acontecendo nada no Brasil em literatura?”. Ele falou “Leia esse livro”, e deixou minha única cópia com ela. Luciana ficou encantada e negociou a publicação. Zero já tava pronto pra rodar quando ela me disse que a embaixada do Brasil na Itália estava de olho em qualquer publicação que ‘prejudicasse a imagem do país no exterior, e autor e editor poderiam ser presos. Eu não sabia o que fazer, não queria ser preso, tinha filho… Aí a Bia, então minha esposa, disse: “Você levou 10 anos nisso, era tudo que você acreditava, então era tudo uma mentira? Se for, joga esse livro no lixo e vá vender banana”. Ela tinha razão. Eu falei: publiquem! O livro me lançou nacional e internacionalmente e, se eu não o tivesse publicado, juro, nem estaria vivo.  

Esse livro (Zero) foi uma necessidade absoluta e eu levei 10 anos escrevendo. Ele é um retrato de um momento que a gente não sabe como sobreviveu.

Wellington Na ABL você ocupa a cadeira número 11, que já teve Hélio Jaguaribe, Celso Furtado, Darcy Ribeiro, entre outros. Qual a sensação de ter sido eleito por unanimidade (31 votos e 11 candidatos)? 

ILB Eu nunca nem pensei em ir pra Academia, aí um dia me ligou Celso Lafer (membro da ABL e ex-ministro das Relações Exteriores no governo FHC) e disse: “Tô indo pra sessão da saudade de Hélio Jaguaribe e levando a sua carta de candidatura”. Eu disse: “Mas eu não fiz carta nenhuma”. E ele: “Eu fiz e assinei”. Eu soube que (Rubens) Ricupero e Fernanda Montenegro seriam candidatos e eu não teria nenhuma chance. Mas eles não foram e eu fui, mas nunca esperava unanimidade. No dia da eleição você fica num local esperando o resultado. Eu ia para um coquetel organizado pela editora, só que ainda estava no hotel e o Marco Lucchesi (presidente da ABL) me ligou: “Ignácio, uma vitória acachapante”. Eu recebi a notícia vestindo as calças. Pegamos um táxi e pelo caminho fomos parados por manifestações contra o assassinato de Marielle (Franco). Quando cheguei, os acadêmicos todos me abraçaram. Eu adorei, foi uma alegria tão grande! No dia seguinte, O Globo deu uma nota curiosa: “Eleição na academia: enfim, um escritor”. Eu li outros discursos da Academia e eram tão solenes: “Neste templo do saber, onde a vetusta cultura brasileira…”. Ah, eu comecei simplesmente assim: “Tweet um: A terra é plana”; e enchi o discurso de tweets. Primeiro porque gosto de escrever de modo fragmentado, depois porque queria chamar a atenção pra algumas coisas que estão acontecendo e, por fim, as redes sociais são a coisa que mais abalam a gente hoje, que nos aguilhoam – esse termo aguilhoar é bom (risos). Mas eu fiz um discurso que gostei. Falei de censura. Só que assisti três sessões e logo a Academia fechou e sem ela eu não recebo jeton. 

Kássio Conhecemos o Ignácio de Loyola Brandão como escritor multifacetado, autor de crônicas, romances, livros infanto-juvenis, relatos autobiográficos e biográficos. Sobre este último estilo, como foi pra você colocar em livro a história da ex-primeira dama do país, a antropóloga Ruth Cardoso? 

ILB Vocês sabem que os araraquarenses são muito arrogantes, se acham – eu sou um, eu sei! Pra nós, Araraquara vai de Nanterre, na França, até Kiev, na Rússia, porque ela é um estado de espírito. Eu fiz uma entrevista com Ruth Cardoso quando ela assumiu o poder, junto com Fernando Henrique Cardoso (presidente). Eu trabalhava na Vogue e a revista fazia o perfil de toda primeira dama. A Ruth não queria ser entrevistada, ela nunca gostou da imprensa – não que fosse mal-educada, mas era low profile. A revista insistiu e ela falou: “Tá bom, manda o Ignácio”. Porque a gente era de Araraquara, eu conhecia a família dela, as tias beatas, fui amigo próximo do Renato Correia Rocha – aquele que me ajudou a entregar o livro a Antonio Candido – e que foi o primeiro namorado da Ruth, um homão bonito! Ela falou: “Dia tal, das 14 às 16 horas”. Fui pontualíssimo e ela – na casa dela – chegou 15 minutos atrasada. Começamos a conversar e eu conhecia tudo: o pai dela trabalhou como contador no jornal em que trabalhei; a mãe, Mariquita, me deu aula de Ciências Naturais, que hoje seria biologia. O pai da Márcia, minha mulher, é de Araraquara, e foi um dos jovens que se apaixonaram por Ruth, que era linda! E a conversa foi nos envolvendo e quando percebemos já passava das sete da noite e ela fez café pra gente. Ruth saiu de Araraquara em 1945 e voltou poucas vezes. Quando o perfil saiu na Vogue, ela me mandou um bilhete: “Eu tinha perdido a minha cidade e a reencontrei através de você. Obrigada”. Tivemos uma espécie de amizade mais consolidada. Então, quando ela morreu, a editora Globo me perguntou se eu faria a biografia. E foi uma delícia fazer, conversei com todas as pessoas que a cercavam. Ela foi a única primeira dama do Brasil que deu ao cargo um sentido. Na minha bibliografia não coloco os livros institucionais que faço, mas esse eu coloco. 

André Alguns escritores torcem o nariz pra ideia de livros produzidos sob encomenda. Você publicou vários desses livros institucionais. O que lhe motiva a produzi-los?     

ILB Só faço se tiver prazer. Se não gostar, nem aceito a encomenda. Vocês não sabem o número de pedidos que recuso, de grandes empresários, com propostas até de que eu escrevesse e eles assinassem. Não me interessa. Fiz 50 livros institucionais – todos porque o tema foi interessante. E me dedico como se me dedicasse aos que escolhi livremente escrever. Primeiro, porque sou eu quem vai ser avaliado ali. E só faço quando não tenho nenhum projeto. Por fim, cobro bem. E faço direito. Há histórias interessantíssimas. A do Carlos Wizard, fundador das escolas de idiomas, que as vendeu por 4 bilhões de reais e tem escola até na China. Por que fiz? Porque a história é incrível: ele era filho de um caminhoneiro do interior do Paraná e ajudava o pai. Um dia encontrou uns mórmons, que lhe ensinaram a falar inglês. Depois arranjaram uma bolsa de estudos e ele foi pros Estados Unidos. Mais tarde vira bilionário. É uma grande história de vida, de um cara que agarra uma oportunidade! Tem a história do homem que criou o Leite de Rosas. Um cearense que fugiu da seca, foi pro Rio de Janeiro e não deu certo; foi pro Espírito Santo e não deu certo; acabou no Amazonas, como seringueiro. Ficou milionário, veio o crack da borracha e ele perdeu tudo. Foi pra Bahia, comprou fazenda, a mulher teve uma doença grave e ele a levou para o Rio. Tava com uma mão na frente, outra atrás, a mulher doente e começou a vender, de porta em porta, um produto inventado por ele para limpar a face, feito à base de álcool, cânfora e rosas, produzido na pensão onde estava hospedado. Ele envasava, fazia rótulos, vendia. Fez isso aos 59 anos, em 1929! O Leite de Rosas cresceu tanto que teve como garota propaganda a Carmen Miranda. Ele contratava todos os artistas da Rádio Nacional, patrocinava concursos de misses, inventava o marketing dele. Criou um desfile na fábrica: as mulheres andando de salto alto numa esteira delicada da linha de produção! Como não vou atrás de um personagem desses?! É quase ficção! Têm coisas maravilhosas sobre o que se escrever neste país. Me chama que eu vou – desde que me pague e que seja interessante. 

Não li e tô esperando baixar um pouco a onda (Torto Arado). É gostoso ter um jabutizinho na estante, né? Eu tenho seis.

Samária Na literatura, você é vencedor de prêmios como o Jabuti. Qual a importância desses prêmios na sua carreira? E você leu o último premiado no Jabuti – Torto Arado, de Itamar Vieira Junior?    

ILB Não li e tô esperando baixar um pouco a onda. Estive com Itamar em Portugal, há dois anos, num evento com cem escritores de língua espanhola e portuguesa, e ele já tava começando a fazer sucesso. Eu acho ótimo que apareçam pessoas que explodem, é gostoso ter um livro em voga e, sendo um livro brasileiro, eu adoro. Mas deixo um pouco de lado até a onda passar. Mas estou curioso pra ler. Os prêmios são importantes porque te dão um espaço na mídia. Às vezes o livro poderia ficar meio esquecido e ganha um destaque. E é gostoso ter um jabutizinho na estante, né? Eu tenho seis – um curralzinho. É um prêmio de prestígio e eleva a autoestima. 

Wellington Você já disse que, de todos os prêmios que ganhou, o que mais lhe emocionou foi o Machado de Assis, em 2016, concedido pela ABL pelo conjunto de sua obra. O que esse prêmio significou para você?  

ILB Acho que foi, inclusive, um trampolim para minha eleição na ABL. Também foi muito bom em dinheiro: 300 mil reais. Mas o importante é que o conjunto da obra é reconhecido por um conjunto de pessoas da literatura – e não apenas os acadêmicos, pois eles consultam outras pessoas. Duas de minhas antigas professoras, ainda vivas, ambas com mais de 90 anos, tomaram conhecimento da premiação. Eu mantenho contato com ex-professoras de Araraquara. Uma delas, Ruth Segnini, me mandou um bilhete que dizia: “Ignácio, a vida inteira eu tinha uma dúvida: será que estava certa quando escolhi formar pessoas? Agora, que você vai receber esse prêmio, tenho certeza de que valeu a pena”. E comecei meu discurso nessa premiação lendo esse bilhete. Os acadêmicos aplaudiram e gravei e mandei pra ela os aplausos: “São pra você!” Eu devo minha carreira a professores. 

André Recentemente você recebeu o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Estadual Paulista – Unesp (pedido pela Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara). Qual o significado desse título para um escritor já tão bem-sucedido? 

ILB Eu, que nunca fiz uma faculdade, que terminei o científico (ensino médio) a duras penas – eram três anos e eu terminei em cinco! – sou agora Doutor Honoris Causa. Isso me emociona muito! Uma pena meu pai não estar aqui para ver. Tive uma professora de desenho que dizia: “Você não sabe desenhar, não vai ser nada na vida.” Gostaria que ela estivesse aqui também. Não pra brigar com ela – já disse: sou grato aos professores. Mas pra gente ver como a vida pode ser surpreendente, por isso é tão interessante de ser vivida. 

Eu, que nunca fiz uma faculdade, que terminei o científico (ensino médio) a duras penas, sou agora Doutor Honoris Causa. Isso me emociona muito!

André Além da literatura, outra paixão sua é o cinema. Hoje existe uma diversidade de possibilidades de assistir filmes: no celular, computador, via plataformas de assinatura. Com isso, a sua relação com o cinema foi alterada? E na produção literária, como você enxerga as possibilidades tecnológicas de se ler livros? 

ILB Acho incrível que se possa ver filme num celular, mas me empata a emoção. Pra mim, o filme é na tela grande e sem celular ou pipoca do lado. Porque cinema exige concentração, é um ato religioso, uma cerimônia. Eu sei que sou anacrônico, mas vou insistir porque respeito muito o cinema. É bom que mais pessoas possam ser alcançadas pelo cinema que não apenas aquelas que vão às salas, mas será que o efeito é o mesmo? Quanto aos livros, que leiam em palmtopskindles – desde que leiam. Um dia li, numa revista francesa, uma carta de uma mulher de 87 anos que dizia: “Li a minha vida inteira e um dia minha vista acabou. Mas ganhei um kindle e meu neto me ensinou a aumentar o tamanho da letra e voltei a ler”. Isso é ótimo. Então vamos ver filmes e ler livros de todas as formas possíveis! Eu prego umas coisas, mas nem sempre cumpro. E vejo e revejo filmes de várias formas. 8 1/2(Federico Fellini) já vi 148 vezes e com o mesmo prazer.   

Samária Essa quantidade é brincadeira, né? 

ILB É verdade! A primeira vez que vi 8 1/2 foi em 1963, tinha 27 anos, acabava de chegar em Roma pra morar, não falava italiano, não sabia nada, fui pra viver uma aventura. Tava andando na rua, conhecendo a cidade e entrei num cineminha muito pequeno, perto da Fontana di Trevi, com o filme já pela metade. Eu não entendi nada, e não só pela língua, mas pela linguagem, toda fragmentada, sem linearidade, com diferentes planos: da realidade, da imaginação, da realidade idealizada, da memória. Eu usei muito disso no Zero. Fiquei fascinado. Acabou a sessão e fiquei pra seguinte e voltei no outro dia e até hoje assisto. Me apaixonei pelo filme, sei até as falas! 

André E o que você acompanha de Cinema Brasileiro? 

ILB Gosto do trabalho de Petra Costa, Kleber Mendonça Filho, Anna Muylaert. Meu primeiro sonho era ser diretor de cinema ou roteirista, mas reciclei o sonho escrevendo sobre cinema. Quando era mais jovem, fazer cinema era muito caro e tinha que procurar dinheiro, contrair dívida, e eu tinha pavor disso porque passei a vida ouvindo minha mãe com medo de não conseguir pagar o empréstimo da Caixa Econômica e a gente ser despejado de casa. Então dívida é uma coisa que doía na minha cabeça. Mas aí já é conversa pra psicanálise e não pra entrevista, né? Mas se mais gente tiver esse mesmo problema, aproveite pra falar agora (risos).   

Samária Você também tem uma longa história com o jornalismo. O que essa relação com o jornalismo lhe deixou de legado?    

ILB Gostei muito de ser jornalista, acho que acertei indo pro jornalismo. Claro que entrei meio enviesado, porque gostava mesmo era de cinema. Lia os grandes críticos de São Paulo e Rio por meio dos jornais que, nos anos 50, chegavam em Araraquara. Eu recortava e tinha um caderninho onde anotava. Um dia soube que crítico de cinema não pagava entrada e tinha dois cinemas em Araraquara. Perguntei pro bilheteiro: “Crítico paga?”. E ele: “Não, mas nunca vi um crítico nessa cidade”. Então fui no jornal, o editor tinha uma credencial, mas não usava porque a mulher dele achava que cinema era pecado. Ele me emprestou, fiz uma crítica meio que plagiando Paulo Emílio Sales Gomes, o editor publicou e ganhei a credencial permanente. Tinha 16 anos. Depois o jornal maior me chamou e aprendi a fazer entrevistas, reportagens. Quando decidi ir pra São Paulo fui direto em jornal pedir emprego. E descobri um outro mundo! Eu era o caipirão e ali era São Paulo, com 300 salas de cinema, teatro, tudo! Como eu já falava razoavelmente inglês, era mandado pra entrevistas com astros e estrelas. Entrevistei Marlene Dietrich, Kim Novak, Nat King Cole, Sammy Davis Jr.  O jornalismo me deu a capacidade de sintetizar, escrever o essencial, e a possibilidade de observar pessoas, acontecimentos, greves, revoltas. Não fui um grande jornalista, não era investigativo, mas descobri a literatura através do jornalismo, então devo ao jornalismo a literatura.    

Eu era tão ansioso que entrava no prédio já com a chave na mão pra abrir a porta do apartamento. Vinha na rua e acelerava pra passar no sinal verde. E falei: pra que isso? Tô correndo atrás de quê?

Kássio Thomas More nos apresentou, no século XVI, o conceito de utopia. Você acredita que a literatura, sobretudo a ficção, é uma forma de se manter a utopia ou, no momento atual, a humanidade está mais próxima daquilo que se define como distopia? 

ILB Acho que aceitamos hoje a distopia com mais facilidade. Mas a utopia continua e a literatura ainda é a grande fotografia de cada um de nós, de nosso país, de como vivemos, dos sonhos que temos. A gente vive uma distopia, porque não dá pra acreditar que isso que vivemos é a realidade, né? E o pior: a gente tá vivendo e aceitando, não tá combatendo, tá inerte, anestesiado.   

Samária Na metade dos anos 1990 você descobriu um aneurisma e teve que se submeter a uma cirurgia delicada. Depois disso, falou: “Agora eu quero é perder tempo”.  Como esse acontecimento implicou em mudança de comportamento? E, a partir disso, o que você conclui que é de fato importante na vida? 

ILB Descobri o aneurisma por acaso, porque não tinha sintoma, é o chamado assassino silencioso. Mas tive pequenas tonturas e, fazendo exames, o médico disse: “Tem uma granada na sua cabeça. Sugiro operação. É perigosa, você pode morrer”. Tinha que abrir a cabeça e eu disse: “Não vou fazer”. O médico falou pra Márcia: “Daqui a três dias ele volta”. E voltei. Porque só pensava em que momento aquilo ia estourar na minha cabeça: na rua, andando, no banheiro. Fiz a cirurgia. Trezes horas! Quando voltei, perguntei: “Tô vivo?” E sou um cronista, quando saí do hospital resolvi fazer um depoimento, tinha que falar sobre aquilo. Fiz o livro Veia Bailarina (1997). Comecei meio lamento, autopiedade, sabe? E disse: “Não é isso, porra! Eu tô vivo!” Passei a sentir a vida toda diferente: as cores, o paladar, a ansiedade acabou. Eu era tão ansioso que entrava no prédio já com a chave na mão pra abrir a porta do apartamento. Vinha na rua e acelerava pra passar no sinal verde – coisa de paulistano. E falei: pra que isso? Tô correndo atrás de quê? Eu vendia minhas férias, trabalhava domingo, feriado. Depois disso, quis foi “perder tempo”. Isso mudou minha vida, minha relação com Márcia, com meus filhos, passei a prestar mais atenção. Não quero fazer dinheiro, quero fazer as coisas que gosto. E o livro tem humor, os médicos indicam para pacientes que vão fazer cirurgia invasiva. Então eu, que odeio, acabei fazendo um livro de autoajuda. Posso morrer daqui a um minuto, mas agora sinto que tô vivo! 

Já passava de duas horas de conversa via Zoom, era por volta das 20 horas, a chuva continuava e Ignácio anuncia: “Com isso encerramos esse nosso bate-papo, né?”. 

Samária Ficou chato? 

ILB Não, eu tô com fome (risos). Quando não gosto de uma conversa, nem fico. Não ter morrido me deu esse direito. 

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Trecho do discurso de posse de Ignácio de Loyola Brandão na Academia Brasileira de Letras em 18 de outubro de 2019 

Twiter 1: A terra é plana 

Baixado da Nuvem Digital. 

Com oito anos, eu esperava a cada mês a chegada da revista Em Guarda, distribuída pelo departamento de propaganda dos Estados Unidos. Ela trazia fotos de gordos bombardeiros, caças, porta-aviões e tanques assustadores. Excitavam a imaginação. Aquelas fotos, compartilhadas, nos levavam a subir em árvores ou a nos enfiarmos em caixotes, empenhados em “batalhas terríveis” nos terrenos baldios. Gritávamos o que ouvíamos no rádio: As Américas Unidas, Unidas Vencerão. Vencerão a quem? Contra o que lutávamos? Não compreendíamos. 

Odiávamos a tal guerra, quando estávamos jogando futebol, e os fiscais nos confiscavam as bolas de borracha, dizendo: “É pelo esforço de guerra.” Que era aquilo? À noite, apagavam as luzes da cidade e diziam que era para nos defender dos aviões inimigos. Quem viria jogar bombas em Araraquara, bucólica cidade do interior paulista conhecida pela intensa arborização? As professoras Lourdes Prada e Ruth Segnini, que me ensinaram a ler e escrever, explicavam que muitas coisas não são compreendidas na mesma hora. Ficam paralisadas, no ar. “Pode ser que vocês atravessem a vida sem compreender. Mas procurem, corram atrás,” completava. “A vida é a busca do entendimento”. 

A professora Lourdes morreu no ano passado, mas Ruth Segnini, no alto de seus 90 anos, está viva em Araraquara, só não veio a esta posse por problemas físicos. Aqui estão seu irmão, Francisco, e sua cunhada Liliana. E também Guilherme, seu neto, filho de Lena, sua nora. Também aqui está Silvio Prada, filho de Lourdes. A vida une sempre pontos que parecem aleatórios. 

Ilmo. Senhor Marco Lucchesi, Presidente da Academia Brasileira de Letras, 

Acadêmicos e Acadêmicas, 

Minhas Senhoras e Meus Senhores, Araraquarenses 

Para mim este momento é imensurável. Imensurável era a palavra que meu pai Antônio Maria Brandão, o Totó, usava para designar instantes significativos. Ele foi um funcionário modesto que, entretanto, fez bela carreira na Estrada de Ferro Araraquara, chegando ao mais alto posto na Contadoria, o Escritório Geral que regia tudo. Homem que lia muito, gostava de palavras, tinha vários dicionários e me ensinou a usá-los. Seus memorandos, afixados em todas as estações, eram lidos com prazer, ele escrevia curto, com humor. E me aconselhava: “Aprenda palavras, e sua vida será mais fácil.” Jamais esqueço as noites em que minha mãe despejava o feijão na mesa e começava a escolher, separando os carunchados, as pedrinhas, os gravetos minúsculos, as folhinhas. Meu pai me chamava atenção: “Veja como ela escolhe os mais perfeitos, saudáveis, bonitos. Lembre-se disso, ao escrever busque as melhores palavras.” As palavras me pareciam misteriosas, e era uma aventura decifrá-las. 

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Entrevista publicada na Revestrés#48.

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