(Participaram dessa entrevista: Wellington Soares, Samária Andrade, Clarissa Carvalho e André Gonçalves)

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(Fotos: Maurício Pokemon)

Ana Carolina foi a primeira a chegar. Ela atribui a pontualidade a mania de advogada. “Penso sempre que estou indo para alguma audiência”, diz, como se precisasse se desculpar, com voz quase infantil. Assunção, quando chega, enche o espaço com sua presença e abraça a todos. O atraso, depois ficamos sabendo, foi motivado pela demora em pegar um mototáxi que a levasse até a livraria onde combinamos o encontro, na zona leste da cidade.

Carol é branca, Assunção, negra. Carol, criada como católica, não se sente à vontade para afirmar que tenha religião. Assunção é do Candomblé. “Sou Osi Dgan e filha de Nanã”. Carol não tem filhos e nem gosta da ideia normativa de que se deva seguir algumas etapas na vida, tradicionalmente esperadas. “É muito complicado ter que atender às expectativas, aos prazos que foram colocados por outras pessoas”. Assunção é mãe de Kaire, Zanaundê e Odara Tusilê. Carol, filha de advogada e de professor e empresário de academias de ginástica, tem uma vida confortável. Assunção, filha de agricultores rurais analfabetos, é pobre. “Eu não costumo chamar a pessoa de pobre. Eu chamo de empobrecida, porque essa é uma circunstância e a pessoa pode sair daquele empobrecimento”, nos ensina Carol durante a entrevista.

Carol precisa comprar um pen-drive e falar com amigos que estão organizando o Salve Rainha, intervenção que tem ocupado o centro de Teresina aos domingos e deseja chamar a atenção para o espaço público e as artes. Depois da entrevista, ela vai voltar para o bairro Ilhotas, onde vive. Assunção precisa voltar ao Poti Velho, onde ajuda a articular um movimento contra a retirada de famílias prevista pelo projeto de urbanização do bairro. “Minha sogra mora ali há mais de 40 anos!”. Depois de encontrar o marido e os filhos, ela seguirá para casa, no Bairro São Joaquim.

Ana Carolina Magalhães Fortes, 31 anos, é formada em Direito e tem mestrado em Educação. Assunção Aguiar, 40 anos, não esconde a satisfação de contar que foi aprovada em três faculdades esse ano: serviço social, pedagogia e história, embora considere que não vá poder cursar nenhuma, pois são particulares e ela tem outras prioridades.

A advogada Ana Carolina se ofereceu para ajudar o Matizes, grupo militante dos direitos civis, especialmente nas causas LGBT. Ela queria participar. A militante Assunção não se sentia com escolha: já fazia parte. A primeira admira a mãe advogada e defensora da mulher. A compreensão do feminismo aumentou quando fez pós-graduação e, na conclusão do mestrado, defendeu a dissertação “A escola e a educação não escolar: experiências da mulher lésbica afrodescendente”. A segunda percebia que seus pais quase ignoravam a condição em que viviam. Para ir além do espaço onde nasceu, deixou-se talhar no movimento negro e nas causas sociais.

Antes da entrevista, Assunção, aos risos, diz que é vaidosa e precisa ir ao banheiro retocar o batom. Enquanto o único banheiro feminino da livraria permanece ocupado, Carol diz que acha uma bobagem separar banheiros entre gêneros e entra no lavabo masculino. Já havíamos esquecido seu tom de voz de menina. Suas falas são firmes, ainda que ditas de modo gentil.

Carol dá entrevista anotando, parece não querer deixar passar os pontos que julga importantes. Assunção é espontânea e costuma reafirmar sua posição nas respostas: “na minha visão”, “na minha opinião”… Com a intimidade recém-adquirida, todos confessamos nossas apreensões. “Eu tava com medo de falar besteira na frente da Assunção”, admite Carol. “Eu não falo dos livros, mas da minha vivência. Espero que a entrevista fique boa”, diz Assunção. “Nós também”, emendamos.

 Nessa entrevista de Revestrés, a beleza, as opiniões, a sinceridade, o lugar de fala de duas mulheres e as questões contemporâneas.

André – Para vocês que significados têm ser uma mulher no Piauí em 2015?

Ana Carolina – Existem muitos tipos de mulheres em contextos diferentes no Piauí hoje. Há a mulher branca, heterossexual, a afrodescendente, a trans. Tentando abarcar isso, acredito que ser mulher no Piauí é uma luta diária para ocupar espaços, tanto profissionais como nas pequenas atividades do dia a dia: andar nas ruas com a roupa que desejar sem ser importunada, sair à noite sem medo de ser violentada. São milhões de liberdades tolhidas, no Piauí e no mundo. Então eu acho que é uma luta para exercer as mínimas liberdades, os mínimos direitos.

Assunção – Na minha visão ser mulher no Piauí é romper paradigmas. Eu falo como negra, pobre, do candomblé, quilombola. A dificuldade de ocupação dos espaços é ainda maior para a mulher humilde, que tá na periferia, muitas ocupando função de trabalhadora doméstica. Por outro lado também se percebe uma mulher contemporânea, que assume as despesas da casa e que tem sonhos. Embora estejamos num estado em que mulheres estão ocupando papéis de destaque, ser mulher no Piauí é muito desafiador.

Clarissa – O feminismo, como movimento político, teve que perder seu viés existencialista, desconstruindo a categoria “mulher” para abarcar a ideia de diferentes “mulheres” e distintas formas de opressão a que essas mulheres, de classes e etnias diversas, são expostas. Ainda existem questões universais às mulheres? E quais são hoje as grandes questões para o movimento feminista?

Ana Carolina – Eu acredito nos “feminismos”. O movimento feminista como uma categoria universal, homogênea, foi rompido e é difícil você dizer que exista um olhar que possa contemplar as demandas da Assunção e as minhas, por exemplo, porque estamos submetidas a contextos diferentes. E as opressões são distintas e definidas de acordo com os papéis que as mulheres estão ocupando nos diferentes contextos. Aí vem uma palavra-chave nos feminismos que é a interseccionalidade: de acordo com o entrecruzamento de características da mulher, ela pode estar mais ou menos vulnerável. Quando se cruzam opressões como: a mulher é afrodescendente, empobrecida e assume orientação sexual não convencional – é lésbica ou bissexual – ela fica mais vulnerável. Daí a necessidade de que hajam movimentos específicos, para atender as necessidades dessas mulheres.

Wellington – Já ocorreram grandes avanços e conquistas nas lutas das mulheres. A mulher hoje é mais feliz?

Assunção – Eu defendo que sim. Há alguns anos a mulher não tinha voz, tinha que pensar pela cabeça do companheiro ou falava para agradar os outros. Hoje as dificuldades continuam, mas ficamos mais à vontade para reafirmar espaços e direitos, podemos fazer mais escolhas, ainda que paguemos um preço. Eu, Assunção Aguiar, se tivesse nascido há 50 anos, não seria a mulher que sou hoje (fala com convicção). Eu não tenho meio termo, assumo posições, sonho e corro atrás. Não vou fazer uma “maquiagem” para que as pessoas gostem de mim. Eu tô dentro desse grupo: da mulher que busca ser mais feliz todo dia.

Ana Carolina – A felicidade é uma coisa muito subjetiva e pode ser momentânea. Você pode se sentir feliz agora e depois já não estar mais. Mas é verdade que antes a mulher era privada de muitas informações e possibilidades. Ela acreditava que tinha um destino traçado, teria que terminar a escola até determinado tempo, depois teria que arranjar marido, ter filhos, criar esses filhos para que fossem bem sucedidos, e isso era a felicidade. Então ela já sabia o caminho a ser trilhado. Hoje a mulher tá procurando a felicidade. E nesse caminho até a felicidade, além de várias descobertas, ela encontra obstáculos, e vai percebendo quantas opressões existem, e isso é altamente frustrante, especialmente para uma mulher militante (olha para Assunção, como em busca de concordância). É frustrante perceber como ainda existem jaulas para tantas mulheres. Eu não sei se a mulher é mais feliz, sei que existem mais caminhos para a felicidade. Se esses caminhos são mais fáceis ou árduos, eu não saberia dizer.

Samária – Vocês duas são mulheres com perfil independente. Se olharmos para a mulher pobre, da periferia, é possível considerar que essa mulher consegue ter uma vida sentimental e sexual autônoma?

Assunção – São poucas. No movimento de mulheres, quando a gente faz oficina nas comunidades, percebe a dificuldade em verbalizar a palavra “sexo”. Muitos homens têm preconceitos e temos dificuldade de comunicação com esses homens. Mas também temos homens que buscam estudar mais, respeitar suas companheiras. Muitas mulheres ainda casam ou continuam a viver junto, em uniões infelizes, pela dificuldade financeira. A gente precisa avançar mais e as mulheres da periferia precisam ter mais oportunidades.

Ana Carolina – A autonomia sentimental e sexual da mulher abarca vários aspectos: corpo, sexualidade, fertilidade – alguns independem de ser uma mulher empobrecida, embora às vezes seja mais difícil para estas. Eu não costumo chamar a pessoa de pobre, eu chamo de empobrecida, porque é uma circunstância. A pessoa pode sair daquele empobrecimento. Bom, mas às vezes as pessoas olham para a mulher que não tem filho ou não casou como se ela fosse merecedora de piedade. “Oh, essa mulher não conseguiu ter filhos, não conseguiu casar”- como se aquilo não pudesse ter sido uma escolha da mulher! (fala com ênfase). Ou dizem: “Oh, a mulher se separou”. Muitas vezes a separação é uma das maiores felicidades, é uma libertação na vida de uma mulher!

André – Algumas questões atingem diretamente as mulheres, como as relacionadas ao aborto, modos de vestir, manifestação de desejos. Onde a gente, como sociedade, pode destravar algumas amarras e derrubar o hábito, basicamente masculino, de legislar sobre o corpo feminino?

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Ana Carolina – O primeiro passo, que ainda não foi dado, é reconhecer a dominação masculina. A criminalização do aborto é uma lei feita por homens, porque a maioria dos legisladores que compõem o Congresso Nacional sempre foi de homens. É tão fácil perceber que há toda uma construção histórica que culminou nos regramentos de hoje. A gente tem que se perguntar: por que é engraçado o homem falar em conquistas amorosas numa mesa de bar, sem baixar o tom de voz, e por que, para uma mulher, um envolvimento fugaz deve ser algo dito com cuidado? Por que homem pode andar de calção de banho na rua e a mulher só fica de biquíni no espaço da praia? Por que essas diferenciações existem e são aceitas também por mulheres, que reproduzem essas opressões? As mulheres são dominadas por todo um sistema que tem raízes históricas que devem ser discutidas de forma mais profunda.

Assunção – Em relação ao aborto a gente tem que assumir que esse é um perigo constante e alguma coisa precisa ser feita. A gente diz: “O aborto é proibido”, e todo dia tem gente morrendo porque faz aborto. O que é melhor: continuar fazendo abortos clandestinos ou assumir que somos um país que pratica aborto há muitos anos? A gente fecha os olhos para realidade que está posta. O aborto no Brasil é uma realidade.

Ana Carolina – E tem mais: o aborto é mais uma penalização que sofre a mulher empobrecida – a verdadeira vítima da criminalização do aborto. Porque a mulher que tem condições financeiras, procura uma clínica e não fica com sequelas. Já a mulher empobrecida fica estéril, mutilada, morre! A maioria é de mulheres da periferia e afrodescendentes. Então criminalizar o aborto é uma forma de legitimar uma exclusão social que já acontece de diversas outras formas.

Wellington –  Os movimentos feministas costumam falar de uma opressão à mulher produzida por homens. Mas esses homens foram criados por mulheres. Tem um livro do O.G. Rego de Carvalho, “Ulisses entre o amor e a morte”, onde Ulisses conta à mãe que está amando e ela diz: “ame, mas ame em silêncio”. Se esses homens, criados por suas mães, tivessem tido uma educação mais aberta, poderiam ter comportamentos diferentes?

Assunção – Veja bem: até quando nós reclamamos da opressão do homem somos as culpadas (fala lamentando); porque se aponta que fomos nós, as mulheres, que criamos esses homens. Precisamos lembrar que vivemos num país machista, e esse país tem uma história onde machismo, preconceito e racismo se encontram de uma forma dolorosa. A mulher precisa que o homem, junto com ela, compre a briga pelos direitos femininos e contra o machismo.

Eu não consigo, como mulher,
ver uma mulher praticando
uma atitude machista
e entender aquela mulher
como machista. Eu vejo
essa mulher como vítima.

ANA CAROLINA

Ana Carolina – Essa mulher a que O.G. Rego se refere é de décadas atrás, quando não havia o empoderamento que existe hoje (“Ulisses entre o amor e a morte” foi publicado pela primeira vez em 1953). A mulher não tinha consciência de que estava reproduzindo um modelo que a oprimia, até porque ela foi vítima da educação que não mexia com os padrões enclausuradores de gênero. O homem era construído para não ser sentimental. O homem que expunha os sentimentos era entendido como fraco e não como romântico. Demonstrar afetividade era negativo. Então a mãe não queria que o filho fosse visto como um fraco. Esse empoderamento só veio com o movimento feminista e todas as discussões posteriores. Por isso é tão importante discutir educação, e não só a escolar, mas a promovida pelos movimentos sociais, feminismo, movimento negro, LGBT, que fazem a discussão de gênero, raiz para várias formas de opressão. Eu não consigo, como mulher, ver uma mulher praticando uma atitude machista e entender aquela mulher como machista. Isso é uma compreensão recente dentro de mim. Eu vejo essa mulher como vítima, porque eu não acredito que, tendo consciência dos efeitos negativos do machismo, uma mulher opte por ser propagadora do machismo. Isso só acontece porque a mulher é contaminada durante anos – na escola, em casa, na família – por uma educação que nem permite que se perceba o quanto se é vítima.

Clarissa – Uma questão que se coloca nos movimentos sociais diz respeito à legitimidade de se participar de tais movimentos quando não se é diretamente prejudicado pela injustiça social que o movimento pretende combater. Por exemplo, homens participando do movimento feminista. Homem pode ser feminista?

Ana Carolina – Eu jamais me relacionaria com um homem que não se considerasse feminista, embora muitos até me digam que não são, mas eu reconheço que são. A palavra feminismo está impregnada de estereótipos de que a mulher vai subjugar o homem e feminismo é igualdade. A maior voz feminista que eu já ouvi na vida foi a de um homem: o professor Francis Boakari, meu orientador no mestrado. Ter conversado com ele me fez redescobrir o meu poder como mulher. Acredito que o homem tenha lugar no movimento feminista, mas não como protagonista. A mulher sempre deve ter o papel de liderança. A pessoa precisa ter a vivência necessária para que possa representar um movimento.

Samária – Algumas músicas, às vezes produzidas por mulheres da periferia, fazem sucesso colocando a mulher como poderosa ou exaltando sua sensualidade. Que papel essas músicas têm? Elas podem contribuir com a emancipação feminina ou reforçar preconceitos?

André – E uma vez que o preconceito também pode aparecer com o disfarce de elogio, como podemos diferenciar o elogio da intenção machista?

Assunção – Aquela música “nega do cabelo duro, que não gosta de pentear” é terrível para a mulher negra. Mas como você vai discutir isso? Essa música oprime a mulher negra, mas há quem diga: “Ah, isso é só diversão. Você é que tem mania de inferioridade”. O preconceito funciona assim: às avessas. O funk nem sempre traz mensagens positivas. Às vezes lhe empodera, outras lhe deixa em situação constrangedora. E há coisas que parecem de menor importância, mas têm peso na nossa construção pessoal. A minha militância no movimento negro, minha definição como mulher de matriz africana, tudo o que eu sou e onde consegui chegar, é uma junção de situações e percepções. Eu me construo diuturnamente no sentido do empoderamento. Mas eu também sou vítima e tenho que me reinventar todos os dias. E essa reinvenção passa por esses fragmentos de identidade que nós vamos colando.

Ana Carolina –  Quando a gente pensa na questão do funk, que também é uma arte, me surgem mais perguntas que respostas: quem tá cantando essa música? Um homem ou uma mulher? Quem é o sujeito que fez a música? Uma mensagem que pode mostrar uma mulher promíscua para algumas pessoas pode ser uma reafirmação da liberdade sexual da mulher. É preciso ficar atento pra não censurar algo que pode ser uma manifestação legítima. Em alguns casos ficam evidentes estigmas que são reforçados, como o da mulher materialista, que quer namorar o cara porque ele tem um carro. Mas eu também acho complicado obstar essas músicas, especialmente o funk, porque grande parte é produzida por pessoas da periferia, que dificilmente teriam a chance de se manifestar por meio de outra forma de arte. E eu, do meu lugar privilegiado, será que posso estar falando sobre o funk? Eu fico mais à vontade pra falar da música sertaneja (risos). Em algumas eu vejo até a incitação à violência: “taca cachaça na mulher que ela libera”. Isso não é engraçado. E as pessoas cantam como se fosse.

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Wellington – Uma cena de TV muito comentada recentemente ocorreu na minissérie “Felizes para Sempre?”, quando a atriz Paola Oliveira apareceu nua, com destaque para a bunda da personagem. O assunto dominou as redes sociais com diferentes discursos. Como podemos interpretar tamanha repercussão? O brasileiro é aficionado por bunda?

Ana Carolina – Isso foi planejado para que repercutisse. Então se escolheu uma mulher bonita, com uma bunda convencionalmente admirável, com uma iluminação adequada e com a expectativa da repercussão, ainda mais perto do carnaval. O formato do corpo da atriz, a sua beleza, acabaram roubando comentários que a gente poderia ter feito sobre as dificuldades de relação que aconteciam dentro da história, que foi muito rica nesse sentido.

André – Esse tipo de repercussão, que deixou de lado a trama e se concentrou no corpo feminino, não é um reflexo do machismo, da objetificação do corpo feminino?

Ana Carolina – A objetificação da mulher atende interesses do mercado. Por que as propagandas de cerveja são feitas por mulheres bonitas? Porque se acredita que a maioria dos consumidores são homens. Uma novela que destaca uma mulher bonita também busca questões mercadológicas. Isso traz várias outras questões: as mulheres ficam se comparando com as capas de revista, buscando alcançar uma imagem que acham necessária. E existe um ideal de beleza cultivado que é eurocêntrico. Ele não contempla as mulheres negras. Raramente você vê uma mulher negra como a mais bela do Brasil. Por que, se 50% da população brasileira é afrodescendente? A objetificação do feminino e a reprodução do ideal de beleza são altamente excludentes.

Quando se olha para a
mulher negra,
até hoje se pensa:
é boa pra sambar,
pra ser amante –
porque é boa de sexo –
e pra cozinhar.

ASSUNÇÃO

André – No ano passado a mulata globeleza foi duramente criticada. Afirmou-se que ela fugia aos padrões de beleza, por ser mais escura e não ser convencionalmente bonita. Em 2015 houve um processo de embranquecimento da mulata, que passou a ter traços mais finos e pele mais clara. Como isso repercute na vida das pessoas afrodescendentes? E qual a responsabilidade que a mídia deve ter sobre isso?

Assunção – Nós, que militamos no movimento negro, temos olhado a mídia com precaução. A novela “Da cor do pecado” trazia uma protagonista negra, a Taís Araújo. Mas ela era “da-cor-do-pecado” (fala pausando). Na novela “Cobras e Lagartos”, novamente com Taís Araújo e Lázaro Ramos, os dois eram trambiqueiros. Como é que nossa juventude negra vai perceber isso? Quando você vai assistir a um programa infantil, também não vê meninos negros. Nas propagandas, quando aparecemos, dificilmente somos protagonistas. Os negros consomem, mas o dono da loja é branco, quem contrata os funcionários é branco, quem produz as propagandas é branco, e eles não nos veem como sujeito que vende bem um produto. Tem uma história que ainda precisa ser contada todos os dias: o Brasil foi um dos últimos países onde o negro saiu da condição de escravo. O problema foi o dia 14. Porque no dia 13 de maio se fez a festa, e no dia 14 o negro descobriu que não tinha para onde ir. Ele precisou voltar pra casa dos senhores, pra trabalhar de novo pela comida. O Brasil é resultado disso. Quando se olha para a mulher negra, ainda hoje se pensa: é boa pra sambar, ser amante –  porque é boa de sexo – e pra cozinhar. Ainda são essas as referências. Várias vezes me falaram: “Mulher, tu tem alguém que queira trabalhar em casa de família?”. Porque é como se tivesse escrito na sua cara negra que você tem alguém que precisa trabalhar em casa de família (fala com emoção).

Samária – Você considera que há uma invisibilidade imposta às necessidades dos negros?

Assunção – Nós somos a maioria da população brasileira, mas somos invisíveis! (segundo o Censo 2010, 50,7% da população brasileira são de negros, a maior parte vivendo no Norte e Nordeste). Nos bairros, se você encontra uma turma de jovens brancos, são cidadãos. Um grupo de jovens negros, são ladrões. Hoje, no Piauí, a maioria das mulheres presidiárias é negra. A maioria dos homens presos também é de pretos. De cada três jovens que morrem no Brasil, dois são negros e pobres. Então vivemos um genocídio da população negra e pobre. E isso acontece muito graças à invisibilidade. Como a gente não é visto como algo positivo, continuam matando e se acha que isso é normal. Nossos gestores precisam assumir que o estado do Piauí é racista. E precisamos tomar medidas de socorro à população negra. Ainda tivemos recentemente mortes de pais de santo. Também somos um estado de intolerância religiosa, especialmente com os cultos de matriz africana. Há aí outra questão, que diz respeito à homofobia: a matriz africana acolhe todos e todas, independente da orientação sexual. Então você junta tudo isso e dá um caldo de preconceitos.

André – Sobre a situação de invisibilidade a que alguns grupos são submetidos, como pode ser avaliada a questão das pessoas trans e bissexuais?

Ana Carolina – Talvez as meninas trans sejam um dos grupos de maior vulnerabilidade social, até porque essas pessoas trazem um estigma na própria aparência. A maioria não consegue terminar os estudos, sofrem bullying na escola e têm dificuldade de entrar no mercado formal de trabalho. Muitas vão trabalhar no salão de beleza, porque lá você não se assusta; ou nas ruas, à noite. Elas são tão invisíveis que eu desafio vocês, aqui da sala, a dizer se já estudaram ou trabalharam com pessoas trans, se já encontraram uma pessoa trans no shopping? (silêncio). É muito bom falar disso nessa entrevista, senão seria mais uma oportunidade em que as pessoas trans seriam deixadas de lado. E as taxas de homicídio e violência são altíssimas! Antes, não se anotava nas ocorrências a orientação sexual e identidade de gênero, então, em muitos casos, não se levava essa informação em consideração na apuração e levantamento das estatísticas. O censo do IBGE até hoje não pergunta sobre a orientação sexual. Então a gente não tem o número de trans, gays, lésbicas e bissexuais no Brasil e no Piauí. As mulheres bi também são invisibilizadas e, dentro do movimento LGBT, clamam por mais espaço e atenção.

Wellington – Nossa sociedade pratica muitas formas de exclusão e há uma forte valorização da juventude e da beleza. Como vocês percebem o envelhecimento para a mulher?

Ana Carolina – Envelhecer causa mais dificuldade à mulher que ao homem. Mulheres que têm cabelos brancos são vistas como pessoas que não se cuidam. Já homens, são charmosos. No mercado de trabalho, mulheres com mais idade costumam ter maior dificuldade em arranjar emprego. Se o envelhecimento é acompanhado por questões como ausência de filhos ou de um casamento, a mulher pode ser vista como mal sucedida. Então o envelhecimento pode ser algo que exclua a mulher ainda mais da sociedade. Muitos recriminam mulheres de mais idade que namoram ou tenham vida sexual ativa. Quanta chacota fazem com a Suzana Vieira porque ela tem 67 anos e namora?! Ela é ridicularizada quando aparece com uma pessoa mais jovem, que talvez tenha mais coisas em comum com ela que alguém de mais idade. Eu vi uma declaração tão sensata e triste da Suzana Vieira: ela disse que queria casar com vestido de noiva, mas ouviu tanta chacota que esqueceu essa ideia. Eu nunca vi uma noiva de cabelo branco. Vocês já viram?

Assunção – (que ouvia tudo atentamente, faz uma pausa e fala) Eu sou mais romântica que pessimista. Eu quero chegar nos meus 70 anos amando e sendo amada. É meu sonho, tá? Então vou responder olhando pra mim mesma. A situação da mulher negra, envelhecida, deixada de lado, é um modelo que não serve pra mim. É preciso ser feliz, e eu sei que a felicidade não é eterna, mas eu acredito que ela é feita de cada coisa que a gente constrói. Eu tô aqui, conversando com vocês, e tô num momento feliz. Quando eu chegar em casa, alguma coisa pode me deixar triste, mas meia hora depois eu tomo um banho, molho meus cabelos e digo: “eu tô aqui”. Com tudo o que eu já passei na vida, eu não posso deixar de sonhar com um futuro que seja melhor que a vida que eu tenho hoje (fala com emoção). Eu não me dou esse direito, entende? Então eu quero envelhecer bem. Eu não conheço ninguém mais apaixonado pela vida do que eu! E mais: acho que todo dia você tem que agradecer ao sol pelo brilho que ele tá lhe dando, porque por mais que um dia amanheça nublado, tem uma hora que o sol vai brilhar. Assim é para todos nós. Eu sou uma mulher de axé e quem é de axé não nega que é (risos).

(Publicada na edição #18, março/abril de 2015)