(Participaram desta entrevista: André Gonçalves, Maurício Pokemon e Samária Andrade)

Temos uma identidade? E mais: precisamos tê-la? A pergunta não saía de nossa cabeça quando deixamos a casa de Teresinha Queiroz, historiadora com mais de 30 anos dedicados ao magistério. Intelectual tão aplicada que quando se aposentou da Universidade Federal do Piauí (UFPI) teve uma ideia: fez concurso e pronto – voltou a ser professora da mesma instituição.

Sem espetáculos, sem escândalos, bem humorada. Discreta em tudo, até no sorriso que acompanha algumas de suas falas, como uma senha para que entendamos: aquilo era uma ironia. É capaz de fazer análises profundas com rapidez – coisa de quem estudou muito. Mas também de sinceramente admitir “eu não sei” ou “eu ainda não pensei sobre isso” – coisa de quem estudou muito mesmo. Ao ouvi-la falando com desenvoltura, pensamos: o show de Teresinha acontece é na sala de aula. Ou nas muitas palestras e poucas entrevistas que dá.

Nascida em Esperantina, a segunda de dez irmãos, Teresinha de Jesus Mesquita Queiroz veio para Teresina aos 15 anos. Tinha a missão de passar no vestibular de primeira, ou voltaria para o interior e cederia a vez para outro irmão. Fez História por medo de não passar em outro curso. Mas se descobriu. Mais tarde fez mestrado em Curitiba e doutorado em São Paulo, na USP – tudo na área de História.

Na Teresina da década de 70 virou freqüentadora do Arquivo Público, onde, conta, leu e releu Shakespeare, Machado de Assis, Jorge Amado, Érico Veríssimo. Hoje tem sete livros de sua autoria publicados, além de ter organizado outras 18 obras. A produção lhe credenciou a fazer parte da Academia Piauiense de Letras, embora não tenha escrito nenhuma ficção. Ela argumenta: “Toda narrativa tem uma dimensão ficcional. Nossos discursos são, em boa parte, relacionados à nossas documentações, mas vamos preenchendo as lacunas com nossos modos de narrar inventivamente. Todos nós fazemos ficção, em algum momento”.

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Foto: Maurício Pokemon

Na sala de sua casa, objetos de decoração da Serra da Capivara e quadros de pintores piauienses. Mas o que a encanta ocupa dois dos três quartos do apartamento: estantes cheias de textos e livros. Quase três mil títulos. Na varanda, algumas plantas como que empurradas para os cantos. “Antes eram de plástico, para não ocupar o tempo que eu posso passar lendo”, conta. “Desde os 15 anos eu sentia um vácuo muito grande de saber, eu queria, queria, queria e não achava”.

A historiadora foi preenchendo a vontade de saber com leituras. Nos anos 70, tempos de escassez em quase tudo, comprar livros em Teresina era uma dificuldade, então, quando viajava, ela chegava a comprar 70 livros. Afirma que hoje Teresina é muito diferente. Mas considera que no mundo, especialmente na última década, a qualidade dos livros caiu muito. A prova disso estaria num movimento de revalorização dos clássicos. “Grandes autores dos anos 60 e 70 estão com livros que resultam de coletâneas, como Caio Prado Júnior, Celso Furtado, Fernando Henrique, Octavio Ianni, José de Souza Martins. Isso sem contar Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, aqueles inventores do Brasil, que vem dos anos 30”, argumenta.

No final da entrevista temos a sensação de que Teresinha revelou menos de si do que de todos nós. Conferimos o gravador para ver se gravamos tudo. Ela diz: “se não tiver gravado, eu falo tudo de novo”. Não era só uma gentileza. Era a fala de alguém que adora pensar. E provocar os nossos pensamentos.

André – Os autores clássicos que estão sendo retomados se referem a períodos anteriores. E a história contemporânea, dos anos 70 para cá, quem está contando?

Teresinha Queiroz– Ocorrem hoje como se fossem três movimentos: o do retorno aos clássicos, o da valorização de uma história do presente – através das biografias – e também as vulgarizações que vendem aos milhões. Talvez a forma de consumo mais forte da história seja hoje de autores como o de 1808, 1822 (Laurentino Gomes). Eles pegam a matéria prima da história e transformam em textos facilmente consumidos por um público menos especializado, mas também culto, que tem interesse pela história.

André – Esse tipo de produção, que leva a história para as pessoas que não conseguem ou desejam ter um aprofundamento maior, como é vista pelo historiador profissional?

T. Q. – Eu acho muito interessante, porque há uma demanda por história muito grande nas últimas décadas, então há pessoas que se voltam para essa produção. Embora não seja profissionalizado é um saber que alimenta a cultura histórica. E quanto mais gente se interessar por história, melhor. É uma produção para o mercado? Sim. Mas o mercado tá pedindo essa produção, que não pode ser atendida por mim, por exemplo. E esses autores também pesquisam, escrevem com certa fidelidade à documentação, mas adaptado à necessidade de fruição da leitura das pessoas que também têm direito a história e muitas vezes não teriam prazer em ler um livro mais aprofundado.

Samária – Que tipo de leitura interessa mais a esse mercado consumidor que está despertando para a história?

T.Q. – O tempo presente tá muito valorizado. Muitos trabalhos dizem respeito a temporalidades recentes, anos 60, 70, 80. Há como se fosse uma construção de categorias analíticas por décadas, que geram livros, palestras, eventos. E quase sempre as temáticas são ligadas a juventude, política, cultura. São temas mais largos do ponto de vista do interesse.

Samária – E quando a história passa a ser interessante para o mercado, não se corre o risco de deturpações?

T. Q. – Sim. Há por um lado uma possibilidade do próprio mercado dar dinâmica a esse tipo de produção de história para consumo mais geral. Por outro lado, o que me preocupa mais, é que a gente percebe que a história é tão interessante que virou um negócio para o Estado, que deixou de ser apenas financiador e passou a querer formatar a própria história. O que acontece é que nós vemos alguns fatos ganhando visibilidade por um interesse do Estado, como a Batalha do Jenipapo (Batalha pela independência do Brasil ocorrida em Campo Maior, Piauí, em 13 de março de 1823).

Samária – Como a gente pode avaliar o uso político para a Batalha do Jenipapo?

T. Q. – A valorização da Batalha começa nos anos 20, com Clodoaldo Freitas, Hermínio Conde e as influências da literatura revisionista, que coloca o povo como herói da história. Isso faz parte de uma mudança metodológica geral que acontece no campo das humanidades e coloca o saber de ponta cabeça. Os heróis quase invertem para a posição de bandido e os esquecidos da história se tornam protagonistas. Esse movimento vai enfatizar as classes populares em todo o mundo, inclusive no Piauí. Então, nos anos 70, Alberto Silva dá um ressignificado à Batalha quando financia o monumento do Jenipapo e todos os eventos em torno do 13 de março, que é uma data que passa a competir com o 19 de outubro (Dia do Piauí , data que valoriza movimentos pela independência do Brasil em Parnaíba) e 24 de janeiro (data de adesão à Independência do Brasil em Oeiras). Essa é uma das disputas simbólicas mais importantes do Piauí: a prevalência é de Parnaíba? É de Oeiras? Depois Campo Maior começa a querer ter também o seu espaço.

André – Essa prevalência de uma cidade ou outra tem uma dimensão política. Como isso pode ser avaliado para a história do Piauí?

T. Q. – Eu percebo um certo equilíbrio de forças no Estado que vem se mantendo, sem prevalência de norte, centro ou sul. Uma vez inventei uma palestra, acho que ninguém gostou, só eu (risos). Era mostrando essa dinâmica dos grupos de dominação no Piauí a partir de 1850. Por exemplo, o semiárido agora tá se revalorizando, mas passou tempos difíceis. Nem por isso as elites políticas do semiárido deixaram de ser importantes. O norte do Estado, ora está abaixo, ora acima e as elites políticas se mantêm. Campo Maior ganhou em simbologia, mas perdeu em política. A verdade é que a dinâmica política de poder até hoje continua muito parecida. Desde o século 18 a região do cerrado quer respirar e não respira. Com toda a soja, algodão, continua politicamente pouco representada.

A sociedade piauiense acha que Direito é uma panacéia. Há um sonho em ser promotor, juiz, que na verdade termina sendo um sonho mesmo porque as vagas são limitadas

Samária – Você falou em disputa simbólica. Nós podemos pensar em uma simbologia para o Piauí? O vaqueiro pode ser esse símbolo

T.Q. – Acho que o vaqueiro tá na moda, com Luiz Gonzaga e outros signos da nacionalidade brasileira. Mas o vaqueiro representa um passado, não um presente. Primeiro porque nem sei se ainda existe vaqueiro, só em coral, procissão e missa. Mas a pecuária é completamente diferente, e hoje, no Piauí, é tão pequena e modernizada. O meu boi morreu mesmo! Agora é gado de raça, embrião, o que existe e sobrevive no mundo competitivo capitalista não é mais aquele boi do passado. A carnaúba também morreu. Se a gente precisar inventar um símbolo agora para o Piauí eu não tenho a menor ideia de que símbolo seria esse.

André – E esses movimentos de ressignificar o vaqueiro e outros símbolos regionais não acontecem dentro do processo que coloca o povo como protagonista da história?

T.Q. – Talvez. No passado a visão do piauiense sobre ele mesmo era diferente. Se você ler detalhadamente a historiografia da Independência vai ver que Abdias Neves, num capítulo, chama o piauiense de mole, fraco, coloca a população do Piauí como acovardada, apática, incapaz de tomar atitude. Ele relata a Batalha do Jenipapo como muito atrelada à intrepidez dos cearenses.

Samária – Essa seria uma interpretação para o que o piauiense foi no passado. E hoje, é possível definir esse piauiense?

T .Q. – Não sei, mas percebo um esforço grande de que haja uma doação de uma identidade para  o Piauiense. Essa é uma discussão que eu acho muito antipática. É como se a gente não tivesse condição de construir em moto próprio, o nosso ser, a nossa identidade. O próprio movimento de valorização da Batalha do Jenipapo é uma busca de dar uma identidade ao povo piauiense. Alguns governadores retomam isso muito festivamente. Parece que a gente é uma coisa oca e o Governo precisa instituir uma identidade pra colocar em nosso interior. É como se fosse injetado na gente uma piauiensidade. Não sei qual seria a nossa identidade, até porque não sei se há uma diferença só porque temos uma fronteira geográfica com o Maranhão ou o Ceará.

Samária – E não há uma identidade própria em alguém de uma determinada região?

T .Q. – Quando a República foi instituída criou-se o pacto federativo e nós levamos  isso muito a sério até hoje. Vivemos em um mundo globalizado, todo mundo viaja, se comunica, a fronteira política instituída não institui uma diferença no nosso modo de ser. As pessoas são múltiplas, a sociedade contemporânea é muito híbrida. Acho que há um esforço dos Governos, para ter visibilidade política, em lidar com essa dimensão simbólica da identidade, mas eles tratam como uma inserção política como qualquer outra. Ou seja: cuidar da identidade é como cuidar de estrada. A questão da identidade precisaria ser melhor refletida para gente entender inclusive porque se fala tanto em identidade. Há uma instância que coloca isso, e a gente aceita, alimenta. E se a gente aceita e alimenta é porque bate em alguma coisa na gente.

Samária – No seu livro “Os Literatos e a República” você conta que a formação em Direito, no início do século passado, foi muito influente no Piauí. Hoje existe alguma formação profissional que ocupe esse espaço?

T .Q. – Direito (risos). A sociedade piauiense acha que Direito é uma panacéia, tanto que os pais ainda sonham que seus filhos se formem em Direito e a quantidade de jovens que se forma em Direito em Teresina é imensa. Há um sonho em ser promotor, juiz, que na verdade termina sendo um sonho mesmo porque as vagas são limitadas e a concorrência é muito grande.

André – E com as transformações tão grandes em todo o mundo e suas influências no Piauí, porque essa formação profissional persiste como a mais valorizada?

T .Q. – Eu não sei responder. Mas é uma coisa que me inquieta muito. Valeria à pena alguém investigar. Direito é um curso que quase não tem evasão. Para a faculdade é excelente porque é fácil para manter: não é caro, não tem laboratório, os alunos compram os livros. Nas livrarias de Teresina, metade é livro de Direito.

 Samária – Uma reclamação comum que se faz em Teresina diz respeito às poucas oportunidades de lazer. Como você vê isso?

T .Q.  – Eu acho que tem é pouco dinheiro para gastar em lazer, porque Teresina tem um turbilhão de acontecimentos. Há uma quantidade imensa de restaurantes, bares, eventos, lançamentos. Acho que isso de dizer que em Teresina não acontece nada é um discurso dos anos 70, que até hoje as pessoas falam e, se você for analisar, não se sustenta.

O poder não é físico, não está na pessoa, mas na legitimação que a gente dá a essa pessoa. A pessoa só se acha se a gente deixar ela se achar

André – Esse discurso tem alguma ligação com autoestima baixa?

T .Q. – Sim. E talvez isso tenha origem no que ocorre a partir dos anos 50 quando há um ranqueamento em tudo. As instituições de pesquisa de natureza quantitativa como IBGE, Fundação Getúlio Vargas, Banco Mundial, começam a interpretar o mundo através de tabelas. O IBGE, em meados dos anos 50, publica a primeira pesquisa com o ranking dos estados brasileiros. São Paulo aparece em primeiro lugar. O último era o Piauí. Essa descoberta impactou fortemente a maneira como os Estados passaram a se enxergar.  O Piauí se tornou, a partir daí, no discurso local e nacional, o pior Estado do Brasil. A ironia é que se a pesquisa tivesse sido feita alguns anos antes, o Piauí estaria muito bem. Tínhamos um espaço mundial, conquistado na época do extrativismo da carnaúba e babaçu, que teve seu auge entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial. No final da Guerra houve uma reorganização na economia mundial, com novas matérias primas e tecnologias, e o Piauí entrou os anos 50 acabado. Aí a gente cai nessa dura realidade de ser um dos Estados mais pobres. Isso virou um folclore, um deboche nacional. Acho que essa imagem tá defasada. Talvez correspondesse nos anos 50, 60. Mas a partir dos 70 já há uma mudança relativamente grande do lugar do Piauí no cenário nacional.

André – Existe uma forma de mudar essa questão de uma baixo autoestima?

T.Q. – Primeiro a gente não deve alimentar essas mistificações, deboches. Acho uma responsabilidade nossa evidenciar aquilo que é o melhor. A mídia tem seu papel, o Estado, os professores. Eu acho Teresina uma cidade charmosa, interessante, diferente, muita cultura própria hibridizada com coisas de longe.

André – Em Belo Horizonte existe também uma reclamação do povo com a cidade, já o carioca nunca fala mal do Rio de Janeiro. Existe alguma relação com a predominância de tradições agropecuárias?

T.Q.  –  Talvez não nos libertamos de nossa condição de colonizados. Sempre achamos que o outro, o que está no litoral, na Europa, longe, é melhor. Isso é uma reiteração de algo que se formou em séculos passados e que se atualiza. O que era bom no período colonial? Era ser português. O que acontece no Brasil hoje? Apesar do movimento na direção do sertão e de valorização da cultura sertaneja, a identidade que prevalece é a litorânea. O Rio é a Cidade Maravilhosa a partir de Pereira Passos (engenheiro, prefeito do Rio de Janeiro de 1902 a 1906) quando é desmanchada da sua condição de cidade colonial e se faz uma Paris nos trópicos. Assim como vai acontecer em Recife e em outras cidades que são reformatadas no modelo europeu e assim são cada vez mais valorizadas. Na imaginação brasileira é mais ou menos como se o oásis estivesse no litoral e os outros locais fossem desertos. Mas nos últimos 30 anos o que se atualiza é o movimento da conquista do oeste. Há uma interiorização extraordinária que tem mudado radicalmente o Brasil e ninguém nota. Há como se fosse um gap entre o discurso e a vida. A gente repete coisas que vem de séculos passados e esquece de olhar que não é mais assim. É como se o nosso conhecimento sobre as coisas estivesse sempre um pouco atrasado.

Samária – falar mal do capitalismo é também um discurso ou tá colado no real mesmo?

T.Q. – O capitalismo já foi mais mal falado. Hoje ele já abraçou a todos, para o bem ou para o mal. Na minha infância o mundo era dividido em dois, e eu não tô falando de guerra fria que eu nem sabia que existia. O mundo era dividido em parte de cima, onde nós estávamos, e o Japão, que se a gente cavasse muito o chão ia chegar lá. Ou seja, as coisas eram muito duais e organizadas. Hoje se perdeu completamente essa dualidade, graças a Deus. Mas nessa dualidade, havia os capitalistas e os explorados. Na ciência social dos anos 50 a 70 há uma prevalência extraordinária do pensamento marxista, inclusive no Brasil. Eu fui criada numa perspectiva de que os lugares estavam delineados: o detentor dos meios de produção oprime e aquele que não tem os meios de produção é oprimido. Mas esses modelos se esgotaram. A forma de pensar o mundo hoje é muito mais plural, fragmentária e complexa. A opressão não é vista só do ponto de vista econômico, é uma instância que recobre inclusive aqueles que seriam os opressores. Porque mudou a dimensão do poder, o poder antigamente era algo que vinha de cima e incidia sobre os de baixo e hoje é visto como uma rede, todos nós somos poderosos, ora mais ora menos. O poder não é uma coisa que eu segure, é algo que se move em uma rede de relações. Cada um detém, num certo momento, uma fração de poder que pode perder daqui a pouco, ou pode se empoderar mais. As coisas perderam a dualidade e se misturaram de tal maneira que é difícil você achar o “cima” e o “baixo”. Cada um de nós é capitalista e proletário ao mesmo tempo.

André – Em que medida você acha que isso é bom ou ruim, porque, de alguma maneira, essa forma de vida mais dual dava um certo conforto intelectual, né?

T.Q.  – Eu não tenho saudades dos dualismos. Acho muito interessante o mundo contemporâneo. Agora isso tem implicações grandes sobre o pensamento. Por exemplo: como explicar os acontecimentos se não baseando-se na tensão dual? No começo dos anos 80, 90, essa questão foi muito debatida e criou ansiedade. Hoje já não percebo isso. Eu não sou muito apocalíptica com nada, sou satisfeita com o mundo como ele é. Claro, insatisfeita com muitas coisas, mas não sou pessimista.

André – Há um pensamento que diz que a história é contada por vencedores. Com todas essas transformações, quem vai contar a história?

T.Q.  – Ela é contada na relação entre vencedores e vencidos. Cada vez mais, os personagens tidos antes como de baixo, estão formatando os discursos. Michel de Certeau coloca como centro da prática social aquelas pessoas que chamavam os comuns. Os pesquisadores dele iam morar na casa da dona de casa, do pedreiro, e anotavam as rotinas, falas, sentimentos. E ele fez uma revolução nas ciências sociais a partir disso, dando uma dimensão àquilo que não era objeto de interesse. A partir dessas observações combateu a tese da cultura de massa, de que todos eram passivos frente à cultura, aos costumes, ao poder. Thompson dizia que não há passividade nos camponeses, nos operários, que eles têm suas instâncias de poder, seus espaços de formatação de interesses. Os operários na Inglaterra, no auge da Revolução industrial, vão criando suas formas de burlar a opressão. Eles atrasavam, paravam os relógios. Isso é uma forma de insurgência contra o poder.

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Foto: Maurício Pokemon

Samária – Sobre a questão de alguém ser poderoso em um determinado momento e em outro não, não dá a impressão de que algumas pessoas que estão em situação de poder esquecem disso?

T.Q. – Esquecem porque a gente deixa. O poder não é físico, não está na pessoa, mas na legitimação que a gente dá a essa pessoa. A pessoa só se acha se a gente deixar ela se achar. Claro que uma coisa é a teoria, outra é a prática, mas uma pessoa só se institui enquanto poder porque nós a colocamos lá. Agora mesmo estamos assistindo uma movimentação política extraordinária que é a queda dos governos autoritários do Oriente Médio e regiões afins. Ali caiu um e cairão todos, com muito sangue, violência, mas acho que viverão cada vez menos com intervenção americana, porque nos Estados Unidos não se legitima mais tanto essas interferências em relação ao Oriente Médio. E o que tá acontecendo lá não é porque França, Inglaterra, Estados Unidos querem. É porque a população de lá quer, quem tá fazendo a movimentação no Oriente Médio são as populações locais,

André– A diferença entre o que querem as populações e seus governantes, é também um gap entre o discurso e a vida?

T.Q. – Pode ser, mas se você observar bem, os discursos dos grandes chefes mundiais hoje são muito cautelosos, sintonizados com as opiniões, porque hoje os discursos reverberam muito rápido, cada vez mais a palavra tem poder e a palavra empoderada é perigosa, principalmente para aquele que está no poder. Você vê o cuidado que tem o Obama de se referir a política internacional, o medo de acirrar não problemas externos, mas internos. Hoje o que sustenta boa parte do empoderamento dos governantes é a opinião. Vivemos numa sociedade de opinião, você vê o que um twitter é capaz de fazer e o medo que têm os governantes dessa grande comunicação incontrolável. Essas coisas todas alteram os discursos, a relação de poder e alteram a condição de poderoso e não.

André – A situação da prisão de Julian Assange (jornalista do site Wikileaks que, em 2010, vazou documentos sobre crimes de guerra cometidos pelo Exército dos Estados Unidos) é muito curiosa: um governo latino-americano, do Equador, oferecendo asilo político, garantindo liberdade de expressão, e a Inglaterra, que é o grande país liberal, não permitindo que ele saia.

T.Q. – Foi uma guinada de 180 graus, porque o que fez a Europa há 30 anos? Recebeu os oprimidos latino-americanos. Eu não sei em que vai dar o caso de Assange porque vai ter que ser uma saída diplomática inteligente. Tem a Inglaterra querendo radicalizar e o Equador querendo entrar nesse espaço. É a disputa entre vários países e o homem, que é doido, querendo sair (risos), mas, se sair, perde o asilo. Ele incorreu em algo que é, digamos, um acordo entre nações,

André – Como você vê o ato de uma pessoa só desafiar todo um sistema econômico e político internacional?

T.Q. – Essas teorias todas permitem compreender o que a gente tá vendo. O poder dele é extraordinário! O que percebo é que é possível atribuir um grande poder a um sujeito em um certo momento. E olha a mobilidade do poder: lá dentro ele tá empoderado, se ele abrir a porta e sair, morre. E a morte dele seria facilmente legitimada pela infração que cometeu, que é internacional. O poder de Assange deriva de todas as ações que ele realizou deslocando as normas. Ele expôs documentação americana, mas outros países têm medo porque ele pode fazer isso com qualquer um.

André – A história, de alguma maneira, surge como uma busca pela verdade. Com todas essas mudanças, qual o papel da verdade e da história hoje?

T.Q  – Esse paradigma da verdade é construído a partir da antiguidade, mas ressignificado na idade média, quando a ideia de verdade se associa ao cristianismo. Nos séculos 16,17, há a verdade cartesiana, da razão, da lógica. Nos séculos 18,19 essa racionalidade é ligada ao iluminismo. Há a verdade do poder, mas também da liberdade, fraternidade, igualdade, uma verdade cidadã. A própria ideia de verdade vem se transformando ao longo da história. Nos anos 60, que são esses anos de revolução dos comportamentos, a grande crise que se instaura é como lidar com uma verdade que não é mais passível de ser percebida associada a algum sentido. Há um esgotamento da noção de verdade e se instituem verdades. Há a pluralização, da ideia quase religiosa da verdade, e se começa a trabalhar com verdades menores, mais parciais. A verdade saiu da religião, da política, da filosofia, da racionalidade e se ancorou nos discursos. E como fazer a ligação que havia entre verdade e referente? Como lidar com o que é real num mundo desmaterializado? Essas são as questões atuais. E como se tem resolvido isso? Construindo conceitos, que também são discursos, que se modificam ao longo das décadas e ajudam a pensar. Hoje se considera que aquilo que imaginamos em relação à realidade, mesmo que não tenha esteio de existência factual concreta, existe. O que a gente sonha, pensa, sofre, tem existência. O mundo hoje é esse, onde criamos toda uma simbologia que nos ajuda a abandonar o medo da perda da verdade.

(Entrevista publicada na Revestrés#04 – Setembro/Outubro 2012)