Participaram dessa entrevista: André Gonçalves, Samária Andrade, Wellington Soares e Noé Filho (Convidado, Geleia Total). Texto, edição e fotos: André Gonçalves.

“Carmen Miranda era portuguesa, Milton Nascimento é mineiro e eu sou piauiense”. É com frases assim que Patrícia Mellodi, 47 anos, reafirma aos interlocutores a sua identidade. Ou aquilo que, no Piauí, costuma-se chamar “piauiensidade”, revelada ainda em postagens nas redes sociais quando, por exemplo, comemora a chegada, ao Rio, de um isopor enviado por amigos do Piauí com cajuína, castanha e doce de buriti. Filha de piauienses, por circunstâncias da vida nasceu no Rio de Janeiro mas, aos quatro anos, já estava em Teresina. “Eu nem à escola fui, no Rio de Janeiro”.

Foto: André Gonçalves

Quase uma menina-prodígio na cena musical da capital do Piauí, ainda muito jovem (e ainda Patrícia Melo) estava sempre nos palcos da cidade, onde demonstrava se sentir em casa. Uma casa que logo lhe pareceu bem apertada: Patrícia queria mais espaço. Espaço para cantar, dançar, representar e ser artista. “Eu queria ser artista de musical”.

Se esse nunca foi exatamente o destino dos sonhos para os familiares, era o sonho da menina que, quando chegou aos 22 anos, casada e já com uma filha, embarcou para o Sul-Maravilha. Decidida e, como ela insiste em frisar, obstinada, cantou, dançou, estudou, experimentou. Terminou um casamento, viveu, casou de novo, teve a segunda filha, ganhou dinheiro, fez shows, quebrou a cara, separou outra vez, não acumulou bens. “Eu só tenho música. Minha mala é isso”.

Com uma forcinha da numerologia, Patrícia Melo deu vez a Patrícia Mellodi. Colocou duas músicas em novelas da Globo quando isso representava prestígio e – algum – dinheiro. Esteve em programas como Domingão do Faustão, Vídeo Show, especiais de fim de ano. Cantou – e canta – com artistas como Zeca Baleiro, Wagner Tiso, Tunai. É parceira de Carlinhos Brown, foi gravada por Ney Matogrosso e fez shows no Canecão, tradicional casa de shows do Brasil. Com a voz que julga adequada para a noite e cantando bossa-nova, contribuiu para que o lendário Beco das Garrafas, voltasse a ser um ponto de encontro de quem gosta da música brasileira. Patrícia Mellodi foi condecorada no Piauí e é “Embaixadora do Turismo” do Rio de Janeiro. Recentemente, teve a canção Últimas Palavras gravada pela Brandenburger Symphoniker, na Alemanha, em versão em inglês – Last Words, na voz de Cristina Braga. 

Mãe de Clara e Nina, Patrícia Mellodi nos recebeu numa noite quente em Teresina, em um dos tradicionais quintais da zona Norte da cidade. Uma grande mesa, com toalha florida, estava pronta para nossa conversa. Ventiladores a postos, paçoca, cerveja gelada, Patrícia nos apresentou uma pessoa a quem poucos têm acesso. Mais do que a artista “espevitada” e que emana força e alegria quando se apresenta nos palcos, ela nos apresentou Ana. “Meu nome é Ana Patrícia; a Patrícia é a persona. A Ana é aquela que quer ficar em casa, quer fazer comida, que cuida dos amigos, varre o quintal, lava banheiro”.  

Em quase duas horas de conversa, Patrícia e Ana se revezaram – e se revelaram. Patrícia agitou os braços, cantou, riu abertamente e foi enfática em alguns momentos. Ana tomou cerveja, algumas vezes suspirou enquanto olhava para algum ponto além do quintal, às vezes quase sussurrou uma resposta. Muitas vezes olhou para o céu estrelado.  

O resultado é essa entrevista, em que Patrícia Mellodi e Ana Patrícia se misturam e parecem estar a caminho de fazer as pazes. Patrícia contou a história da artista. Ana contou a vida da mulher. 

Foto: André Gonçalves

André – Você optou pelo trabalho autoral, e com muita convicção. Que diferença isso faz na carreira de uma artista?  

Patrícia Mellodi – Eu acho assim: você pode ser autoral sendo intérprete. O fato de você descobrir uma obra nova de alguém e a transformar, trazer pra você, a torna autoral também. Mas a autoralidade é uma coisa mais difícil, você está carregando duas bandeiras: a persona do artista e a obra. Muitas pessoas diziam: “grava uma coisa conhecida, você já é uma voz nova, nome novo, com música nova, é muito difícil”. Eu sei da força que tenho cantando. E eles queriam que eu cantasse a música deles, e não a minha. Isso foi uma briga, ainda é até hoje. Mas quando consigo fazer a minha música, com minha voz, vou existir na posteridade. Pode ser até uma soberba minha, de querer existir depois. Mas eu queria ser nome de rua, de escola (risos). Queria que minha neta recebesse direito autoral, que um dia lembrassem que fiz essa obra. Tenho mais de 200 canções, 70 gravadas. Algumas pessoas começando a me gravar, agora que estou conseguindo isso. Quando reproduzo algo que alguém já fez eu não estou fazendo nada de novo, e não gosto dessa ideia de estar fazendo algo que seja repetido, que eu esteja imitando. Se você falar que isso é o que está tocando, vou no sentido inverso. Minha filha fala que é porque tenho a lua em aquário, com a lua em aquário a pessoa quer ser diferentona, ir na contramão. Aí esse processo: vai cantando, vai fazendo show de bossa nova, vai fazendo show com música piauiense, até chegar o dia em que assumo minha composição na Confraria dos Compositores (clube fundado no Rio de Janeiro por Cyro Telles e Alexandre Lemos, para divulgar trabalhos de novos compositores).  

Você é mulher, cria vida, e sofre preconceito por fazer uma obra musical.  Sou julgada com muito mais rigor do que qualquer homem. O mundo de compositores é muito machista!

Samária – Aí você já estava morando no Rio de Janeiro…   

PM – Já. A composição vai ganhar corpo lá, depois de muitas experiências. No Rio de Janeiro, eu nunca deixei de fazer minha música autoral. Fazia banda de baile, cantei em banda judaica. E fiz muito cover, cantei na Blitz fazendo aquelas dancinhas todas, coreografia… Foi a Blitz mais “paraíba” da história, porque era eu, do Piauí, e a Germana, do Ceará (risos). Fiquei entre 2000 e 2001, e fui fazendo minha obra paralela. Eu frequentava a Confraria e era obrigada a levar música nova toda semana. Vários compositores iam lá, eu era uma das únicas mulheres, taí outra questão complexa e paradoxal. Você é mulher, cria vida, e sofre preconceito por fazer uma obra musical. O mundo de compositores é muito machista! Como é que você dá a vida e não pode fazer música, criar? Como mulher posso ser produtora, intérprete, estar a serviço da obra de um homem, mas não posso cantar minha própria obra! É uma loucura, isso. Sou julgada na minha obra com muito mais rigor do que qualquer homem. Vejo obras medíocres com neguinho passando pano, e aí ralo pra fazer uma coisa com consistência e sou julgada duramente (fala com ênfase).  

Samária – Você tinha quantos anos quando resolveu ir em buscar de mostrar sua música? E como foi essa decisão? 

PM – Tinha 22 anos. Mas era “eu vou, eu vou, eu vou”. Eu era muito obstinada, estava cansada dos valores, já tinha feito teatro. Não é como hoje, acho a efervescência cultural do Piauí hoje muito grande. Mas não era assim. Na época, eu era casada com o João (João Claudio Moreno, humorista), um casamento em crise, a Clara já existia, tinha um ano. Aí falei: “ó, se quiser continuar casado vamos pro Rio de Janeiro, aqui eu não vou ficar mais não”. O movimento era meu, eu era a corajosa, não tinha medo. Eu quero isso, eu sou isso, tenho certeza! Nunca tive dúvidas, porque era forte. Sou de família católica, um lado católico e outro protestante, muito radicais, ao pé da letra. Padres, freiras! Tanto é que eu queria ser freira. Gostava da missão, as freiras e padres da minha família eram missionários, de trabalhar na África, eu achava tão bonito que queria ser missionária. Era difícil ser o que eu era, eu era espevitada, cortava o cabelo curto, falante, namoradeira. Muito danada, muito diferente das outras pessoas. Eu era artista.  

Era difícil ser o que eu era, eu era espevitada, cortava o cabelo curto, falante, namoradeira. Eu era artista.

Samária – Quando você sentiu: “Eu vou viver de música”? 

PM – Foi muito cedo. No ensino médio eu não era boa aluna. Tirava notas muito baixas, tinha muito interesse em Literatura, História, na área de Humanas, mas o Clegivaldo (Clegivaldo Alves, professor) me aprovou, porque tirei foi zero na prova de Física. No final do ano fiz uma carta na prova, escrevi tão bem que ele falou: “Vou te dar a média”. E eu disse: “Clegivaldo, não quero nada com isso, vou ser cantora”. Com 17 anos eu já sabia. Mas ainda pensei em ser advogada, em ser jornalista, também gostava da Comunicação, mas não passei. Passei para a segunda opção, Pedagogia. Cursei um tempo na Ufpi, mas não me formei. A área da Educação é algo fenomenal, mas não era aquilo. E fui pro Rio de Janeiro. Aí, no Rio, larguei tudo. Meu pai tinha deixado um seguro de vida, pouquinho dinheiro, ele se aposentou por invalidez, então o seguro era menor ainda.  Eu tinha 12 mil reais desse seguro, uma filha de um ano… Rio de Janeiro! Chegamos lá, e eu não conhecia ninguém.  

Foto: André Gonçalves

Wellington – Por que o Rio e não São Paulo, por exemplo? E depois de todos esses anos de trabalho, valeu a pena a ida para o Rio e a permanência até hoje lá?  

PM – (respira) Sempre me pergunto se, caso tivesse ficado, teria sido diferente. Vejo meus amigos com condição financeira muito maior. Às vezes ainda questiono por passar certas dificuldades. Não tenho um apartamento, não tenho carro, fiz escolhas muito duras em nome de uma causa. Não falo isso pra ninguém, nem gosto de falar, mas eu nasci no Rio de Janeiro. Meus pais são piauienses, meu pai foi trabalhar no Banco do Brasil, e minha mãe o conheceu na zona Sul de Teresina. Meu pai veio de férias, bancário, lindo, minha mãe se apaixonou: “vou casar com esse cara”. Namoraram aqui, minha mãe foi pro Rio, casaram lá, nos tiveram e eu voltei com quatro, cinco anos.  Não fui nem à escola, no Rio de Janeiro. Então, quando saí daqui o negócio era ir embora, mesmo. Eu queria aprender, estudar, ser artista de musical. Dancei muito tempo no Helly (escola de balé em Teresina, criada pelo bailarino Helly Batista), dançava jazz. Eu queria fazer uma arte mais completa, cantar, dançar, representar. Quando cheguei lá fui dançar no Carlinhos de Jesus, quase virei instrutora de tanto que fazia aula. Um ano depois o dinheiro acabou, me separei, aí eu caí na noite, tive de cantar na noite.  

Wellington – Certa vez o Wally Salomão disse uma coisa que provocou alguma polêmica: que Torquato só aconteceu porque saiu da província. O que você acha disso? E hoje, com todos os avanços tecnológicos de comunicação, o artista tem obrigatoriamente de sair? 

PM – Eu acho que hoje ele não tem a obrigação de sair. Às vezes a gente não cabe no ambiente em que está, nas convenções. As convenções familiares, que a gente quer agradar, fazer como a sociedade quer, um artista não pode respeitar isso. Ele não pode estar preocupado se está de black power, não pode estar preocupado se anda de chinelo na rua. Sou tão livre que adoro andar na rua e ninguém saber quem sou. Gosto desse afeto, mas a liberdade para o artista é fundamental. Eu posso entrar num botequim, num puteiro, ninguém vai falar nada pra mim. Não faria isso aqui, provavelmente. Isso sou eu, tem gente que não precisa sair nem do quintal pra ganhar sabedoria e conhecimento, os livros estão aí, a Internet tá aí. O meu espírito precisava ainda da vivência, de rodar, de ver coisas, mas especialmente baseado nessa liberdade. De casar, de separar, de namorar, de sair, de frequentar o que quisesse. Nossa, eu não tinha de prestar contas a ninguém! E isso é bom pro artista. 

André – Mesmo assim é muito comum pessoas dizerem “ah, fulano foi e não deu certo”, “não fez sucesso”. Por que existe essa leitura e o que você imagina que significa “sucesso”? 

PM – Sei lá. Continuar é um sucesso. Eu me considero um sucesso, continuar é um sucesso, apesar da resposta. Repito mil vezes e vou falar isso: hoje tenho consciência total de que ser artista não são as visualizações nem os likes que as pessoas querem. Não é o cachê: ser artista é continuar fazendo, mesmo que ninguém olhe pra mim, mesmo que ninguém veja. Às vezes eu escuto, fico vendo meus filhinhos lá, tudinho, meus livrinhos, meus discos, minha música. Porque aquilo ali é a minha obra, estou deixando um legado. Eu sou um sucesso! Superei a família, acho que você conseguir sobreviver a pai e mãe já é um grande sucesso, e os meus eram um tanto complexos, especialmente meu pai. Meu pai era um homem esquizofrênico, eu sou uma menina criada frequentando o Meduna. Fui criada indo a hospital psiquiátrico, vendo a loucura e o alcoolismo diariamente. Acho que isso já te cria de outra forma. 

Fui criada vendo a loucura e o alcoolismo diariamente. Não tenho o direito de não ser humana. Quem teve as histórias que eu tive, não pode olhar pra nada com preconceito.   

Samária – Ele esteve internado? 

PM – Muitas vezes. Meu pai era altamente sensitivo, inteligentíssimo, uma voz maravilhosa, surtou numa viagem do Banco do Brasil. Devia ter uma chavinha, virou… E as pessoas não sabiam como tratar aquilo. Então remédio, internação, choque… Hoje estou muito assombrada com o retorno disso, do eletrochoque, tanta coisa. “Mas agora é anestesiado”. Eu fico pra morrer porque sei a consequência daquilo no meu pai. E ele tinha muita raiva de ter sido medicado. Eu vi tudo isso. Não tenho o direito de não ser humana. Quem teve as histórias que eu tive não pode olhar pra nada com preconceito.  

Samária – Você chegou ao Rio muito nova. Como se colocou como artista, trabalhando com música? 

PM – Eu saía com a fita debaixo do braço procurando trabalho. Gravei uma fitinha com uma música, eu e Geraldo Brito tocando. Era música de todo jeito. Eu já cantava bossa-nova, jazz, tudo. Minha voz é grave, isso favorecia para que eu trabalhasse na noite. Trabalhei 12 anos na noite, direto, de terça a domingo. Chegava em casa todo dia às quatro da manhã durante 10, 12 anos. A Clara em casa e eu trabalhando à noite e dormindo até meio-dia, aí a Clara ia pra escola, e aquela loucura. Me sustentei assim. Da noite veio banda de baile, fui convocada pra fazer banda judaica, convocada pra fazer banda com música dos anos 70, eu me vestia toda de anos setenta, olha, palhaçada total (risos). Era sempre uma experiência a mais e eu ia. Era a cantora substituta de todas as bandas cover do Rio de Janeiro porque pegava repertório rápido. “Chama ela, que se for baiana vai, se for rock vai, tudo ela faz”. Por isso foi difícil me firmar num estilo. Mas talvez seja a minha riqueza ter feito muita coisa diferente. Em 2001, eu estava fazendo meu primeiro disco autoral e tocava numa casa do dono do jornal O Dia de lá, o Ari de Carvalho. O Ari queria fazer um nome da música brasileira, queria me ajudar, tinha o maior carinho por mim. Ele disse: “vou trazer umas pessoas aqui pra te ver”. E isso, antes, já teve outras histórias da época do Sullivan (Michael Sullivan, músico e compositor), que tentou emplacar com um trabalho por mim, mas se apaixonou, foi uma desgraceira.  

Wellington – Confundiu as coisas? 

PM – Eu falei disso na música Fim de Mundo: “ninguém pode imaginar que o futuro dessa moça só dependa da cessão de seu calor”. As pessoas falavam que eu era do fim do mundo e ainda falam, agora não, que tá na moda, mas era o último lugar do mundo. Ninguém no Piauí sabia o que eu passava lá, todo tipo de proposta, sozinha, sem família, solteira, bonita, jovem, falante, espontânea. Você não pode imaginar. E nunca fui dada a fazer esse tipo de troca. Eu só dou por amor, mesmo (risos).  

Sullivan falou que eu ia ser a maior estrela desse país, encheu minha cabeça! Você encher de esperança uma menina sonhadora que veio do Piauí, toda espontânea!

André – Você falou das personas, da Ana, da Patrícia. E o Melo, que virou Mellodi? Por que você resolveu isso, já era a busca da persona que seria a artista? Valeu a pena ou você voltaria? 

PM – Eu não voltaria, nunca! Não tem retorno. Minha família até ficou meio assim, alterar o sobrenome magoa. Foi um momento, na época da história do Sullivan. Ele me conheceu fazia três anos que eu estava no Rio de Janeiro, ele falou que eu ia ser a maior estrela desse país, que eu era como a Daniela Mercury, ele encheu minha cabeça! A pessoa quando quer comer a outra faz qualquer coisa! (muitos risos) Me levou pra gravar em Los Angeles, e dava violão Martin pra mim!… Eu gravei com Michael Sendella, She’s a Maniac (cantarola). Ele cantou comigo, eu em português, ele em inglês. Era tanta proposta… O Sullivan realmente fez um movimento verdadeiro, de tentativa. Mas eu ainda era uma artista crua, não era artista popular como as coisas que ele produzia, e ele não conseguia entrar na MPB, que era a minha. Aí não saiu nem o disco, nem o sexo (risos). Ele entregou as fitas de rolo pra mim e “toma, te vira”. Ali foi uma crise, uma crise que eu pensei que ia morrer! Eu agradeço, aprendi muito com ele, mas você fazer isso com uma pessoa é muito ruim. Você encher de esperança uma menina sonhadora que veio do Piauí, toda espontânea, toda querendo ser, pô, eu ia virar sucesso em cinco anos de Rio de Janeiro. E poderia ter dado certo! Mas não dei (risos). 

Foto: André Gonçalves

Wellington – E ele é um bom letrista… 

PM – Ele sabe tudo, é um grande hitmaker. Devo muito a ele, aulas de composição… Claro, há quem discorde, mas eu trouxe pra mim. Eu sou uma boa compositora de refrão, meus refrões são bons. Aprendi muito com Sullivan. Agradeço tudo do meu caminho. Acho que não era pra ser ali. Eu ia morrer na praia, com uma obra fraca, com um trabalho fraco, ia dar aquela estouradinha e desaparecer. Ia morrer e voltar com o rabinho entre as pernas.  

Samária – Você ia completar alguma coisa sobre o nome… 

PM – O nome! Veio a história do Sullivan e fiquei muito decepcionada, quase morro, foi horrível, porque voltei pra noite. Voltei pra mesma coisa, tive que esquecer aquele disco, tive que esquecer aquelas palavras, aquelas promessas. Tive que esquecer aqueles sonhos e voltar pra realidade. E eu tinha 25 anos, com uma filha. Foi muito difícil, muito difícil. Aí, nesse processo falei: quero mudar meu nome. E na época a Patrícia Melo (escritora) tinha acabado de lançar um livro maravilhoso, O Matador. Nossa, quando ela surgiu só se falava nela. E eu, putz, ela roubou meu nome. (risos) Aí começou, dei search no Google, botei “Patrícia Melo”: tinha uma fisiculturista marombadona, tinha uma cantora evangélica, e tinha uma promoter de São Paulo que posou na Playboy. O povo “pô, Patrícia Melo, não sei o quê”. (risos) Um saco! Eu falei: “quero ser diferente, vou fazer uma mudança nesse nome”.  Mudar o prenome era muito mais complexo que mudar o sobrenome. Numerologicamente é mais complexo, você muda a personalidade. Pensei em Ana Patrícia, mas não me representa, é muito fofo. Deixa pro banco. Deixa pras cobranças, esse nome. Aí Patrícia “Di” Melo, pensei “Di” Melo pra não mudar o sobrenome, ficava somando pra ver que número dava. Consultei um numerólogo, o número ideal é cinco, um número artístico pela impressão que causa, são as cinco pontas da estrela de Davi, um monte de coisas. Mas o meu dava três, é a trindade divina, nome do pai do filho e do espirito santo, era uma mistura de alegria, criatividade. Gostei porque não era bem sucesso, era fazer arte com alegria e criatividade. Não vai achar que eu sou maluca, mas eu tava vendo um show do Zeca Baleiro e vi o “Di” saindo assim na minha cabeça, vi um letreiro, uma visualização, não sei explicar o que era. No meio do show! O “Di” saindo do meio e colando no final. Aí eu li: “Patrícia Mellodi”! Eu não queria que fosse “melody”, do inglês, de funk-melody. Era “melodi”, de melodia, meio francês, né? Ficou, Patrícia Mellodi. Uma semana depois meus amigos já estavam “ei, Mellodi”, as pessoas incorporaram. Muitas acharam que embregou, que popularizou. Também achei um pouco. Mas gostei da grafia, só tinha eu no Google. Ninguém mais no mundo com esse nome.  

Wellington – O que mudou na sua vida você ter emplacado músicas nas novelas da Globo?  

PM – Dinheiro, que é uma coisa boa pra caramba! Não vamos demonizar o financeiro, que é maravilhoso e mobiliza. Quando ganhei aquele dinheiro eu falei: “Êpa, isso aqui vale seis meses de noite!”. E fora que ouvir sua música, né? Era uma época em que ter música numa novela baseada na obra de Jorge Amado, tema de personagem… Eu não tinha disco! Eu não tinha obra, não estava numa gravadora! Estava absolutamente despreparada para aquela oportunidade. Veio a música na novela e não tinha show, não tinha banda, não tinha nada. Mas foi incrível. 

Wellington – Qual foi a música?  

PM – Sem Amor. Ela foi pra novela por causa do Ari de Carvalho que levou o Mariozinho (Mariozinho Rocha, produtor), pegou o violão, botou no meu colo e falou “mostra que você é boa!”. Aí eu comecei, o Mariozinho já tava cheio de uísque na cabeça e falou: “pode parar, eu já vi que você é do caralho. Manda pra mim essas músicas gravadas”. Uma semana depois estava na novela das oito (Porto dos Milagres), personagem da Julia Lemmertz. Foi muito impactante. E lindo, porque aí mudou. Veio dinheiro do autoral, aí eu confirmei, estava cansada de fazer noite, de me maquiar todo dia, cansada de deixar minha filha, chegar duas horas da manhã, aquelas cantadas, aqueles “bebum”, aqueles velhos charuteiros na tua cara…  (risos) 

Ganhei dinheiro com música em novela, mas reinvestia tudo no trabalho: outro disco, outro show, figurino. Não tenho nada. Só tenho música. Minha mala é isso.  

Wellington – Aí anos depois veio outra música em novela.

PM – Dez anos depois veio Do Outro Lado da Lua. Eu fiz um investimento, divulgação, ela tocou bastante no rádio, e foi pra televisão. O Mariozinho ouviu novamente, “é a Patrícia cantando essa música”! A Grazi Massafera estava sem tema (a música era Não, da novela Aquele Beijo). Ele encontrou o Márcio (Márcio Trigo, diretor de TV, segundo marido de Patrícia) na televisão e falou: “fala com a Patrícia que estou querendo aquela música”. A coisa mais chata é que tudo que eu consegui alguém dá um crédito pra outra pessoa. “Foi pra novela porque é casada com o diretor”. Sendo que era eu, tem a ver com meu esforço e meu caminhar. E a música foi pra novela, mais uma vez. Porra, o primeiro depósito foi 40 mil, aquele dinheiro é um volume, né? Mas nunca comprei foi nada. Tudo que ganhava eu reinvestia no trabalho, fazia outro disco, fazia outro show, comprava o figurino, pagava o cenário. Não juntei nada, não tenho nada (risos). Só tenho música. É isso aí o que eu tenho, minha mala é isso. Minha obra é essa, e gosto da ideia de que isso fique pras filhas.  

Noé Filho – Como o Piauí aparece na sua musicalidade? 

PM – Acho que em tudo. Só que eu não via. Na maneira de compor, na simplicidade da fala, e agora, particularmente, na questão rítmica. Tem na linha melódica, como na música árabe, aquelas variações de nota, aquele jeito de cantar. E, ritmicamente, o Alexandre (Júnior, músico piauiense, ex-companheiro de Patrícia) enxerga ritmo nordestino onde eu não via. Tem aqui um maracatu, uma ciranda…

Wellington – Nas letras também? 

PM – Já usei, por exemplo, a palavra “esmorecer” – ninguém sabe nem o que é isso lá. Tem umas palavras, como “arregar”. Minha fala é muito limpa de neologismos e de regionalismo, até pra sobreviver lá eu limpei um pouco, propositadamente, numa época em que havia preconceito linguístico. Hoje não quero nem saber, vou falar o piauiês todo.  

Não fiz nada que ninguém me mandou fazer, só fiz o que quis. Pago o preço.

Samária – Que letra você acha mais parecida com você? Porque sua música é autoral, e também parece muito pessoal. 

PM – Tudo é pessoal e intransferível. Eu não sei o que me representa mais, porque tenho dois lados. Sou muito amorosa e romântica, mas também de muita força, da guerrilha mesmo. Embora madura, coroa, vou ser sempre uma menina que sofre com as diferenças sociais, com a insensibilidade, com o fato de ser espontânea e o mundo não absorver a espontaneidade, querer você sempre mascarada, falando o conveniente. Isso sempre vai me machucar, porque acho que a gente sempre vai ser adolescente, de certa forma. As questões da adolescência são as da vida inteira. Você vai trabalhando, mas são sempre as mesmas. Eu não era muito aceita, tinha uma certa dificuldade, eu trabalho mas ainda sinto isso. Uma certa carência, um certo complexo de rejeição.  

Noé Filho – Qual seu maior sonho como artista? 

PM – Dignidade. Viver somente da minha composição e não passar mais perrengue. Conseguir ter uma obra sem me vender, sem querer fazer parte de mainstream, fazendo o que os outros querem. Eu adoro liberdade! Nunca gostei da ideia nem de gravadora, porque eu não ia fazer o que quero. Se você pegar meus cinco discos autorais vai ver a Patrícia nesse, nesse, nesse, em cada fase. Não fiz nada que ninguém me mandou fazer, só fiz o que quis. Pago o preço (pausa longa). Pago o preço. Qual foi a pergunta mesmo?… 

Eu tenho preguiça desse esforço que o artista tem de fazer. Não quero mais a ralação dos 20 anos. Não quero essa esfuziante necessidade de ser a estrela.   

Samária – Seu maior sonho. 

PM – Meu maior sonho é viver da minha obra, ser uma artista gravada, com dignidade. Não quero ser rica, não quero é ter preocupação com a conta de luz. Isso seria maravilhoso! E quero poder estar num quintal desse, comendo, bebendo cerveja com meus amigos e a música rodando, e o dinheiro caindo (movimenta os braços) é bom demais (risos)! Eu tenho preguiça desse esforço que o artista tem de fazer, porque é muito esforço. Às vezes só quero fazer comida e ficar em casa, mas sou obrigada. Cara, já tá dando preguiça, depois dos quarenta dá preguiça! Você quer fazer as coisas, mas já quer ir na boa, não quer mais a ralação dos 20 anos. Não quero mais voltar aonde já estive. Vou te falar: acho que criei a persona pra sobreviver. Aquela espevitada, que fala, que vai, a que faz… E abandonei muito a mulher que gosta de ficar em casa, que quer ficar arrumando as coisas. Eu abandonei. Meu nome é Ana Patrícia; a Patrícia é a persona. A Ana é aquela que quer ficar em casa, que gosta de ser casada, que quer fazer comida, quer ser mãezona, que cuida dos amigos, varre o quintal, lava banheiro, que adora água sanitária. Com a Ana estou fazendo as pazes, porque ela ficou muito tempo abandonada nessa esfuziante necessidade de ser a estrela, até pra se sustentar. E, agora, “não, eu não quero, quero ficar de chinelo, quero ficar em casa”. Não quero tocar todo dia, não pego no violão todo dia. Tenho até raiva! Gosto do silêncio.  

Foto: André Gonçalves

Noé Filho – A arte de compor é valorizada pelos músicos e pelo público?  

PM – Pelo público sim, pelos músicos também. Pelo público só uma coisa que é um pouco chata: as pessoas estão muito preguiçosas pra conhecer. Eu não julgo. A vida tá chata, tá difícil, tá pesada, aí você sai pra encher a cara e ouvir música que conhece. Você trabalha, a semana é horrível, chega o final de semana você vai ouvir um negócio que não conhece? Só os curiosos que se alegram com isso. Mas a massa, mesmo, tá a fim é de tomar cerveja e pular, e tocar e cantar aquelas músicas com várias onomatopeias e “tum, tum”, cabô. E tá tudo certo. Eu compreendo. Mas o público que gosta de música, valoriza o compositor, sim, acha incrível que a pessoa tenha feito aquela música. E entre os músicos há aquela parte que gosta e admira, e uma parte que inveja. Se você toca um instrumento e consegue compor, fica uma parte despeitada, porque você ganha direito autoral, e ele não ganha. O que ainda é injusto no Brasil, a plataforma digital, por exemplo, não paga direito conexo. Você não põe na plataforma digital quem tocou. Isso é horrível. Então isso dói, porque também o músico investe, compra instrumento.  

Wellington – Eu assisti a dois shows seus, um no Rio, com você homenageando a bossa-nova, no Beco das Garrafas. E outro foi uma homenagem ao Torquato. O que te dizem a bossa-nova e o Torquato Neto, por que essa escolha?  

PM – Eu acho que canto bem bossa-nova, e tenho afinidade com a bossa-nova pela vivência no Rio, acho. Cantei bossa-nova em Teresina, numa época em que fazia show com o Aurélio (Aurélio Melo, maestro da Orquestra Sinfônica de Teresina), ele e o Cliff Villar (jornalista) foram muito responsáveis por me apresentar a bossa-nova, e foi um dos repertórios que eu descobri no Piauí. Em 1999 eu cantei numa casa do Rio chamada Fino da Bossa. Fui chamada para substituir a Fátima Regina, uma super cantora, e fui fazer o Fino da Bossa um tempo. Era uma casa maravilhosa, eu tocava com Hamleto Stamato, pianista fantástico, o baterista era o Rubinho, que foi baterista da Elis Regina, era um negócio absurdo. Ali eu cantei jazz e bossa-nova pra caramba e ficou aquela semente. Quando veio o Beco das Garrafas, era na esquina lá de casa, eu morava no Leme… O quê que é isso? (assustada com som de fogos estourando) Tá estranho!  

Wellington – É algum foguetório, alguma comemoração. 

PM – Ah, que bom. É porque eu moro em lugar que é só tiro, foguete a gente já pensa que é tiro. Então, e aí a bossa-nova já estava comigo e comecei a frequentar o Beco das Garrafas. Em todo lugar do mundo tem o lugar do jazz, do blues, do tango, e no Rio de Janeiro não tinha nem show de bossa-nova. Eu enxerguei nesse lugar uma possibilidade de ganho financeiro, um projeto de bossa-nova em que eu pudesse atender os turistas e fazer corporativo, de empresas internacionais. Enxerguei uma possibilidade porque desde que entrei pro autoral eu fiquei autoral, autoral, autoral, mas começou a faltar o dinheiro. E montei um projeto, “Isso é Bossa-Nova”, só com clássicos da bossa-nova. Até hoje estou fazendo corporativo, que me dá dinheiro. A produtora sabe quem é Patrícia Mellodi, mas não divulga meu nome. Eu faço lá, fechadinho, só divulgo quando é uma escolha do momento. E ajudei, muito, nesse renascimento do Beco das Garrafas. Fiquei quase três anos fazendo um projeto semanalmente no Beco das Garrafas. E ganhei o título de embaixadora do Rio pela comitiva do turismo do Rio de Janeiro, muito por causa desse projeto de bossa-nova.  

A pessoa não faz, mas quer que o outro faça. Não consegue se realizar e cobra do outro. É preciso dar a cara a tapa, estar pronto pra perder, porque ganhar é fácil. 

Wellington – E em relação a Torquato? 

PM – Torquato foi um resgate do Piauí. Depois que você fica maduro, acha que tem que voltar ali no passado, rever certas coisas. Torquato morre no ano em que eu nasço, tenho a sensação de que seríamos grandes amigos, que a minha vida seria outra se ele estivesse vivo. Eu tenho até uma certa raiva dele! (risos) Porque ele deixou a gente. Não questiono, nem entro nesse assunto, mas porra, cara! Caraca, eu tô aqui no Rio de Janeiro ralando pra cacete, converso às vezes com ele, se tu tivesse no jornal escrevendo eu seria sua intérprete, tudo ia ser diferente (risos). Seria mesmo. Porque eu tô sozinha, quem é do Piauí que tá lá? Teve uma época, uma turma do Piauí. Todo mundo foi embora. As pessoas indo e voltando, achar que não é sucesso, isso é bobagem. Não é só a questão de “dar certo”, é a questão do jeito de viver, se tem dinheiro, se não tem dinheiro, passar fome não é brincadeira. Às vezes é a distância dos familiares, seu psicológico não aguenta isso. Se você conseguir ficar seis meses no Rio de Janeiro, meu querido, eu já acho que deu certo por seis meses. É difícil! A pessoa não faz, mas quer que o outro faça. Eu tenho horror disso. Você não consegue se realizar e cobra do outro. Aí quando o outro fracassar: “aí, você fracassou”. Ele não tentou, não tem coragem, não tem culhão pra isso, mas fica cobrando que o outro dê certo, faça… Ah, vai fazer, né? Não faz. Não tem coragem. Porque é preciso dar a cara a tapa, é preciso estar pronto pra perder, porque ganhar é fácil, querido… Assumir um projeto sabendo que ele tem 80 por cento de chance de dar errado, porque tá difícil fazer qualquer coisa, e mesmo assim você fazer? Alguém vem dizer que você não deu certo?  Ai, que preguiça… 

Wellington – Muitos piauienses fizeram o caminho de volta do Rio: Assis Brasil, Benjamim Santos. A turma que, de certo modo, foi com você, voltou. Passa pela sua cabeça um dia voltar, também?  

PM – Passa. Eu quero um quintal desse. Mas não é agora, eu ainda tenho coisas pra fazer. O primeiro passo seria fazer esse trânsito de trabalho aqui e lá, que eu acho que ainda não fiz. Eu ainda não conquistei esses espaços de festival, ainda luto pra botar gente nos shows do teatro, é uma briga pra arrumar uma passagem, tenho de fazer um esforço danado e sair sem dinheiro. Ainda brigo muito pra estar aqui. Eu não quero botar culpa nem ficar apontando, eu quero decodificar melhor quais são os caminhos. Deve ter uma ponte de acesso ao meu povo, devo ter. Não sei, às vezes num ritmo, às vezes numa abordagem. Eu tenho que tentar, até uma hora em que esse coração vai abrir. Ainda não aconteceu, mas está acontecendo, eu sinto. Porque eu também estou diferente. Se eu fizer esse trânsito, vou ficar confortável, porque sou uma mulher do mundo. Eu queria ficar vindo, indo. Um dia, porque a cidade cansa também, mas eu adoro o Rio de Janeiro. Eu quero uma casa aqui pra poder vir, uma casa com quintal. A gente quer isso, a gente gosta, a gente é muito feliz aqui. Eu farreio do dia que chego ao dia que vou embora, estourada. Eu quero fazer tudo! Das coisas mais bonitas que eu ouvi: “você tá no Rio, você mora lá, mas você é nossa!”. Essa sensação, cara! 

Wellington – Indo pra questão política, como é viver hoje no Rio de Janeiro? Como é que tá o ambiente pra se viver?  

PM – Eu estava morando em uma casa que dos lados e em frente era todo mundo Bolsonaro. E do tipo de pendurar bandeira na porta. E, na minha casa, o pensamento é outro. Eu não posso defender o que essas pessoas defendem, não dá. Eu nunca tinha nem me posicionado, não sou filiada, não sou nada. Eu gostava de uma ideia mais “centro”. Eu sou assim, mais diplomática. Mas não há mais isso. O Jorge Salomão, que é poeta, meu amigo, foi torturado na ditadura. Eu tenho histórias muito próximas. Mas também não gosto quando falam que todo militar é torturador. Acho cruel com as famílias dos militares. Mas eu tive medo, e tenho medo hoje. Tenho muitos amigos que são Bolsonaro no Rio de Janeiro, eu transito em todos os lugares, não briguei com eles. Mas é complicado, a gente evita o assunto. Independente de tudo que tá acontecendo, a coisa mais complexa é a perda da liberdade. É o medo de se expressar. De perder show por causa disso, o medo de sofrer alguma coisa na rua por causa disso. Por causa de um posicionamento político. E o Rio tá complexo, é uma trinca demoníaca.  

Wellington – E no meio cultural, como é? 

PM – Só quero dizer também que, quanto mais aperta, mais lapida. Quanto mais aperta, mais a gente vai fazer samba. Quanto mais apertar mais a gente vai criar, não tem jeito, a gente não vai parar de fazer o que veio fazer. Não adianta reprimir, não é nem inteligente. No Rio os teatros estão todos estragados, caídos, as ocupações não conseguem sustentar, é muito duro. E não tem plateia, porque a plateia também não tem dinheiro pra gastar. No Piauí as pessoas ainda têm algum dinheiro, eu fico chocada. Pessoal tá de carro novo, pessoal tá bem vestido.   

Samária – Acho que nas pontas demora um pouquinho mais a chegar a crise.  

PM – Tudo demora, né? Inclusive a crise. Mas lá no Rio tá muito pobre. Então o que você corta primeiro, o feijão ou o show? O show você não vai. Você liga um aparelhinho, ouve lá o Spotify, compra uma cerveja no supermercado e chama os amigos em casa. Não sai, porque tá com medo da violência… Então a primeira coisa que cai é a arte.  Mas a gente é madeira que cupim não rói, vai continuar fazendo.  

Samária – Você tem artistas que considera sua inspiração, influência? 

PM – Sou louca pelo Roberto Carlos, né? É até meu amigo! (risos) Acho que lembra minha mãe, lembra meus tios que tocavam violão. Eu gosto porque ele é romântico, acho que é um missionário do amor, um artista que só canta o amor, que só faz o bem, cantando. As questões dele, pessoais, não falo. Sou fã mesmo, ele pode fazer o que quiser, não tenho discernimento crítico com relação a Roberto Carlos. Não tenho opinião. Eu vou no show dele e choro horrores, aquelas pessoas, elas cantam junto, elas gritam, é lindo! Ele só fala coisa bonita, só fala de amor. Desculpa, o cara falava da Amazônia, do índio, das baleias, quando ninguém falava de natureza. Da baixinha, da mulher de quarenta.  

André – Você tem falado, e repetiu aqui, agora, sobre um retorno às raízes. Por que você acha que isso está acontecendo? 

PM – O amadurecimento é implacável. Eu não sou mais uma menina, sou uma mulher madura. Então com o amadurecimento você não quer mais esconder nada, e o momento do planeta é esse, não tem mais negócio de armário. Não tem mais negócio de negar quem é pai, quem é mãe, negar o que a gente é, não existe mais tempo a perder com isso. Fico pensando que essa resistência, de continuar lutando, vinha da minha avó, comecei a ir pra espiritualidade, meditação pra lua, meditação do útero, mulheres se reunindo na minha casa em noite de lua cheia, o sagrado feminino começou a entrar na minha vida, uma série de coisas. Pensei na minha avó Judite lá em Palmeirais: 18 filhos! A minha vó Iaiá, 14 filhos! Numa pobreza, mulheres que criaram todos os filhos, todos bem, todos sobreviveram. Eu sou neta dessas mulheres! Reclamando de quê, cara, eu aguento! Vambora! Então assim, isso é lindo. Não tenho piti, eu vou lá e faço. Minha mãe é desse jeito, minha avó era desse jeito, eu sou desse jeito.   

Samária – Você diz ser uma pessoa que acredita em algumas coisas. Como é esse seu lado espiritual, esotérico? 

PM – Frequento um centro no Rio chamado Padre Pio, apesar do nome católico é uma casa universalista holocêntrica, acolhe todas as manifestações espirituais. Do judaísmo à cabala, ao esoterismo, claro, tem um foco no kardecismo, mas é tudo. Eu tenho formação católica. Frequentei um pouco a igreja Batista com a minha mãe, mas era católica, primeira comunhão, crisma, estudei em colégio de freiras. Mas é pouco pra mim. Preciso de mais liberdade, não curto muito os dogmas. Até a questão “doutrina” – a palavra-, me dá certo tremelique. Mas não consigo não acreditar. Sou uma mulher de muita fé, muita fé. Rezo pra tudo, bato tambor, acendo vela, sou devota de Nossa Senhora, tenho uma ligação com Iemanjá… Eu vou em todo lugar, acho que há transcendência em todo lugar. Então eu sou, como é que chama: sincrética. Não curto sacrifício de animais, nem nada com violência. Prefiro mais a mesa branca, a oração, mas misturei todas as minhas influências.  

Eu não queria ser personalidade, eu queria ser canção. Eu queria que conhecessem as minhas músicas. A personalidade é boa pra foto, mas é a música que constrói.

Samária – Me dá a impressão de que lhe conheço há muito tempo. E me dá a impressão de que Teresina a conhece pouco. Que Patrícia você queria que as pessoas conhecessem? 

PM – (suspira) Ai… Elas não me conhecem. Muitas pessoas acham que eu era aquela garotinha da zona Leste que estudava no Dom Barreto e andava no Jóquei Center. Patricinha. E eu não tinha nada disso, estava naquele ambiente mas era diferente, sofria com aquelas diferenças. E também não era aquela artista da galera, da Baixa da Égua, do Centro, eu não era aquilo. Eu queria que soubessem que sou uma pessoa que transita, faço parte de tudo, que não tenho preconceitos, quero estar nos lugares todos. E gostaria imensamente que conhecessem a minha obra. Que conhecessem a artista. Eu não quero mais ser celebridade, eu chego aqui e sou uma personalidade. Mas eu quero mais do que isso. Eu não queria ser personalidade, eu queria ser canção. Eu queria que conhecessem as minhas músicas. No dia em que eles conhecerem as minhas músicas, o show lota. A praça pública chama. Porque a personalidade é boa pra foto, pra dar entrevista, mas é a música que constrói, é a obra. Eu queria que o Piauí conhecesse a obra. Acho que mais do que a pessoa.  

André – Você cantou no Programa do Jô, há alguns anos, a música do Rogério Skylab: “Um agiota espera na porta da sua casa e você vai continuar fazendo música”. Ainda tem algum agiota na porta da sua casa e, se tem, mesmo assim você vai continuar fazendo música? 

PM – (risos) Eu tô devendo horrores, nesse momento. Mas não a pessoas, eu não gosto de dever pessoas. Pessoas a gente não deve, a gente deve a instituições. Ao banco você pode dever sim, porque eles tiram muito da gente e podem esperar, quando a gente puder a gente acerta. Por isso eu falei de dignidade. Eu vou continuar fazendo música e nada vai me parar, só a morte. E mesmo assim vou deixar uma obra, e ela vai continuar tocando. Mas, o que é que eu ia falar mesmo, viajei de novo… A Clara diz que de vez em quando dá um lapso, é a aquariana (risos). Tem o agiota nesse sentido das contas que batem, às vezes não tenho dinheiro, mas vou continuar fazendo. Eu sei fazer outras coisas, mas tenho algumas missões: a principal delas é não desistir. Acho que dou exemplo pra muita gente. Se eu cair vai cair uma penca de amigos do entorno, que precisam que eu continue. E muitas vezes eu não paro, não deixo de fazer porque sei que vai cair gente. Vai cair todo mundo que estiver comigo. Se eu cair, cai a nossa rede. Pode ser que eu queira segurar o mundo com as mãos, que esteja sendo soberba mais uma vez, mas é a sensação que eu tenho. A gente não pode desistir, ainda mais agora. A gente não pode, não tem esse direito.  

Wellington – Você citou Roberto Carlos. E cantora? Quais suas referências, também, na literatura…  

PM – Eu me considero ignorante, mas curiosa. Não sou letrada, não estudei pra isso. A minha curiosidade foi pontual, foram vivências pessoais, eu tive a sorte muito grande de conviver com pessoas muito inteligentes e muito cultas, eu bebo da fonte das pessoas. Mas algumas literaturas marcam minha vida. Gosto muito da Adélia Prado, que é uma mulher sacro-profana, como eu. Gosto dela como poeta. Gosto muito de Cem Anos de Solidão, do Gabriel Garcia Márquez. Saramago é dos meus prediletos, adoro Saramago, li muita coisa dele. Tenho curiosidade por alguns autores africanos, poetas.  

Wellington – E a cantora, quem é? 

PM – Bethânia. Acho que Bethânia é alma, é orixá em cima do palco, vivo. Eu gosto mais de força do que de firula. Como força é a Bethânia, mas, como voz, a Gal Costa. Afinação perfeita. Não gosto daquela voz fininha, essa nova geração me dá agonia. Essa coisa de cantar infantilizado, não gosto. Tem umas que são boas, tem boa voz, mas criou-se uma estética de voz muito mimimi. Tudo muito infantilizado, não admiro. O que não quer dizer que eu não perceba valor, pelo amor de Deus, sou libriana no sentido da diplomacia. Mas não curto, não me diz.  

Wellington – E os piauienses, você tem acompanhado? 

PM – Tenho acompanhando algumas coisas. Lamento não estar vendo fazer um grande sucesso a Roque Moreira, que é minha banda predileta. Tem algumas cantoras maravilhosas aqui, como a Bia (Bia Magalhães), ela tá fazendo um caminho legal. A Carol, que eu acho um cristal, que é minha amiga, é uma artesã, também. Compositores, vários. Tem uns compositores bons. O Piauí tem uma tendência a prezar pela excelência. A gente quer ser melhor, a gente quer fazer perfeito. Nisso a gente sofre um pouco porque tem de aceitar as imperfeições do caminho. Mas a gente quer ter a melhor escola, quer ter a melhor revista, quer fazer de um jeito, mas com excelência. E a gente é talentoso. A gente é bom, cara. A gente é bom. A gente é bom em tudo. 

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Publicado na Revestrés#43.

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