Participaram dessa entrevista: André Gonçalves, Wellington Soares, Samária Andrade, Victória Holanda e Feliciano Bezerra

Era quase 10h da manhã de uma quarta-feira. Na recepção do hotel, pedimos que avisassem a hóspede de nossa chegada. Em poucos minutos, avistamos uma senhora de cabelos grisalhos, simpática e sorridente. De echarpe nos ombros, cumprimenta a todos com um abraço amigável. Após algumas providências práticas, conversamos ali mesmo no salão, próximo ao barulho de tilintar dos pratos no restaurante onde o café da manhã estava sendo retirado. Enquanto pessoas transitavam e telefones tocavam, ouvíamos Ana Miranda falar sobre tudo, exceto sobre si própria. “Eu sou uma pessoa muito discreta em relação a mim mesma, quase arredia”, justifica.

 

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Talvez seja natural de quem recria épocas e dá vida a linguagens perdidas no tempo: falar do outro e não de si. Seu romance de estreia, Boca do Inferno (1989), protagonizado pelo poeta Gregório de Matos, foi incluído na lista dos cem maiores romances em língua portuguesa do século XX, elaborado por estudiosos da literatura, brasileiros e portugueses, além de ter ganhado o Prêmio Jabuti (1990) na categoria Autor Revelação.

Costurando fatos e revivendo personagens, Ana Miranda também publicou pela editora Companhia das Letras A última quimera (1995), Desmundo (1996), Amrik (1998), Yuxin (2009), Semíramis (2014) e Dias & Dias (2002), este último ganhador dos prêmios Jabuti (2003) e Prêmio da Academia Brasileira de Letras (2003). Engana-se quem pensa que o exercício de trancar-se sozinho para escrever significa solidão. O universo de Ana Miranda é povoado de gente. Poetas, marias, antonios e migueis, séculos XVII, XIX, tribos indígenas ou o mundo infantil. Os personagens são seus amigos e os livros sua morada. “Isso me diverte muito”, garante.

Nós nos acomodamos nos sofás e ligamos o gravador sob um olhar sereno que parecia nos analisar. A medida em que Ana Miranda respondia às perguntas, movimentava as mãos de maneira ponderada, aparentemente medindo os gestos e as palavras. A maneira pausada com a qual fala denuncia uma mente que organiza tudo em pastas, sistematiza o que dizer e expõe apenas o que permite ser visto. “Eu nasci totalmente intuitiva e fui aprendendo a ser uma pessoa mais racional”, diz ela com um sorriso.

Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Machado de Assis estavam fazendo a coisa errada, todos eles. Não tinha ninguém fazendo a coisa certa, não

Ana Miranda veio ao Piauí participar de uma feira de livros no interior do estado, na cidade de Campo Maior, a 85 km de Teresina. Por telefone, marcamos o encontro. Do outro lado da linha, a voz forte e educada perguntava sobre horários, transporte, fotografias – detalhes que uma romancista não dispensaria saber. De Teresina para Fortaleza, sua terra natal onde retornou há pouco tempo e vive atualmente, são apenas 45 minutos de voo.

Porém, a distância pode ser menor ainda. Para ela, as cidades se esbarraram pela primeira vez quando atuava em filmes do Cinema Novo na década de 1970.

Ao lado do ator Jofre Soares (Bye Bye Brasil-1979, Terra em Transe-1967 e outros mais de 100 filmes), a escritora conheceu o Piauí quando estava fazendo A Faca e o Rio (1972), filme com roteiro de Odylo Costa Filho e direção do holandês George Sluizer. “Foi uma experiência em que eu pude conhecer, realmente, a realidade dos vaqueiros. Então, o Piauí ficou para mim como uma marca muito profunda do Brasil que eu via na arte”.

Revela que seus livros são, na verdade, sobre exílio. Nada mais justo para quem passou 50 anos entre Rio de Janeiro, Brasília e São Paulo. “Deve ter relação com a retirada do meu universo quando eu era muito pequena”, explica. Nasceu em Fortaleza, no Ceará, em 1951, mas mudou-se com a família para o Rio de Janeiro, aos cinco anos de idade, enquanto o pai engenheiro trabalhava na construção de Brasília, para onde foram posteriormente. “À medida que eu ia me aprofundando no meu trabalho literário, eu fui sentindo esse buraco negro da minha infância”, conta.

Se mudar faz parte, para Ana Miranda é imprescindível. Em meio as mudanças de endereço, tinha consigo, além da companhia de Marlui, sua irmã, outra companhia ainda mais inseparável: os livros. “Íamos colecionando os nossos livros e, já pequenininhas, fazíamos livros de poesia”. Mudou de vida, de casa e quase muda de profissão. Recebeu formação na área de artes plásticas, cursando o Instituto Central de Artes da Universidade de Brasília, mas não abandonou o desenho pela escrita: ilustrou muitas capas de seus próprios livros.

Traduzida em cerca de 20 países, acredita que é preciso errar. “Você tem que errar na literatura! Você precisa errar e quanto mais você errar, melhor”. Entre erros e acertos, tem também convicções: a de que a literatura é completamente livre. “A literatura não tem gênero, não tem também compromissos, ela é livre”. E para isso, é preciso ter coragem, essa de ser quem se é.

Victória – Seus romances são essencialmente históricos. Se fosse escrever sobre a atualidade, qual seria o enredo?

Ana Miranda – (pausa) Eu tenho projetos…inúmeros projetos. Todos eles são sobre fatos já acontecidos em outras épocas. E mesmo quando você escreve sobre a atualidade você tá em busca de um tempo perdido. Tudo que você escreve, de certa forma, é proustiano (Marcel Proust foi um escritor francês conhecido pela obra Em Busca do Tempo Perdido). Eu acho que o único projeto que eu tenho que alcança os dias de hoje é o projeto de uma história familiar, a história da minha mãe, do meu pai…Mas o fato de eu estar te contando isso aqui significa que eu não vou escrever (risos).

Samária – Você nasceu no Ceará e fez carreira fora do Nordeste, em especial no Rio, São Paulo e Brasília. Você identifica hábitos diferentes de leitura entre os leitores do Nordeste e desses maiores centros do Brasil?

AM – (pausa) Olha…os leitores não são assim um grupo cultural. Eu acho que as diferenças são individuais. As diferenças são mais que individuais, são do momento também. Você pode ler um livro em um momento e, anos depois, você lê esse mesmo livro e é outro leitor. Então, são distâncias muito subjetivas que determinam quem é o leitor. Tem um estudo da Companhia das Letras identificando que meus leitores estão primeiro no Rio de Janeiro, depois São Paulo e depois Minas Gerais e, a maior parte deles, é de gente jovem. Eu acho isso muito interessante e tenho contato com eles, muitas vezes, porque sou convidada para ir às escolas. Então, eu faço questão de onde quer que eu esteja trabalhando falar sobre literatura.

Victória – Nos últimos anos, você tem se dedicado a literatura infanto-juvenil. Em um mundo cada vez mais digital, qual a importância da literatura, principalmente na vida de novos leitores?

André – Além da importância, como você acha que o acesso às tecnologias tem interferido na leitura? Está atrapalhando, está ajudando?

AM – Eu não sei se está melhorando ou piorando, eu sei que está mudando muito. A qualidade literária não está mais sendo julgada por um grupo pequeno de editores que têm interesses de mercado. Isso já muda bastante coisa. A relação com a literatura pela internet é muito fragmentada, é efêmera. O livro é uma coisa sólida, mas quem entra nesse universo literário da internet também está querendo se direcionar para o livro. Quer dizer, o livro ainda é a solidificação porque não desaparece como as coisas desaparecem na internet. A questão do leitor é a mesma coisa: o leitor que lê um livro é um leitor sólido, de verdade. Ele pode até começar pela internet, mas ele tem que chegar ao livro.

Você tem que errar na literatura! Você precisa errar e quanto mais você errar, melhor. Você não precisa acertar e ir atrás do que o crítico está dizendo.

Wellington – Hoje, você é uma escritora, mas você foi inicialmente uma leitora. Como nasceu o gosto pela leitura e, da leitura, como passou para a escrita?

AM – Antes de ser escritora eu sou leitora porque veja: eu escrevo sobre livros. Então, foi uma maneira que eu encontrei de trabalhar com aquilo que eu gosto de fazer, que é ler livros. A minha mãe é uma mulher muito sensível, que escrevia poesias e comprava livros para nós. Em Brasília, não existia livraria, mas tinha um senhor que passava de porta em porta vendendo algumas coleções. A educação na escola me despertou para o livro porque nós fazíamos atividades na biblioteca, em cima dos livros e das leituras. Depois, mais tarde, já no ginásio, tínhamos que fazer uma redação todos os dias. Era insuportável, mas você era obrigada a pensar. Era um trabalho de racionalidade, de articulação da inteligência. Então, ensinava a pensar e ensinava a escrever. Minha irmã Marlui e eu tínhamos nossos livrinhos. Pegávamos material de construção e fazíamos estantes. Íamos colecionando os nossos livros, eu com sete anos e Marlui com nove. Já pequenininhas fazíamos livros de poesia. Ela tem um poema guardado que chama Tocador de Esquisitice, que é muito lindo. “Eu vou pelo caminho triste, tocando solos em riste, tocador de esquisitice”. É uma coisa muito boa para menininhas dessa idade. A gente fazia nossos livros manuscritos com papel almaço, dobrava, fazia uma capa de cartolina, colocava uma fita e virava um livro artesanal. Agora, de onde veio isso? Eu não faço a menor ideia. É muito misterioso.

Wellington – E como surgiu essa ideia de ser escritora?

AM – Ainda não surgiu (risos). Eu não imaginava que eu fosse me tornar escritora porque eu desenhava né?! Toda a minha educação foi voltada para essa área. Eu escrevia também, mas escrevia secretamente em diários com chave, ninguém sabia que eu estava escrevendo. Mas o desenho era muito visível, colava nas paredes, desenhava as pessoas. Todo mundo via que a minha aptidão era essa. Mas eu acho que o romance tem uma capacidade de absorção muito ampla, de todas as facetas. Cabe o desenho, a poesia, o cinema, o teatro, as artes gráficas. Tudo cabe em um livro de romance. Então, quando eu me vi escrevendo um romance…aquilo me cabia porque eu tinha esse esfacelamento de várias tendências, de várias aptidões, de várias experiências. Eu acho que foi assim que o romance me incendiou e me aprisionou.

André – Em uma das suas entrevistas você disse que acha que os escritores estão sempre escrevendo o mesmo livro. Então, olhando para sua produção literária, qual o livro que você acha que está escrevendo?

AM – Olha, é um livro de exílio e de erro transformador. Isso é uma coisa que está em todos os meus livros, principalmente, o sentimento de exílio que, depois de muito tempo pensando, deve ter relação com a retirada do meu universo quando eu era muito pequena. Com quatro anos de idade eu fui tirada da minha casa e fui levada para o Rio de Janeiro. Nasci em Fortaleza, fui para o Rio, depois para Brasília. Fomos para o Rio primeiro porque ainda não tinha casa em Brasília no ano de 1957. Quando a nossa casa ficou pronta, em 1959, aí nós fomos. Nós ficamos dois anos e meio no Rio de Janeiro e foi uma mudança muito grande. Eu acho que eu sofria no Rio, primeiro porque a família estava dividida, meu pai não estava conosco. Depois porque era um apartamento, não era uma casa. Eu achava apartamento tão estranho, sabe?! E nós éramos hostilizadas por um grupo de meninas porque éramos nordestinas. Então, teve um sofrimento, um problema de adaptação. E de saudade também porque eu tinha uma babá muito adorada. E eu perdi a babá, perdi a minha casa, perdi tudo. Mas eu não sabia que eu tinha esse trauma. Eu só soube depois de escrever vários e vários livros e comecei a perceber que existia esse sentimento de exílio. Você só sente esse exílio se você está distante de algo que você ama.

Victória – Você já revelou ter o hábito de escrever em diários e de tomar nota dos seus sonhos. Você é uma sonhadora?

AM – Eu fui aprendendo a ser uma pessoa mais racional. Eu nasci totalmente intuitiva e até muito tarde na minha vida eu era apenas intuitiva. Com o exercício diário da escrita eu comecei a me transformar numa pessoa mais pensadora. Mas ainda sou sonhadora no sentido de estar sempre querendo uma realidade diferente daquela que eu estou vivendo. Eu nunca estou satisfeita. Eu quero sempre mudar de casa, mudar de vida, de profissão, disso ou daquilo. É uma insatisfação absurda. Uma necessidade de mudança contínua.

André – Tem uma discussão que é recorrente que é a existência ou não de uma literatura masculina e uma literatura feminina. Você acha que existe uma diferença entre essas literaturas ou o autor consegue transpor essa questão de gênero?

AM – A literatura não tem gênero né?! São coisas que as pessoas inventam para tentarem compreender, classificar, organizar e colocar rótulos. Claro que existe um universo que pertence mais às mulheres do que aos homens e existem livros muito femininos, mas podem ter sido escritos por homens. Tem o Milton Hatoum, que escreveu na primeira pessoa feminina; o Moravia (Alberto Moravia, pseudônimo de Alberto Pincherle, escritor e jornalista italiano) tem um livro todo na primeira pessoa feminina; tem o caso clássico do Chico Buarque que escreve letras de música mais femininas do que uma mulher. Agora assim, tem certa corrente no nosso mundo querendo prender as mulheres dentro de um gueto que diz: “Olha, você fica aqui, aqui é o seu universo”. Não estou dizendo que são os homens que fazem isso. Às vezes, são as próprias mulheres. Então, elegem que o universo da mulher é lá, o amor, os filhos… Eu senti muito isso no meu primeiro livro, que é o Boca do Inferno. Não é um livro de sensibilidades. É um livro muscular né?! Então, algumas pessoas disseram que tinha sido escrito por um homem, que aquilo era um pseudônimo. Agora, a literatura está acima de qualquer classificação, não tem gênero, não é masculina ou feminina. “Ah, vou escrever uma literatura bem feminina”. Aí você pode estabelecer padrões do que você acha que é a feminilidade, que é diferente para você e para outra pessoa, mas isso não tem a ver com a literatura. O que é a literatura? É a transformação da palavra em arte. Tem pintura feminina? Por que falam em literatura feminina? Ninguém fala em pintura feminina. Tem? Eu nunca ouvi falar. Tem música feminina? Então, não sei por que falam isso em relação a literatura.

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Feliciano – Já podemos falar de uma tradição literária de escrita feminina no Brasil?

AM – O Brasil não tem tradição em nada. Vamos falar a verdade aqui (ri). O Brasil não é o país das tradições. Mas eu entendo o que está querendo dizer. Eu acho que está se fortalecendo cada vez mais a presença das mulheres em todas as áreas, inclusive na literatura. Eu vejo a quantidade de jovens mulheres escrevendo livros e é impressionante. Mas a literatura não é uma questão de mulher ou homem, sabe? Não tem nada a ver com isso. A pessoa não vai porque ela é mulher ou porque é homem e ela nem deve ser vista porque ela é mulher ou homem. A literatura é para quem tem aptidão, esse sonho, essa vontade, esse desejo de ser escritor. Então, isso são lutas políticas que estão fora da literatura – não fazem parte do seu cerne. A literatura não tem gênero, não tem também compromissos, ela é livre. A literatura é completamente livre.

Samária – Seu romance de estreia, Boca do Inferno, foi logo premiado com o Jabuti. Ele também lhe colocou no centro de uma polêmica. O professor de literatura portuguesa Antonio Pécora sentiu-se incomodado com o uso de trechos de textos do Padre Vieira e lhe acusou de “apropriação problemática da fonte”. Em sua defesa, o jornalista Caio Túlio Costa, falou em intertextualidade e criticou o que chamou de “oportunismo acadêmico”. Como você vê a relação do escritor com a academia e com a crítica? Esses espaços podem ajudar ou atrapalhar o escritor?

AM – A mim não ajudou em nada. Ninguém me ajudou em nada até agora. Ajuda assim, quando eu leio uma crítica como as de Antônio Cândido (sociólogo, crítico e estudioso da literatura brasileira e estrangeira), por exemplo, falando sobre Machado de Assis. Ou Roberto Schwarz (crítico literário e um dos principais continuadores do trabalho crítico de Antonio Candido) falando de Graciliano Ramos, ou então esses mais jovens, como João Cezar de Castro (doutor em Literatura Comparada). Aí eu vou compreendendo algumas questões por meio dessa visão de um trabalho sério. Agora, essa crítica que fazem no jornal, não é crítica, é opinião pessoal de algumas pessoas que, em geral, são muito pouco preparadas para isso. Já recebi diversos jornalistas que nunca tinham lido nada e nem sabiam sobre o livro que estavam cobrindo ali. Eu não sei se a gente já teve uma crítica atuante no sentido de ajudar contemporaneamente os escritores. Eu vejo assim: nós temos uma crítica fantástica (fala demoradamente) desses grandes nomes, como Roberto Schwarz, o Bosi (Alfredo Bosi, crítico, historiador de literatura brasileira e membro da Academia Brasileira de Letras), a Perrone-Moisés (Leyla Perrone-Moisés, doutora em Literatura). Mas eu também não sei se o papel da crítica é ajudar o escritor ou se é ajudar o leitor. Eu acho que não deve haver interferência de ninguém numa obra de arte. Ninguém pode interferir, você não pode permitir que alguém interfira porque as obras são muito subjetivas. E você tem que errar na literatura! Você precisa errar e quanto mais você errar, melhor. Você não precisa acertar e ir atrás do que o crítico está dizendo: “faça isso” ou “faça aquilo” porque ele está te dizendo coisas que já foram feitas. Para você fazer uma obra com força, realmente, você tem que errar pra fazer coisas novas e coisas inquietantes. Nenhum escritor é compreendido quando ele está vivo. Ninguém compreendia a Clarice Lispector. Guimarães Rosa, Machado de Assis foram compreendidos, mas só depois também. E eles eram errados, eles estavam fazendo a coisa errada, todos eles. Todos os que fizeram grandes obras estavam fazendo a coisa errada. Não tinha ninguém fazendo a coisa certa, não.

O desafio para o escritor nos dias de hoje é continuar fazendo a obra dele e ter uma participação nas questões políticas e sociais

André – E no caso da academia? Qual é o papel da academia?

AM – A academia está muito fechada né?! Não é um trabalho que extrapola o universo deles. Eu não sei se o papel deles também é promover uma compreensão maior da literatura. Eu acho que eles têm que formar quadros de pessoas que façam o estudo da literatura e formar leitores, que eu acho que é o mais importante disso tudo. Cabe aos críticos, cabe aos acadêmicos, cabe aos escritores, aos jornalistas, a todo mundo. Ler é uma porta aberta para a libertação, para um encontro de si mesmo, para o que você quiser e estiver buscando na sua vida, a leitura vai te proporcionar um caminho para isso.

Samária – Em entrevista ao Jornal O Globo você disse que às vezes elege como seu leitor fictício algum escritor, como Guimarães Rosa, que considera inspirador, pela coragem extrema, para combater seus momentos de medo. Qual a maior coragem de Guimarães Rosa? E, com a experiência e carreira que você tem, ainda tem medo? De quê?

AM – A maior coragem do Guimarães Rosa foi ser ele mesmo, ser aquilo que não estava dentro das expectativas da época. É tanto que ele não ganhava os prêmios. Reynaldo Jardim (jornalista e poeta brasileiro que faleceu em 2011) e outras pessoas assim ganhavam os prêmios. Quando escreveu o Grande Sertão (Grande Sertão Veredes-1956) ele já era mais aceito. Ele teve muita coragem e muita força interior para manter aquela linguagem, para escrever de um modo que ninguém entendia. Nicolas Behr (poeta brasileiro da geração mimeógrafo e da poesia marginal) falou assim: “Nós precisamos ter coragem de sermos nós mesmos”. Eu tenho medo de começar o livro, eu não sei se estou fazendo o livro certo, não sei se estou indo adiante, crescendo no meu trabalho, eu tinha até medo de não terminar o livro. Fui perdendo muitos medos, principalmente, o medo das palavras. A maturidade foi me trazendo isso. Mas, eu não sou muito medrosa não (risos).

Wellington – Por que você voltou para Fortaleza? Esse retorno se encaixa na ideia de exílio que marca a sua obra? E dá para o autor ter uma vida literária fora do eixo Rio-São Paulo?

Samária – Você já disse também que sente quando é hora de mudar de cidade: é quando sente necessidade de renascer. De que forma você renasceu ou está renascendo no Ceará?

AM – Bom, dizem que todo cearense sai e que todo cearense volta, né?! (risos). Cearense tem como uma característica muito forte o nomadismo. Acho que vem de uma questão não apenas geográfica da falta de chuva, do retirante que precisa sair, mas também, da presença indígena. O índio mora em um lugar, cruza aquela floresta e quando termina, vai para outro lugar. Eles também acreditam que os lugares vão ficando cheios de espíritos. No início da história do Ceará, teve uma questão também da presença de ciganos. Eu não sentia falta de raízes porque eu me enraizei nesses lugares. Eu tenho raízes profundas em Brasília, eu vi aquilo tudo sendo construído. No Rio também, eu conheço as ruas, os lugares todos, as pessoas ainda estão lá. Mas eu sentia um vazio na questão da origem, eu tinha aquela escuridão das origens. Um pouco em cima de um mito, que diz assim, numa frase do Tolstói (Liev Tolstói, escritor russo): “Se quiseres ser universal, fala da tua aldeia”. E eu não tinha a minha aldeia. Qual era a minha aldeia? A minha aldeia era o Brasil, que é uma aldeia gigantesca e, nessa aldeia gigantesca, estava faltando exatamente aquele lugar onde eu nasci. Então, à medida que eu ia me aprofundando no meu trabalho literário, eu fui sentindo esse buraco negro do meu passado, da minha infância. A Rachel de Queiroz, por exemplo, vivia me criticando, assim amigavelmente: “Você não é cearense não!”. Eu digo: “Eu sou cearense sim, Rachel!”. Lá no Ceará ainda tem gente que diz que eu não sou uma escritora cearense, diz que eu sou uma escritora brasileira nascida no Ceará, o que não deixa de ser verdade. Sua universalidade não está relacionada onde você vive. Quer dizer, quanto mais você conhece, sente e percebe as questões humanas, mais universal você é. As pessoas têm um pouco esse mito de que tem que ir para o sul, para o Rio, para São Paulo, para se tornar conhecida, mas as pessoas esquecem que os escritores que moram nesses lugares também não são conhecidos. É claro que existe uma irradiação cultural, mas o caminho não é mais como era. A literatura está muito fragmentada e está se dando em diversos níveis. Não é mais aquele sistema das grandes editoras ali no Rio e em São Paulo e aquela grande academia. Não, existem mil caminhos, mil possibilidades. Antes de ir para o Ceará, eu pensava assim: “Vou ficar marginalizada, vou ficar esquecida”. Mas não aconteceu. Continuam adotando meus livros nas escolas porque o livro tem vida própria. Mesmo quando eu morrer, o livro vai continuar trabalhando como uma entidade e com uma vida muito mais longa que a do próprio autor.

André – Você está aqui (no Piauí) para participar de uma feira literária no interior do estado e, assim como essa, têm várias acontecendo no Piauí e no Brasil todo. Menores ou maiores, mas sempre com uma presença grande de público. Qual a importância dessas feiras na formação do público leitor e também para o escritor?

AM – O trabalho do escritor é escrever. Para construir a obra dele, ele não precisa saber falar, por exemplo, ele pode ser mudo e fazer uma obra fantástica como temos obras do Kafka (Franza Kafka, escritor tcheco), que nunca foi fazer uma palestra na vida e a obra dele está aí. Agora, existe um fenômeno contemporâneo que é muito mais forte na Europa e nos Estados Unidos e, que está chegando ao Brasil com força, que é a participação do artista nas questões políticas e sociais. Então, existe esse desafio para o escritor nos dias de hoje, que é continuar fazendo a obra dele e ter uma participação. O encontro com o leitor é um alívio muito grande. Se você não encontra o escritor numa feira, numa palestra, ele está muito distante de você. Ao mesmo tempo é a relação mais íntima do mundo porque quando você lê um livro você entra em uma comunhão mais profunda do que o amor físico. Quando você tem contato com as pessoas que estão lendo o seu livro é muito gratificante. Esse contato é importante, mas é sempre um desafio para o escritor. Como é que ele vai preservar esse subterrâneo kafkiano que é a construção literária? Kafka tem um texto que dá uma ideia perfeita do que é o sentimento do romancista quando está ali solitário. Ele diz no texto que gostaria de viver num subterrâneo, com um roupão, onde tivesse só um tinteiro, uma mesa e o único movimento que ele faria seria buscar a comida que alguém depositasse do lado de fora da porta. Ele diz: “A que profundidades eu não alcançaria com a solidão do escritor?”. Então, é um paradoxo terrível porque ele precisa da solidão. Mas também se ele não viver, ele não consegue realizar aquilo.

Victória – Em uma obra de romance, como se dá o papel do escritor entre a ficção e os fatos?

AM – Tudo é ficção. O escritor transforma tudo em ficção. Quando o escritor de romance traz um elemento qualquer, um fato histórico ou uma lembrança de família, ele transforma tudo em ficção. O grande jogo não é o que está acontecendo ali. O grande jogo é como é que ele está elaborando a linguagem para contar essa qualquer coisa que seja.

Wellington – Você tem ficcionalizado sobre os poetas brasileiros, como o Gregório de Matos, o Augusto dos Anjos e o Gonçalves Dias. Eu gostaria de saber de que maneira a poesia marca a tua obra e se há algo ligando esses poetas?

AM – Bom, a minha primeira manifestação literária foi com a poesia. Os livrinhos que nós fazíamos eram livrinhos de poemas e a poesia é quase intuitiva no ser-humano. Todo ser-humano nasce com a poesia dentro de si. Então, a poesia se manteve dentro do meu trabalho. O Gregório de Matos surgiu a partir de um sonho que eu tive, não foi uma escolha. Ele e os outros, pra mim, funcionam como fonte linguística porque foi lendo a obra atribuída ao Gregório de Matos que eu descobri uma possibilidade de transcendência da linguagem. Eles têm uma relação entre si porque eu acho que existem famílias literárias. Eu tive uma experiência fantástica quando fui visitar a casa onde eu nasci, que eu até brinco que eram fantasmas. Antes de voltar para o Ceará, um primo me levou a Praia de Iracema e um senhor que estava morando lá veio atender a porta. Ele não sabia que eu era escritora, nem nada e estava conversando com meu primo. Eu comecei a prestar atenção na conversa deles porque ele estava declamando as poesias do Augusto dos Anjos. Depois ele começou a declamar poesias do Gonçalves Dias. E eu perguntei pra ele: “e o Gregório de Matos?” e ele disse “eu não tenho os livros dele…”(pausa). Eu sempre percebi que existem famílias literárias e eu até vejo como se houvesse certa vertente. Eu vejo Machado de Assis como uma grande vertente mais psicológica que diz que a literatura é sem quintal. Outra grande vertente, que seria mais telúrica, seria a vertente do José de Alencar, até anterior a do Machado de Assis e muito ligada na observação do universo. Só que não existe uma fronteira entre essas duas vertentes, elas se intercomunicam. Então, eu acho que esses autores que me escolheram.

O mercado, na nossa sociedade, é uma coisa predominante. Todo mundo quer ganhar dinheiro com arte, com cultura, com educação, com medicina, com o que quer que seja

Wellington – Você tem um lado um pouco aqui no Piauí também. Eu queria que você falasse de sua passagem por aqui quando você mexia com cinema e sobre seu livro Dias e Dias que tem essa intersecção com o Fidié e a Batalha do Jenipapo.

AM – Esse livro fala sobre o Gonçalves Dias, que nasceu numa situação muito precária por causa do Fidié. O pai dele era português e, juntamente com a mãe, tiveram que se refugiar em Caxias. Eu acho que teve alguma relação com o Piauí… O Nordeste é um só né?! Eu chamo de Nordeste profundo, que vai até ali a Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará, pedaço de Pernambuco, Piauí… é como se fosse um lugar só porque a história está o tempo todo se esbarrando. Eu vim ao Piauí pela primeira vez quando eu era muito jovem e estava fazendo um filme chamado A Faca e o Rio. Nós ficamos em Teresina, acho que mais de um mês e, depois, ficamos numa fazenda lindíssima, aqui perto. E foi uma experiência em que eu pude, realmente, conhecer a realidade dos vaqueiros. O filme era de ficção, feito por um holandês, baseado em um livro do Odylo Costa Filho, mas era um documentário ao mesmo tempo. Fora o Jofre Soares e eu, os personagens eram vividos por pessoas dos próprios lugares, no Piauí e Maranhão. Então, o Piauí ficou para mim como uma marca muito profunda do Brasil que eu via na arte.

Samária – Além de escritora, você tem essa experiência como atriz. Como você vê o cinema que o Brasil produz hoje? O cinema comercial venceu o cinema autoral?

AM – Venceu. O cinema de arte tem que ser patrocinado e o governo não tem mais dinheiro para patrocinar. Não existe mais Embrafilme (empresa estatal brasileira produtora e distribuidora de filmes, extinta em 1990), nem mesmo a mentalidade de se fazer né? Mas acho que isso em todas as artes. Na literatura também. Os livros que vendem muito (fala com ênfase) são bastante comerciais. Nesses países ricos e com muita tradição cultural e artística, quando surge uma coisa assim marginal, como a geração beat, Kerouack (Jack Kerouac, autor de On the Road) e aqueles caras todos, o sistema abraça aquilo e transforma num produto cultural. No Brasil, não existe essa tradição. Então, o que é de vanguarda vai ficando por ali mesmo. Tem que ter um esforço pessoal porque não existe um sistema para proteger e abraçar. O mercado, na nossa sociedade, é uma coisa predominante. Todo mundo quer ganhar dinheiro com arte, com cultura, com educação, com medicina, com o que quer que seja. É uma pena não existir essa força da arte, desligada das questões de mercado no Brasil. Mas eu viajo muito e em todos os lugares eu encontro gente fazendo coisas fantásticas e gente de todas as áreas. O Brasil é muito grande e as coisas ficam meio fragmentadas, mas está sendo feita muita coisa.

Wellington – Geralmente nós vemos os escritores um pouco atormentados…Quem é Ana, além da escritora?

AM – Eu não falo muito de mim, né?! Você vê, eu sou uma pessoa muito discreta em relação a mim mesma, até quase arredia. Eu gosto de falar sobre os outros porque eu tenho um interesse imenso no outro. Eu gosto muito de olhar para as outras pessoas e saber o que as outras pessoas estão falando, pensando, vivendo e guardo muito quem eu sou para mim mesma. Eu não sou como a Clarice, por exemplo. Eu sou o oposto da Clarice. Ela estava sempre voltada para si mesma, toda a obra dela é em cima da experiência dela, dos sentimentos dela. A minha é ao contrário. E eu sou feliz. Eu não sofro como a Clarice sofria. A pessoa que viveu a situação da Clarice e tem a sensibilidade dela é um sofrimento atroz. Você é muito solitária porque só existe você dentro de você mesma. O meu universo não, é lotado de gente, de personagens, de lugares, de épocas e isso me diverte muito. Eu sou uma escritora feliz (sorri). É péssimo falar isso porque esperam dos escritores questões de sofrimento, da vileza e eu sou mais da redenção, do humano, do amor, da beleza. Eu tenho muito esse lado que é meio José de Alencar, que era um sujeito muito atormentado, mas ele tinha esse lado da beleza, principalmente na linguagem. Eu estou falando dos outros né?! Eu não estou falando de mim (risos). Porque eu falo de mim falando dos outros. Mas eu sou uma pessoa assim muito prática sabe?! Acho que eu morei sozinha por muitos anos quando eu era nova, então eu aprendi a fazer tudo sozinha. Mas isso é legal porque aí eu nunca estou em uma enrascada. Por outro lado, eu acabo ficando mais sozinha porque eu não estou precisando das pessoas. Quando você precisa das pessoas você vai se cercando de gente. E eu não. É um trabalho que te bota sozinha. Você fica trancada, falando com você mesma. Sozinha fisicamente porque, no meu caso, eu estou cercada de muita gente.

Feliciano – Você produz em diferentes gêneros literários. Quem define a escolha? O personagem? A pesquisa? O exercício literário? O trabalho? A encomenda? Ou o instante de criação?

AM – Eu me considero romancista e sempre estou no pé de um romance. Mas, tem horas que vem não sei da onde uma poesia na minha cabeça. O meu último livro de poesia que foi Prece a uma aldeia perdida, eu estava visitando uma aldeia em Minas e, de repente, começou a cair uma tempestade de versos e versos na minha cabeça. Eu fui anotando, anotando, anotando e deu um livro. Quer dizer, eu não estava pensando em escrever um livro de poesia. Tudo que eu quero é só escrever romance, mas as coisas vão acontecendo na minha cabeça.

André – Você falou em uma de suas entrevistas sobre traduções, que te causa muito estranhamento ver o que você escreveu em outras línguas porque você não se reconhece naquele livro e, ao mesmo tempo, tem certo prazer em ter os livros traduzidos. Mas o que você acha que existe na literatura que transcende a língua, que faz com que um autor tcheco seja lido aqui e funcione, ou um autor português seja lido na Holanda e funcione? Qual é esse ponto que transcende?

AM – Você está certíssimo nisso. Tem uma frase daquele que escreveu Uma luz em meu ouvido (refere-se ao autor Elias Canetti), que diz assim: “A poesia é aquilo que se perde na tradução”. Eles fazem uma reconstrução que é literária, mas não é mais a mesma literatura. Existe o ser-humano que está ali como se fosse o museu da alma humana. Então, a alma humana, mesmo expressa em outra língua, ela é a alma humana. Nós temos um amor imenso pela Ana Karenina. Nossa Ana Karenina não é a mesma porque a Ana Karenina veio em português para nós e isso transforma a Ana Karenina em outra Ana Karenina. Mas é uma mulher, é uma situação, são sentimentos daquele ser. Então, é a comunicação mais profunda, na literatura, que existe entranhada na linguagem. Quer dizer, uma energia que pode acender uma luz aqui ou ali, mas é a mesma fonte de energia.

André – É um artesanato que você vai colando, depois a pessoa desmonta e cola de outro jeito…

AM – É…outro jeito de um mesmo quebra-cabeça…

(Publicado na Revestrés#24 – Março/Abril 2016)