(Participaram desta entrevista: André Gonçalves, Wellington Soares, Samária Andrade, Maurício Pokemon e Ana Cláudia Peres)

“Você me pede pra lhe responder alguma coisa, eu também estou procurando uma resposta”. Começava assim a carta do cineasta Glauber Rocha ao jornalista Zuenir Ventura em 1974. A revista Visão preparava uma edição especial sobre os 10 anos de ditadura militar, que deveria ser escrita com os cuidados que a época exigia. Dividida em três partes – uma econômica, uma política e uma cultural – esta última ficou sob a responsabilidade do jornalista Vladimir Herzog, que confiou a Zuenir a missão de colher depoimentos de artistas e intelectuais. Mais tarde Zuenir avaliaria sobre o depoimento de Glauber: “foi um entrevista-bomba, que marcou minha carreira e ameaçou arruinar a dele”.

Glauber se encontrava na Itália e Zuenir envia a ele um longo questionário. Quando já estava desistindo de obter resposta, recebe uma página datilografada com correções à mão. A carta era confusa e falava coisas como “as sete cabeças da besta que se desintegrariam” e “A rainha Tômiris, que matou Ciro, era de um povo que costumava sacrificar aos Deuses mais potentes os mais velozes seres humanos”. O jeito foi Zuenir falar ao chefe que Glauber não enviou respostas às perguntas, mas uma carta “cheia de ideias loucas”. Herzog não se comoveu com a agonia de Zuenir. Ordenou que ele se virasse e disse que tinham até o dia seguinte para terminar a edição.

Zuenir tentou contato por telefone com Glauber, mas não conseguiu. Ele temia que a carta atraísse a ira da esquerda devido a trechos como: “Acho que Geisel tem tudo na mão para fazer do Brasil um país forte, justo e livre”, “os militares são os legítimos representantes do povo”, “o general Golbery é um gênio, o mais alto da raça”. Já Herzog temia que o governo militar visse aquilo como uma provocação. Afinal, decidiu-se pela publicação, motivados pela última frase: “Deduza o que quiser e publique”.

Conta-se que Geisel e Golbery ficaram desconfiados dos elogios exagerados, mas resolveram aceitá-los como gesto de boa vontade. Por parte dos intelectuais houve revolta. Glauber foi acusado de estar a serviço da ditadura militar. Zuenir acredita que o gesto de Glauber só seria entendido mais tarde. O que ele fazia era criar uma proposta de enfrentamento por meio da ironia, escapando do comodismo da lamentação e do confronto direto, tão desgastante e desvantajoso.

Essa é apenas uma das muitas histórias que Zuenir Carlos Ventura, 85 anos, viveu em seus 60 anos de jornalismo. Ele também foi um dos primeiros a receber o telefonema de Clarice, então casada com Herzog, a dizer “Mataram Herzog”. “Observe que ela não diz: ele morreu”. Zuenir ainda foi preso por subversão no período da ditadura militar e estava num plantão jornalístico que prometia ser dos mais monótonos, véspera do feriado pelo dia do trabalho, quando explode a bomba do Riocentro, matando um integrante do exército e ferindo outro. Os militares estavam à paisana e foram até o local do show que reunia 20 mil pessoas com a missão de provocar uma grande confusão e atrapalhar o momento de abertura política. Era 1981 e a bomba explodiu dentro do carro onde estavam os miliares, no colo de um deles. Para o plano, na hora errada.

Ainda que tenha um dos currículos mais invejáveis do jornalismo brasileiro, Zuenir Ventura diz que foi ser jornalista porque não tinha talento para inventar suas próprias histórias e que a profissão lhe aconteceu por acaso.

Mineiro da cidade de Além Paraíba, de família pobre, ele teve que trabalhar para estudar. Seu primeiro emprego em Nova Friburgo (RJ), para onde se mudou aos 11 anos, foi de aprendiz de pintor de parede, com seu pai. Foi faxineiro, office-boy, balconista de uma camisaria e por fim, professor primário. Encantado com essa última experiência, cursou Letras. Ainda na faculdade, começou a trabalhar como arquivista no Jornal Tribuna da Imprensa, de Carlos Lacerda, que “foi uma grande jornalista e péssimo político”, diz.

Zuenir estava tranquilo em seu emprego de arquivista, onde tinha tempo suficiente para ler – o que ele mais gostava de fazer – quando, passando pela redação ouviu Carlos Lacerda perguntar se alguém podia escrever sobre Albert Camus, o escritor franco-argelino que havia acabado de falecer. O arquivista levantou o dedo: “eu”.  

O texto de Zuenir foi publicado no espaço que Carlos Lacerda ocupava. Daí correu na redação a história de que o carinha do arquivo era um gênio. Zuenir se diverte até hoje ao contar essa história, mas o fato é que nunca mais saiu da redação. Além da Tribuna da Imprensa, trabalhou no Correio da Manhã, Diário Carioca, Jornal do Brasil e O Globo, e nas revistas Fatos & Fotos, O Cruzeiro, Visão, Veja, IstoÉ e Época

Tornou-se professor e lecionou por mais de 40 anos na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e na Escola Superior de Desenho Industrial. Atualmente é colunista do jornal O Globo. Entre os prêmios que recebeu estão o Esso e Vladimir Herzog de Jornalismo, pela série de reportagens “O Acre de Chico Mendes”, publicada no Jornal do Brasil, e o Prêmio Jabuti por seu livro “Cidade Partida”, de 1994. Para produzir o livro-reportagem, o jornalista frequentou por 10 meses a favela de Vigário Geral, convivendo com um Rio de Janeiro dominado pela violência, mas ao mesmo tempo com a mobilização da sociedade civil e o surgimento de heróis inusitados.

Seu primeiro livro, 1968, o ano que não terminou, publicado pela primeira vez em 1988, quando Zuenir tinha 57 anos, já teve 48 edições e vendeu mais de 400 mil exemplares, tendo inspirado a minissérie “Os anos rebeldes”, produzida pela TV Globo. De outro livro, Chico Mendes: Crime e castigo, terminou levando para casa Genésio, garoto de 13 anos, que era a principal testemunha do assassinato do líder seringueiro Chico Mendes. Aos setes anos de idade Genésio foi entregue pela mãe ao fazendeiro Darly Alves da Silva, para acabar de criá-lo. Terminou por presenciar o planejamento do assassinato de Chico Mendes, arquitetado por Darly e executado por seu filho Darcy em 22 de dezembro de 1988. Entre colégios internos e cidades diferentes, muitas vezes tentando escapar do risco de ser assassinado, Genésio viveu com os Ventura até a maioridade, quando voltou ao Acre.

Zuenir está pensando em escrever um próximo livro, mas ainda não sabe sobre o que. Talvez reedite Minha História dos Outros, em especial para refazer o último capítulo, “A saga de uma testemunha”, sobre Genésio. Considera que terminou o livro de modo muito infeliz e que Genésio merece um outro final. Diz que depois de nossa entrevista vai responder ao e-mail de Genésio, que tonou-se escritor e o convida para o lançamento de seu livro em Rio Branco.

O escritor e jornalista tem anotações sobre o amigo Glauber Rocha para o livro que nunca se dispôs a concluir. Tem entrevistas também que nunca publicou, como a que fez com Marcinho VP, líder do tráfico no morro Santa Marta, que conheceu por meio do documentarista João Moreira Salles. Zuenir acompanhou Salles ao morro para assistir a uma das aulas de arte que este ministrava todas as quartas-feiras à noite na comunidade. O jornalista não publicou a entrevista com o traficante porque teve medo que ela despertasse a ira da polícia, que podia invadir o morro e sacrificar inocentes. “Há notícias que não precisam ser dadas, e a missão do jornalista não é dar todas as notícias”, ensina.

Em 2008 Zuenir recebeu mais um prêmio: um troféu especial da ONU por ser um dos cinco jornalistas que “mais contribuíram para a defesa dos direitos humanos no Brasil nos últimos 30 anos”. Tanta experiência não tem lhe livrado do sentimento de falta de bússola no momento político atual do Brasil e, ainda que alguns amigos reclamem, ele afirma que prefere ficar em cima do muro. “Há uma grande confusão e eu quero assistir um pouco de longe, pra não ser contaminado pelo veneno da intolerância e do sectarismo”.

Desde 2015, Zuenir é ainda membro da Academia Brasileira de Letras, ocupando a cadeira de número 32, sucedendo a Ariano Suassuna.

Quando chegamos em turma, seis pessoas, até seu apartamento, um duplex no quinto andar em Ipanema, é ele mesmo quem abre a porta. Simpático, nos conduz até a varanda, no piso superior. Todos nós sacamos câmeras e celulares e, encantados com a paisagem, quase esquecemos nosso entrevistado. Alguns passos atrás, ele espera pacientemente, certamente sabedor do efeito que a paisagem causaria. À nossa frente, as ilhas Cagarras – conjunto de sete ilhas e rochedos de visão deslumbrante e nome duvidoso.  Não há consenso sobre a origem no nome, mas acredita-se que faça referência a grande quantidade de fezes depositadas por aves. Naquela manhã de ventania, gaivotas planam sobre nós. Ele conta que costuma caminhar na orla de Ipanema, atividade suspensa temporariamente em função do movimento dos jogos olímpicos.

Refeitos do efeito paisagem, ocupamos sofás e cadeiras na agradável sala que dá acesso à varanda. No espaço, objetos de decoração, garrafas de bebidas diferentes e pequenas bugigangas – provavelmente presentes ou lembranças trazidas de viagens. Na parede, um quadro com assinatura de Ziraldo tem a inicial dos dois amigos: uma enorme letra “Z”. “Ainda bem que vocês já entrevistaram o Ziraldo. Ele é muito ciumento” – ele é o primeiro a sorrir da própria piada. O bom humor de Zuenir faz dele aquelas pessoas que se quer como amigo. A casa, iluminada e aconchegante, denuncia que ele gosta de receber e bater longos papos. Ele admite que é uma das suas atividades favoritas. Acredita que o bom humor se deve ao espírito otimista que, aposta, herdou do pai. “Minha mãe era tão pessimista que se pegasse a gente sorrindo dizia: tá rindo hoje, mas espera até amanhã”.

Hoje o bem e o mal estão embolados. Eu não sei o que é direita, esquerda, a gente vive um momento de espanto. Estamos sem bússola!

Ainda se destacam no ambiente os muitos livros que estão até mesmo no hall de entrada do apartamento, onde o morador instalou mais uma estante. No apartamento ao lado mora seu filho Mauro, com esposa e netos que ele adora citar em textos e entrevistas. Tem ainda a filha Elisa, ambos do casamento com Mary, sua companheira de uma vida, a quem ele faz referências com devoção por várias vezes durante nossa conversa.

Duas horas depois, voltamos à varanda para nos despedir. Você escreve aqui? Queremos saber. “Escrevo trancado. Se eu olhar para essa paisagem, não tenho vontade de fazer mais nada”.

No ano politicamente mais conturbado da recente história do Brasil, Revestrés procurou Zuenir Ventura e conversou com ele sobre democracia, jornalismo, seu envolvimento com o menino que foi testemunha de acusação dos assassinos de Chico Mendes e o que esperar dos tempos vindouros.

Samária – No livro 1968 – O que fizemos de nós (lançado em 2008, vinte anos após 1968, o ano que não terminou) você fala de um sentimento de falta de bússola, como se a geração mais jovem não tivesse sabendo para onde ir. Desde 2013, depois de um período de adormecimento, o Brasil tem convivido com manifestações diferentes nas ruas. Como você tem visto esses movimentos? Permanece o sentimento de falta de bússola?

Zuenir Ventura – Permanece, e não só para os jovens, mas para todos nós. Nos anos 60, 70, tivemos uma geração mais sofrida, mas era fácil você se posicionar. Tínhamos de um lado as trevas – que era a ditadura – e do outro as luzes – que éramos nós, que lutávamos contra a ditadura. Hoje o bem e o mal estão embolados, e não só no Brasil, mas no mundo. Antes você tinha a ideologia – no sentido de ideário – o que nem sempre é bom, porque as vezes você se escorava na ideologia e achava que não precisava fazer mais nada. Mas hoje eu não sei o que é direita, esquerda, a gente vive um momento de espanto, indecisão. Estamos sem bússola mesmo (fala lamentando). Se eu, como formador de opinião – e eu detesto essa expressão, porque eu não formo opinião nem na minha casa – estou me sentindo sem rumo, imagina o jovem, com menos vivências.

Samária – E como você avalia o comportamento e participação política dos jovens hoje?

ZV – Durante toda a história do Brasil os jovens foram fundamentais e eu sinto que há um desejo de participação. Durante um tempo eu falei “são uns alienados”, depois lembrei que antes de 68 se dizia isso dos jovens. Na França se dizia “não acontece nada” e logo depois estourou o maio de 68. Porque existe um processo de acumulação que as vezes a gente ignora. Isso que a gente reclama, de falta de participação, ocorre em função da falta de definição do próprio país. Tá tudo muito dividido em A ou B. Você é a favor da Dilma ou do Temer? Alice, minha neta, que é um gênio como todo neto, um dia não queria ir pra escola usando uniforme.  O pai dela disse: `Você tem duas opções – ou você vai pra escola de uniforme ou vai pra escola de uniforme. O que você quer?’. Ela falou: ‘Qual a terceira opção?’ (risos). Então eu tô um pouco como Alice.

Ana Cláudia – Você já disse em entrevista que é importante olhar o passado como lição e não como exemplo. Olhando para o Brasil de 68 e para o atual, nós aprendemos a lição?

ZV – Eu acho que não totalmente. Hoje me incomoda essa polarização em que vive o país. As pessoas brigam e depois os políticos viram aliados. Muita gente aponta, com ódio, de que lado você está. Uma vez escrevi um artigo e recebi duas cartas: uma me acusando de petralha e outra de golpista. Sabe o que eu fiz? Troquei as cartas de envelope e mandei uma para o endereço da outra. Até hoje não me responderam (risos). Mas a lição que eu aprendi foi tentar ficar equidistante dessa paixão. Aí me dizem: você precisa sair de cima do muro. Mas em determinados momentos, a melhor posição é ficar em cima do muro, para observar todos os lados. Há uma grande confusão e eu quero assistir um pouco de longe, pra não ser contaminado pelo veneno da intolerância e do sectarismo. Nesse fla x flu que está aí, eu não quero tomar parte.

Wellington – E como você percebe o crescimento de movimentos conservadores e a emergência de políticos como Jair Bolsonaro, que no plenário da Câmara Federal fez homenagem ao Coronel do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, um torturador do período miliar?

ZV – Um dos grandes problemas a enfrentar é a emergência de um certo fundamentalismo. É preciso valorizar a beleza da democracia, mesmo sendo ela incipiente e incompleta. O Rio de Janeiro se gaba de ser uma cidade politizada, mas elegeu Bolsonaro que é um atraso, uma excrecência da política. O que mais me preocupa é que ele encontra adesão. O torturador que ele citou é um dos poucos reconhecidos pela justiça. Olhe: isso não é acusação de comunista, o cara foi reconhecido como torturador pela Justiça! (fala com ênfase. No livro 1968, o ano que não terminou Zuenir conta as torturas sofridas por Criméia Schmidt e comandadas por Ustra. As sessões de tortura à militante política, grávida de sete meses, se estendiam por mais de 30 horas e incluíam choques e espancamento).

Alguns amigos dizem: você precisa sair de cima do muro. Mas em determinados momentos, a melhor posição é em cima do muro, para observar todos os lados.

André – Com o seu histórico de resistência e como jornalista, como você está vendo o papel da imprensa na construção ou desconstrução de personagens públicos?

ZV – A imprensa tem sérios problemas, temos uma arrogância de que detemos a informação, mas acho injusto jogar na imprensa toda a culpa do que está acontecendo.  Se o problema fosse só imprensa, se resolveria facilmente. Os militares achavam que era e tentaram resolver fazendo censura. Deu no que deu. O papel da imprensa é muito delicado e difícil. Eu mesmo digo que procuro manter equidistância, mas não sei se consigo. Jean Luc Godard (cineasta) dizia: “a câmera ou é de direita ou de esquerda”. O que ele quer dizer com isso? Que até o ângulo em que você fotografa pode ser contra ou a favor de alguém. Então é difícil manter isenção, independência. O importante é manter essa busca, na consciência de que somos imperfeitos. Eu procuro, no meu espaço, que eu sei que é privilegiado, fazer autocritica.

Wellington – Você já citou como exemplos de grande atuação da imprensa em defesa da democracia, por ajudarem a elucidar esses casos, as coberturas jornalísticas da morte do jornalista Vladimir Herzog e da explosão da bomba no Riocentro. Hoje você considera que a chamada grande imprensa contribui ou prejudica a democracia?

ZV – As pessoas me perguntam muito se sou censurado. Eu nunca fui, em nenhum dos grandes veículos de comunicação que trabalhei e trabalho. Eu acho que a grande imprensa leva em consideração uma censura muito mais forte que é a do mercado. Se o jornal não tiver leitor, ele vai dançar. A minha permanência no jornal depende dos leitores que tenho. Algumas pessoas reclamam que os veículos têm suas posições políticas e mascaram isso. Mas acho que isso se revela por meio dos editoriais. Talvez não seja a forma ideal. Mas hoje também temos a possibilidade da internet, que eu vejo com muita precaução, porque as pessoas acham que estão fazendo jornalismo de internet. E jornalismo exige apuração, ouvir vários lados, saber o antes e depois, acompanhar as consequências. A internet é um instrumento de opinião muito importante, mas de informação realmente não é.

Samária – E como você ver iniciativas de jornalistas que têm se juntado em coletivos, como Jornalistas Livres, Mídia Ninja e outras experiências?

ZV – Acho ótimo! Quanto mais plural seja a informação, melhor. Já participei de bate-papos com o pessoal de coletivos e é bom porque ouço coisas que não ouviria e também digo a eles coisas que poucos diriam. O problema é que alguns acham que estão inventando a imprensa! É até natural dos jovens uma certa arrogância de achar que fazem algo que nunca foi feito antes. Mas a internet trouxe algo fundamental: o espaço. O Ricardo Noblat, meu colega, foi diretor de jornal, depois perdeu o emprego e fez um blog. Ele fez tanto sucesso que jornais que tinham se recusado a contratá-lo, quiseram de volta. Então hoje as possibilidades são maiores que no meu tempo, ainda que você tenha uma crise evidente, com fechamento de veículos e demissões.

Ana Cláudia – Sobre a questão da isenção do jornalista e a dificuldade de não ser afetado pelo que se narra, quando você fez a série de reportagens sobre o caso Chico Mendes terminou trazendo para morar em sua casa o menino Genésio, principal testemunha de acusação dos mandantes do crime. Você já disse que o jornalista é um testemunho do seu tempo, não um promotor, juiz ou advogado. Como foi lidar com essa aproximação com a fonte?

ZV – Eu passei 40 anos dizendo para meus alunos que o repórter tem que manter distância do acontecimento, não pode se misturar com a notícia. O que acontece comigo depois de velho? Me peguei fazendo o contrário! Eu trouxe a notícia para dentro da minha casa. E por que eu fiz isso? Porque Genésio ia morrer! Entre noticiar a morte e evitar, eu preferi evitar. Claro que essa é uma situação limite, mas se tivesse que fazer de novo, eu novamente contrariava tudo o que tinha ensinado na escola de jornalismo. Eu conto que cheguei em casa, aos 58 anos, com os filhos criados, com Genésio embaixo do braço: “aqui está o mais novo membro da família”. Ele só tinha 13 anos e, de repente, sem escolha, Mary e meus filhos ganhavam alguém pra conviver durante não se sabia quanto tempo.

Ana Cláudia – E como foi a relação que você estabeleceu com ele?

ZV – Eu sempre fui um pai banana. Mary era mais dura. Quando houve o julgamento, Genésio fez questão de ter a companhia da Mary, porque sentia confiança nela. A primeira pessoa que eu vi em Xapuri foi Genésio, sentado na porta da delegacia. Eu perguntei: quem é aquele menino? Disseram: é a principal testemunha do assassinato de Chico Mendes. Ele pequeno, desprotegido, de cabelo oxigenado, tentando se disfarçar. Eu desci pra falar com ele, mas ele mal falou comigo. Eu ia muito a Xapuri, fazendo as reportagens do Caso Chico Mendes, e aquele menino sempre estava ali pela delegacia. Um dia perguntei ao delegado: esse menino não tá correndo risco de morte? Ele disse: tá. Eu via os familiares do assassino andando armados! Sabe o que eu fiz? Alugamos um avião e, com a autorização do juiz de direito de Xapuri, levamos o menino e o entregamos à guarda do comandante da PM em Rio Branco. Eu fiquei com a sensação heroica de que tinha salvado uma vida e voltei pro Rio de Janeiro. Algumas semanas depois o coronel da PM de Rio Branco me liga: “Zuenir, eu descobri uma trama dentro da PM para matar Genésio”. Eu sugeri: leva ele para o quartel do Exército. E o coronel: “lá vai ser pior”. Só tive uma saída: trouxe Genésio pra morar comigo.

Ana Cláudia – Como foi a adaptação de Genésio à nova vida?

ZV – Foi um choque cultural. Genésio nunca tinha andado de avião, não sabia o que era descarga, quando entrou num túnel ficou em pânico, não acreditava que água do mar era salgada. Imagine você sair da floresta e vir parar em Ipanema, o centro mitológico do mundo! Então ele teve muitas dificuldades, mas sempre foi íntegro, corajoso e manteve um comportamento exemplar como testemunha, mesmo recebendo ameaças ou promessas de dinheiro por parte dos mandantes. O assassinato de Chico Mendes virou o centro do planeta e isso terminou projetando Genésio. Quando fizeram um filme americano sobre o caso, ele participou e recebeu uma boa quantia em dinheiro, que foi depositada em poupança e só podia ser movimentada por ele quando atingisse a maioridade. Tão logo pode fazer isso, pegou o dinheiro e fez uma farra. Genésio esteve sob minha tutela até os 21 anos. Por medida de precaução estudou em internatos e em cidades diferentes. Ele nunca se aclimatou à selva de pedra. Vivia numa inadaptação permanente e sonhava voltar à sua terra. Hoje Genésio vive no Acre e escreveu sua história. No mês passado (julho) ele lançou o livro no Rio de Janeiro e agora vai lançá-lo na capital do seu estado.

Wellington – Você estreou no jornalismo a 5 de janeiro de 1960 escrevendo um texto sobre o falecimento de Albert Camus. Lá se vão 56 anos e você nunca parou. Se tivesse outra chance, seria novamente jornalista?

ZV – Tudo na minha vida aconteceu por acaso. Eu estava na faculdade estudando pra ser professor quando um dos meus professores, sabendo de minhas dificuldades financeiras, me arrumou um emprego no arquivo da Tribuna da Imprensa, de Carlos Lacerda. Ele era muito rigoroso e grosso ao ensinar. Quem foi o idiota que escreveu isso? – gritava na redação. Um dia eu estava passando pela redação e ele procurava alguém pra escrever o obituário de Albert Camus, que já era um dos meus autores preferidos. A maioria dos meus amigos preferia Sartre, mas eu gostava de Camus, até porque ele desconfiava dos engajamentos, ao contrário de Sartre, que mergulhava de cabeça em todas as paixões. Eu me ofereci e no dia seguinte ele já estava perguntando: cadê aquele idiota que fez o texto? Então me deram a oportunidade de ir pra redação, ganhando três vezes mais. Eu fui e nunca mais sai. Hoje digo que não tenho mais sangue, tenho tinta nas veias. Eu falo que não gosto de escrever, mas de ler. Mas é mentira: eu não consigo me imaginar fazendo outra coisa que não seja escrever.

André – O momento político brasileiro coincide, nesses últimos dias, com a realização das Olimpíadas no Rio de Janeiro (a entrevista foi feita no período das Olimpíadas). Fala-se muito no legado que a realização de grandes eventos como esse possam deixar para a cidade. Como morador do Rio e jornalista, que legado você espera que as olimpíadas deixem?

ZV – A Olimpíada não vai resolver problema nenhum no Rio de Janeiro. Então porque eu escrevi a favor das Olimpíadas?  Olha, tá tudo dando tão errado que é bom que alguma coisa dê certo. Eu não torço contra, sou um otimista!  O pessimista torce contra até pra ter razão.  A cidade estava querendo, o carioca gosta de festa e eu acho bom esse espirito de celebração, apesar da violência. Mas acho que a cidade tem que cobrar esse legado. Houve um investimento grande e ainda está em suspenso que esse investimento se transforme em benefício de fato.

O Rio de Janeiro se gaba de ser uma cidade politizada, mas elegeu Bolsonaro que é um atraso, uma excrecência da política.

Ana Cláudia – Eu lhe entrevistei para o jornal O Povo, de Fortaleza, na época que você lançou Cidade Partida. Os megaeventos como as Olimpíadas nos fazem pensar novamente sobre o tema que você traz nesse livro: há uma sensação de exclusão e, por outro lado, talvez uma maior consciência por meio de movimentos surgidos nas próprias comunidades, que querem tomar parte, discutir a cidade. Que alternativa de cidade pode resultar dessa tensão entre o institucional e o surgimento de insurgências?

ZV – A cidade continua partida. A diferença em relação a época em que publiquei o Cidade Partida (1994) talvez seja uma maior consciência – e isso se deve às classes menos favorecidas. Os movimentos da comunidade não querem porta-vozes, eles são a voz! Há um tempo atrás existia o pensamento de que se levaria cultura para a favela. A esquerda dos anos 60 se imbuiu muito desse papel. Mas hoje a maior novidade é a autoconsciêcia de ter sua própria voz. Ao contrário de Cidade Partida eu gostaria de escrever algo como Cidade Unida, mas é muito difícil. As UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) não funcionam porque não levam cidadania, educação, saúde, saneamento, só levam polícia, e polícia não vai resolver.

Wellington– Essa edição de Revestrés sai num momento político significativo. Pra você o que é Democracia? E mais: o que está ocorrendo politicamente pode ser considerado golpe ou não?

ZV – Em costumo usar a frase do estadista britânico Winston Churchill para quem a democracia é o pior dos sistemas, com exceção dos outros. Realmente não se criou nada melhor ainda. Mas temos que entender que a democracia é um processo em construção, não algo dado. E a reconquista da democracia no Brasil é recente, de 1985 pra cá, então está imperfeita, mas temos que trabalhar para aperfeiçoá-la. Essa discussão se é golpe ou não ficou tão polarizada que perdeu o sentido. A gente pode discutir o dia inteiro e não chegar a conclusão alguma. Eu já escrevi me posicionando contra o impeachment, porque tinha medo do que viria depois. Hoje não sei se escreveria da mesma maneira. E quando essa entrevista for publicada não sei o que eu vou estar pensando. As coisas estão mudando numa velocidade muito grande.

Samária – Costuma-se dizer que esses momentos de crise e ruptura, por outro lado, podem ser produtivos e criativos para as artes. Você acredita nisso?

ZV – Acredito que saia disso tudo um país melhor. O Brasil tem a vocação para a volta por cima. Temos muitos problemas, como falta de estrutura e uma desigualdade social terrível, mas tudo pode ser resolvido com vontade política. Mas cadê a vontade política, né? (pausa). Mas acho que nossos problemas vão se resolver. Um espetáculo como a abertura das Olimpíadas é uma grande metáfora sobre o Brasil: temos diversidade, criatividade, fazemos mais com menos, superamos dificuldades.

André – Nessa ideia de Brasil, como você avalia que estados como Rio e São Paulo se relacionem com o Nordeste?

ZV- Muito mal. Nós, do chamado eixo Rio-São Paulo, achamos que somos o centro do mundo, que tudo tem que passar por aqui primeiro, que não existe inteligência fora daqui. E foi nos lugares mais distantes que eu conheci as pessoas mais inteligentes.

Wellington – Você conviveu com três piauienses no jornalismo e chegou a dizer que Mário Faustino foi uma das pessoas mais brilhantes que conheceu. Como foi sua convivência com Mário Faustino, Carlos Castelo Branco e Torquato Neto?

ZV – Mário Faustino foi Chefe de Redação do Jornal do Brasil e da Tribuna da Imprensa e eu trabalhei com ele. Ele era de uma exuberância cultural, uma inteligência que deslumbrava a redação! Castelinho foi o príncipe dos cronistas políticos. Numa época difícil, de ditadura militar, ele conseguia atravessar o fio da navalha: não deixava de ser crítico ao regime e conseguia ser publicado. Torquato era jovem, intelectual, influenciou toda uma geração. Foi um amigo muito querido. Lembro que a primeira vez que fui a Teresina, em 1972, para contratar correspondentes para revista Visão, estava andando pela praça do Liceu e quem eu encontro? Torquato! Nós dois nos surpreendemos. Ele disse: quê que você tá fazendo aqui, Zuenir? Fazia muito calor e demos um abraço apertado. Alguns meses depois ele morreu.

Wellington – Desde 2015, depois de resistir aos convites, você se tornou imortal da Academia Brasileira de Letras. Como está sendo essa experiência?

ZV – Tá sendo surpreendente! Toda a minha geração teve uma certa rejeição à Academia. Mas tô gostando muito. Duas vezes por semana nos reunimos, são pessoas inteligentes, com bom humor, eu não perco uma sessão! (risos). E você fica famoso. Gullar disse que quando vai na feira as pessoas falam: olha o poeta! Descobriram ele como poeta agora. Aconteceu comigo também. Quando ando no calçadão (de Ipanema) as pessoas falam: olha o imortal!  Quando eu recebi a notícia, estava na casa de um amigo, com várias pessoas reunidas. Eu não sei se por emoção, calor ou bebida, eu desmaiei. Um vexame. Tinha uns amigos médicos e logo me recuperei. Eles disseram: levanta, que você não pode ser vaga antes de assumir a cadeira.

Samária – Nesse mundo mais horizontalizado, o intelectual ainda tem um papel a cumprir?

ZV – Tem sim. Num país com tantas dificuldades de educação formal, o intelectual educa.  Eu já me aposentei do ensino, mas vivo viajando e participando de palestras, porque acho que essa é até uma tarefa minha. Numa época em que tudo é mediado pela tecnologia, esse corpo a corpo, o olho no olho, a discussão, isso que estamos fazendo aqui, é da maior importância! Então, considero que o intelectual, por ser um privilegiado, deve assumir esse papel até como responsabilidade cívica, como o pagamento de uma dívida social.

Samária – Para finalizar, a geração de 68 dizia que não era possível confiar em ninguém com mais de 30 anos. Você está com mais de 30. Acha que esse lema se mantém?

ZV– Você confia em mim? (risos). Na verdade eu nunca concordei com essa separação etária. Não existe isso de jovens ou velhos serem mais sábios por serem jovens ou mais experientes. Eu conheço jovens e velhos geniais ou completamente imbecis! Temos sempre que duvidar de todas as palavra de ordem.

A cajuína cristalina em Teresina

Acabo de voltar de Teresina lembrando o que a gente às vezes esquece: não dá para entender o Brasil prestando atenção apenas em Brasília e sem conhecer os vários Brasis que o compõem. De perto, as partes costumam desmentir o todo. É a terceira visita que faço à capital piauiense, que, segundo o estereótipo, é uma das mais quentes e pobres do país. Ah, sim, e produz caju e o refresco cajuína. Pronto, e é tudo.

Carregados dos preconceitos etnocêntricos que nos fazem acreditar que não há vida inteligente fora do eixo Rio-São Paulo, nos surpreendemos quando vemos um auditório superlotado de 700 jovens ouvindo papos literários, como aconteceu no Salão do Livro do ano passado, ou quando esta semana, durante duas noites, 400 alunos e professores disputaram lugares para nos ouvir, Ana Miranda, Ivan Ângelo e Nirlando Beirão, falando de crônica.

Isso talvez explique a existência de tantos escritores na terra de Da Costa e Silva e Assis Brasil. Não é em qualquer lugar que se pode encontrar um livro só sobre os que se foram antes, como “Sociedade dos poetas trágicos: Vida e obra de 10 poetas piauienses que morreram jovens”, de Zózimo Tavares. Entre eles estão dois personagens inovadores: Mário Faustino, morto em 1962, com 32 anos, num desastre de avião, e Torquato Neto, que se suicidou em 72, aos 28 anos. Com o primeiro trabalhei e do segundo fui amigo.

Crítico e poeta, Faustino deixou apenas um livro, “O homem e sua hora” (“Não morri de mala sorte/Morri de amor pela morte”), mas mantinha uma polêmica página de vanguarda no suplemento do “Jornal do Brasil”, onde experimentava e apontava novos caminhos estéticos. O Concretismo lhe deve bastante. Como disse Haroldo de Campos, “ele fez o mais ágil e inteligente jornalismo literário que jamais vi entre nós”.

Compositor e jornalista, Torquato também só deixou um livro, editado após sua morte por Wally Salomão, “Os últimos dias de Paupéria”, mas esteve na origem do Tropicalismo, o qual fecundou com ideias e algumas das mais poéticas letras do movimento, como “Geleia geral”, “Soy loco por ti América?” (com Capinam), “Louvação” e “Rancho da rosa encarnada” (com Gilberto Gil), “Pra dizer adeus” (com Edu Lobo), “Mamãe coragem” (com Caetano Veloso), entre muitas outras.

Na véspera de voltar, quis revisitar a Praça do Liceu. Ali, em 72, encontrei Torquato, sem suspeitar que seria o nosso último abraço. Pouco depois, ele conseguia no Rio o que já tentara quatro vezes: suicidar-se. Já passava da meia-noite e Luiza, cantora da cidade, entoou a capela para o grupo o lindo poema musical que Caetano fez em homenagem ao amigo, aquele que fala da “cajuína cristalina em Teresina” e que começa com uma interrogação metafísica: “Existirmos? a que será que se destina?”. Nunca tinha tomado cajuína. Gostei mais do suco de bacuri do seu Abraão. Não rima, mas foi um dos melhores sabores que já provei.

*Crônica publicada por Zuenir Ventura após uma de suas visitas a Teresina 

(Entrevista publicada na Revestrés#26 – Agosto/Setembro 2016)