Nathan Sousa

O itinerário da luz

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Harmada

João Gilberto Noll (1946-2017) foi um escritor brasileiro nascido em Porto Alegre–RS. Além de romances, Noll também escreveu contos e textos para teatro. Iniciou o curso de Letras na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e o concluiu na Faculdade Notre Dame do Rio de Janeiro. Também trabalhou como jornalista e, em São Paulo, como revisor. Recebeu diversos prêmios literários, dentre eles, o Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, em cinco ocasiões. Tem trabalhos adaptados para o cinema brasileiro, tais como: Nunca fomos tão felizes (1983) e Hotel Atlântico (2009). O autor foi bolsista e professor convidado da Universidade de Berkeley, nos Estados Unidos, além de escritor residente no King’s College, em Londres, em 2004.

Em Harmada, vemos um herói em plena decadência. Sua narrativa (em primeira pessoa) é a dos que estão em busca de um alvo incerto. Não há coragem ou mérito. Todos os locais por ele visitados são caóticos. Trata-se de uma desconstrução do real (tão sufocante), onde o personagem central encontra-se fragmentado. Em nenhum momento Noll descreve algo com clareza. O mundo descrito é falível e, ainda assim, o narrador procura, incessantemente, traçar um caminho que visa construir sua própria realidade.

Não há grandiosidade. O protagonista é um homem comum, porém, único e contraditório, atrelado ao seu interior no diálogo que realiza consigo mesmo e com os pormenores do mundo que impõe seu peso sobre ele. Vejamos um trecho do romance que retrata muito bem essa assertiva: “não, não havia ninguém aparentemente a me escutar no outro lado de mim, mas quando acordei do tremor de terra comecei a falar, a princípio sem me dar conta de que do outro lado de mim realmente vinha uma premência difusa que estava a me ouvir” (p. 26).

O personagem guia-se por sua paixão pelo teatro. Quer dirigir uma peça e apenas isso faz sentido para a sua vida. Nota-se uma divergência entre aparência e essência numa relação dialógica socialmente criada. Harmada é um livro angustiante, provocador. Que deve ser lido com muita atenção para o subjetivismo ao qual o narrador se insere, já que ele vive num constante “colapso entre a aparência e o íntimo das coisas” (p.15).

Um livro fundamental para se repensar a prosa de ficção brasileira.

Faustino

Mário Faustino nasceu em Teresina, Piauí, no dia 22 de outubro de 1930, e faleceu em 27 de novembro de 1962, quando voava em direção aos Estados Unidos. Passou pelo Pará e pelo Rio de Janeiro, onde fez fama como poeta, tradutor e crítico literário, através de textos publicados no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil. Faustino foi um homem mergulhado na superação das vanguardas que surgiram na Europa do final do século XIX e da primeira metade do século XX. O autor de O homem e sua hora (1955), seu único livro publicado em vida, busca, incessantemente, trabalhar a linguagem poética como um laboratório de expressão cujo alicerce é a renovação estética e, por conseguinte, a ampliação do campo literário. Tem, como pilastras principais, a poesia de Mallarmé, de Ezra Pound, de Cummings, de Rilke, de Jorge de Lima, de Fernando Pessoa e a de Apollinaire, além da prosa inovadora e inquietante de James Joyce.

Em Faustino, o eu lírico está fragmentado, despersonalizado, donde se observa a expressão de múltiplas vozes, mas, ainda assim, tal atitude somente enriquece a unidade de sua poesia. O poeta piauiense realiza um trajeto voltado para a indagação metafísica: o questionamento a respeito do ser humano, a verdadeira vocação do homem e a pluralidade do eu.

Isso dá o tom da dinâmica que ele tanto buscava, o que deixa visível sua visão de mundo. O mundo que conhecia uma nova ordem: a reestruturação da vida após duas guerras mundiais, a efervescência da atmosfera de transgressão modernista e da superação surrealista dos feitos do inconsciente. Como ressalta Gilbert Durand, observava-se, na época de Faustino, uma ideia de “anti-individualismo, que diferencia com clareza a modernidade do século XX dos individualismos românticos do século passado”.

Faustino utilizou-se, sem medo de excessos, do chamado metapoema – artefato acentuado da fórmula poética moderna – para compreender melhor as teorias acerca da poesia. Trata-se de um poeta de caráter logopaico, para lembrar aqui uma definição de um dos seus poetas preferidos, o norte-americano Ezra Pound. Ou seja, Faustino era um poeta de sentimentos pensados. Jamais deixou que a emoção se desvencilhasse da razão na feitura de seus poemas. Para o crítico Mário Faustino, a tradição poética serve de substância primordial no processo de criação do poema, onde se conclui que o novo texto é fruto de uma assimilação cerebral e estética. Porém, deve-se canalizar para uma escrita independente e, notadamente, inovadora. Portanto, a poesia, para Faustino, é o lugar ou não-lugar onde a linguagem renasce. Deste modo, aos verdadeiros poetas, não há a angústia preconizada por Harold Bloom . Influência não gera fantasmas aos iniciados na poesia. Gera frescor e ímpeto de renovação.

O poeta vale-se de várias figuras mitológicas. Faz um verdadeiro retorno aos mitos clássicos, greco-romanos e sacros, dando-os nova significação no discurso poético. Valoriza o artifício da criação estética em detrimento da individualidade de quem cria, concebendo tal ideia através da multiplicidade das vozes poéticas. Faustino comunica-se com outras artes, em especial, com o cinema e com as artes plásticas. Faustino busca, incessantemente, a inovação, principalmente em relação ao arcabouço do verso e ao instrumental sintático. Em toda a sua obra, dois elementos atuam sem parar: o eterno e o passageiro na natureza humana. Trata-se de um poeta de múltiplas vozes, como se pode ver nestes versos: “Mas eu não sou o senhor/embora venham comigo a música e o poema./Por que vos ajoelhais se eu vim por sobre as ondas/e só tenho palavras?/Ouvi a minha voz de anjo que acordou:/Sou poeta.”

Sim, Faustino é um dos grandes poetas brasileiros do século XX. Um dos maiores do Piauí de todos os tempos. Um autêntico seguidor de Pound, empunhando a bandeira cujo lema gravado com as letras do tempo era: “repetir para aprender, criar para renovar”.

Roberto Bolaño e o imaginário do assombro

Quando todos pensavam que o boom da literatura hispano-americana, com o seu realismo fantástico, teria chegado ao ápice através da consagração de autores como Jorge Luis Borges, Julio Cortázar, Gabriel García Márquez e Mário Vargas Llosa, surgiu a figura de um escritor e poeta chileno, que morreria precocemente aos 50 anos, ganhador dos prêmios Herralre e Rómulo Gallegos, que deixaria uma obra decisiva para a ficção do século XXI: Roberto Bolaño (1953-2003).

Seus livros são marcados pela consciência de que o mote do que se escreve serve apenas como instrumento mediador para que se possa encontrar o não aparente.  O tudo e o nada formam um amálgama constante nas narrativas do autor de Estrela Distante (1996), Detetives Selvagens (1998), Noturno do Chile (2000), Putas Assassinas (2001) e 2666 (2004). A constante relação entre poesia e conflagração, o cenário violento, a ditadura em seu país de origem, o exílio, o amor pelos livros, a ironia e a tragédia da guerra urbana e social, a princípio, podem parecer elementos utilizados sem métodos adequados para formar a tessitura de cada história.

O autor faz uso do ‘falso fim’ para envolver o leitor na trama de cada uma de suas novelas. Trata-se de uma caçada a si mesmo, já que a memória nunca vem com a mesma amplitude e com a mesma nitidez com que se forma em nossas mentes.

Bolaño viveu toda a sua vida com sérias dificuldades de ordem material: foi preso pelo regime opressor de Pinochet, refugiou-se no México, vegetou, morou e morreu em Barcelona.  Provavelmente, na obra deste escritor, o leitor mais atento poderá observar uma questão crucial: saber onde está localizado o limite entre os gêneros. Outro limite exige definição: o ponto de distinção do que é ficção e o que é admissão do vivido.

Aqui, é preciso ter uma noção mais profunda do conceito de contemporaneidade. Procurar saber se o tempo atual está diretamente relacionado às condições sociais e históricas, ou se esta relação se dá em face da forma com que cada um consegue ver a si mesmo diante do outro. E, no caso do artífice da palavra, como ele consegue transpor esta percepção/sensação para o papel. Como ensinou George Lukás: “A vida faz-se criação literária, mas com isso o homem torna-se ao mesmo tempo o escritor de sua própria vida”.

O autor seguiu à risca o caminho dos exilados borgianos. Ele era um daqueles que encontram refúgio entre as estantes das muitas bibliotecas espalhadas pelos países de língua espanhola. Bolaño não dispensou o caráter tradicional na feitura de sua obra em prol de uma tentativa desesperada de atingir a vanguarda. A leitura das primeiras páginas, de qualquer um dos seus livros, projeta o leitor para um mundo marcado pela forma incomum e jocosa com que o autor encarava sua realidade. Os recortes bruscos no texto (para serem retomados em momentos bem distantes) são outra característica comum em sua escrita. Inquietações, dúvidas e vazios são inseridos constantemente. Ele solta e controla as rédeas com total domínio. É autobiográfico em todos os momentos sem medo ou culpa, mas deixa bem claro que, em literatura, ninguém consegue ser totalmente sincero.

 

Nathan Sousa (Teresina, 1973) é ficcionista, ensaísta, poeta, letrista e dramaturgo. Tem vários livros publicados, dentre eles Um esboço de nudez (2014) e Semântica das Aves (2017). Venceu por 04 vezes os prêmios da União Brasileira de Escritores, foi finalista do Prêmio Jabuti 2015 e do I Prémio Internacional de Poesia Antonio Salvado.

email: nsrlezama@hotmail.com

 

 

 

 

Contando a história pelo fim

Gabriel García Márquez (1928-2014) foi um jornalista, diretor de cinema e escritor colombiano. Morou na França, na Espanha, no México e na Itália, onde estudou cinematografia. É considerado um dos grandes mestres do chamado realismo mágico e principal figura do Boom da literatura latino-americana. Recebeu inúmeros prêmios e honrarias, dentre eles, o Prêmio Rômulo Gallegos e o Prêmio Literário Internacional Neustadt, ambos em 1972, e o Prêmio Nobel de Literatura, em 1982. Seu livro, “Cem anos de solidão” (1967)¸ sucesso de público e de crítica, foi considerado por Pablo Neruda, e pela imprensa internacional, como o melhor livro já escrito em língua espanhola depois de “Dom Quixote de La Mancha”, de Cervantes.

Em “Crônica de uma morte anunciada” (1981), Gabo, como era chamado carinhosamente por amigos e admiradores, relata, em primeira pessoa, buscando reconstituir de forma minuciosa, mediante as recordações e o depoimento dos demais personagens, o assassinato de Santiago Nasar, um jovem de 21 anos, acusado de ter desonrado Ângela Vicário, a noiva do venturoso Bayardo San Román.

Na noite que antecedeu às festas de núpcias, Santiago teve sonhos incômodos, sentiu um presságio. No dia seguinte, ele foi morto pelos irmãos de Ângela, os gêmeos Pedro e Pablo Vicário, a golpes de faca, na porta de sua casa. García Márquez faz cair por terra a força da surpresa ao narrar uma história curta, anunciando o desfecho do princípio ao fim. Fazendo-se valer de seu poder de grande contador de histórias, o autor de outro livro fantástio, “O amor nos tempos do cólera”, prende o leitor da primeira à última página, tecendo aquilo que verdadeiramente faz de uma história um grande livro: saber como contar, por que contar e o que contar.

Todos os sinais (os sonhos premonitórios, o alerta de uma senhora, a carta anônima deixada na casa da vítima por baixo da porta, a promessa impassível dos irmãos Vicário) permitem ao leitor entender que o personagem está diante da proximidade de um episódio, cuja realidade se expõe e se desmorona para ele. Mas Santiago Nasar não está confiante de que seu fim está próximo.

Gabriel García Márquez traça uma linha (ora tênue, ora elíptica), com base na representação dos fatos por ele observados ou pelo relato dos elementos envolvidos no contexto, considerando que a representatividade de cada depoimento sobre o dia do crime (para uns chovia, para outros era um dia de muito sol ou ainda havia um arco-íris no céu) são indicativos de que, tanto no mundo real como no ficcional, o sentido das palavras e o significado real das ocorrências não são verdadeiramente os mesmos.

Deste modo, o autor entra no possível jogo narrativo, convidando o leitor a segui-lo no caminho investigativo. Como o próprio autor afirma: “eu conservava uma lembrança muito confusa da festa antes de me decidir a resgatá-la aos pedaços da memória alheia, uma vez que no curso das indagações para esta crônica recuperei numerosas vivências marginais”.

Em “Crônica de uma morte anunciada”, García Márquez zomba do crime; eleva a representação literária à condição de instrumento revelador daquilo que a própria realidade, por si, não conseguiria se livrar, ou seja, o caráter estanque do acontecimento. É um livro para a gente morrer de admiração.

 

Nathan Sousa (Teresina, 1973) é ficcionista, ensaísta, poeta, letrista e dramaturgo. Tem vários livros publicados, dentre eles Um esboço de nudez (2014) e Semântica das Aves (2017). Venceu por 04 vezes os prêmios da União Brasileira de Escritores, foi finalista do Prêmio Jabuti 2015 e do I Prémio Internacional de Poesia Antonio Salvado.

email: nsrlezama@hotmail.com

 

A poesia da ilha em Eduardo White

Uma das marcas mais fortes da poesia que se afirma a partir do século XX é a tentativa de resistir às contingências da vida diária sem cair no sentimentalismo vago. O continente africano atravessou o tempo arrastando graves dificuldades de todas as naturezas, principalmente de ordem política e civil. É exatamente nesse cenário, com os olhos voltados para os encantos do Oriente, apostando na constituição da figura da mulher como reestruturação territorial do próprio país, e buscando o prestígio e a assimilação do sujeito poético com povos e países distantes, que surge a poesia de Eduardo White.

Eduardo Costley White nasceu em Quelimane no ano de 1963. Filho de pai moçambicano de origem inglesa e de mãe portuguesa, White é figura das mais importantes na formação da literatura contemporânea de Moçambique. O autor de “Amar sobre o Índico” (1984), “Homoíne” (1987), “Janela para Oriente” (1999) e “O Poeta Diarista e os Ascetas Desiluminados” (2012), dentre outros; o vencedor de prêmios como o Prêmio Nacional de Poesia, o Prêmio de Literatura José Craveirinha e o Prêmio Glória de Sant’Anna, realizou seu trabalho como quem fez uma “escavação interior”, testemunhando um lugar de onde não pode evadir-se. É fácil identificar a influência das poesias portuguesa, islâmica, oriental e anglo-saxônica em seu trabalho. No entanto, sua poesia está fincada na produção de uma literatura nacional, escrita em português, e, por conseguinte, capaz de delinear uma teoria poética específica aplicável, afirmando a criação de uma identidade moçambicana.

Sua poesia vai da euforia de caráter cívico e social, a um momento de distopia. O conflito entre a leveza do poeta em seu ministério e a matéria sobrecarregada da realidade de sua terra aparecem em versos como estes de “Até Amanhã Coração” (2007): “Há pouca poesia no mundo que me rodeia./ […] O que vou fazer com esta poesia toda no emprego?”

Não há dinheiro para comprar livros em seu país, mas o poeta insiste na construção da ponte de saída através da poesia. O questionamento é constante. A angústia não cessa, como se pode ver em outros versos do mesmo livro: “Como posso pedir-lhes que leiam, como posso pedir-lhes que ao invés dos pratos ponham livros à sua frente?”

O amor, apresentado como tema de estreia na sua primeira obra, tornou-se o tema central de toda a sua escrita. O amor e seus efeitos. Verifica-se o erotismo como pedra de toque da criação imagética de uma nova nação. A África, a terra natal, a mulher amada e a morte. Sim, a morte. A simbolização da evaporação do amor. Elemento fundamental para a reconstrução do mundo e do sonho. Não há nada que esteja direcionado para a concepção coletiva na poesia de Eduardo White que não seja, antes de tudo, uma prática lírica individual. Seu texto instala-se totalmente na história e no espaço geográfico. Apela para os sentimentos humanos. Fala da terra e do homem, de sua necessidade de realização, mas é puramente uma poesia moçambicana, porque a sua semântica e as suas imagens são marcadamente moçambicanas.

Face ao exposto, é bom lembrar as palavras de Octávio Paz, quando disse: “Parece-me que as mudanças na sensibilidade colectiva que vivemos durante o século XX obedecem a um ritmo pendular, a um vaivém entre Eros e Tânatos”. Eduardo White afronta a acepção da morte, traça uma cartografia da figura feminina numa mímese que descreve um Moçambique com olhos para o Oceano índico. Distancia-se, assim, dos movimentos poéticos do passado, não se caracteriza como tão somente universal, nem individualmente de reivindicação e de caráter nacionalista por si só. É intimista, mas, ainda assim, coletivo, pois recorre ao sentimento humano que lhe pertence e que pertence a qualquer um.

Sua poesia tem vocabulário integrado às imagens geográficas como representações metonímicas e metafóricas, sem relaxamento na forma, com versos predominantemente livres, sem desviar para o nonsense e sem rimas sofríveis, o que vem a criar uma elasticidade entre a realidade e o seu subterfúgio poético. O sujeito da poesia forma-se como ambiente de princípio para um passeio interior, como diz o próprio autor nestes versos de “Os Materiais de Amor Seguido de O Desafio à Tristeza” (1996): “esta ilha que sou ao Norte”. Seu lugar mítico, porque carregado de fragmentos de uma história que não deu aos seus membros o direito de contá-la com suas próprias palavras. É Moçambique seu ponto de partida e de chegada. Seu sujeito e seu objeto de desejo; sua musa negra de olhos azuis.

Eduardo White morreu precocemente aos 51 anos, em agosto de 2014.

 

Nathan Sousa (Teresina, 1973) é ficcionista, ensaísta, poeta, letrista e dramaturgo. Tem vários livros publicados, dentre eles Um esboço de nudez (2014) e Semântica das Aves (2017). Venceu por 04 vezes os prêmios da União Brasileira de Escritores, foi finalista do Prêmio Jabuti 2015 e do I Prémio Internacional de Poesia Antonio Salvado.

email: nsrlezama@hotmail.com