Ítalo Lima
Blog Title

Eu morri a pauladas na rua

eu morri a pauladas na rua
quando andei de mãos dadas com meu namorado
eu morri a pauladas na rua
quando minha risada ultrapassou o som dos carros
eu morri a pauladas na rua
quando dancei livre na calçada
eu morri a pauladas na rua
quando saí de salto alto de casa
eu morri a pauladas na rua
quando nos lábios usei batom
eu morri a pauladas na rua
quando alguém julgou que eu exagerei na maquiagem
eu morri a pauladas na rua
e peço desculpas por ter sujado a calçada do vizinho
eu morri a pauladas na rua
e o último gosto que senti na boca foi do meu próprio sangue
eu morri a pauladas na rua
era uma terça
mas poderia ser quinta
segunda
eu morri a pauladas na rua
poderia ter sido nunca
eu morri a pauladas na rua
e com trinta segundos perdi a visão do meu olho esquerdo
em um minuto e doze minha mandíbula saiu do lugar
eu morri a pauladas na rua
mas não chorei
não porque eu sou forte ou coisa do tipo
quem sabe por ter sido, assim, tão de repente
eu morri a pauladas na rua
porque meu afeto incomodou a vizinhança
eu morri a pauladas na rua
e a esquina inteira fez silêncio
eu morri a pauladas na rua

e minha mãe até hoje me espera para a janta.

Ítalo Lima é escritor e publicitário. e-mail: italolimapoesias@gmail.com

_
Ajude Revestrés a continuar produzindo jornalismo independente. Contribua conosco no Catarse. A partir de R$ 10,00 (dez reais) você já nos ajuda muito. Acesse: catarse.me/apoierevestres

Quando o coração machuca o dedo na quina da porta

Machuquei o dedo do pé na quina da porta. Vou repetir. Machuquei o dedo do pé na quina da porta. Poxa vida! Machuquei o dedo do pé na quina da porta e Carlos Aberto continuou com a bunda no sofá da sala. Não se compadeceu do meu grito, ainda que tímido. Machuquei o dedo do pé na quina da porta e Carlos Aberto continuou com a bunda no sofá da sala.

Machuquei o dedo do pé na quina da porta e os ponteiros continuaram em sua audácia a cursar, nem sequer entortaram a vista para medir o meu lamento. Machuquei o dedo do pé na quina da porta, Carlos Alberto continuou com a bunda no sofá da sala. Machuquei o dedo do pé na quina da porta e os ponteiros continuaram em sua audácia a cursar. Machuquei o dedo do pé na quina da porta e eles continuaram, um com a bunda no sofá da sala e o outro a cursar em um tic-tac cotidiano.

Machuquei o dedo do pé na quina da porta. Carlos Alberto continuou com a bunda no sofá da sala. Machuquei o dedo do pé na quina da porta e os ponteiros continuaram em sua audácia a cursar. Machuquei o dedo do pé na quina da porta e eles continuaram, um com a bunda no sofá da sala e o outro a cursar em um tic-tac cotidiano. Machuquei o dedo do pé na quina da porta e a cortina da varanda continuou a balançar como se nada tivesse acontecido. Bailava a todo vento mole.

Machuquei o dedo do pé na quina da porta, Carlos Alberto, os ponteiros e a cortina da varanda não me socorreram. Machuquei o dedo do pé na quina da porta e era como se nada existisse ao meu redor. Como se Carlos Alberto, os ponteiros e a cortina da varanda fossem um só objeto. Inanimados. Que não se lamenta quando a esposa machuca o dedo do pé na quina da porta!

Olha, machuquei a quina da porta no meu dedo do pé e Carlos Alberto a socorreu como se fosse uma filha. Machuquei a quina da porta no meu dedo do pé e os ponteiros enlouqueceram em giros catatônicos. Machuquei a quina da porta no meu dedo do pé e a cortina da varanda deu giros inconstantes. Machuquei a quina da porta no meu dedo do pé e Carlos Alberto, os ponteiros e a cortina da varanda ligaram para a ambulância.

Pedi desculpas à porta. Toda a casa dormiu aliviada.

italolimapoesias@gmail.com

Parece domingo

Joelson chegou na hora mais estranha do dia. Quinze para as nove. Já repararam que quinze para as nove é sempre uma péssima hora para tocar incansáveis vezes a campainha de uma casa em uma plena segunda-feira? Mas era Joelson.

 Já vai!

Gritei da cozinha. Atravessei descalça a passos longos e não mais irritada com o incansável barulho da campainha. Eu acabara de acordar. Porque era o Joelson.

 Eu disse já vai!

Dessa vez gritei eufórica e com um sorriso disfarçado no rosto. Porque era o Joelson. Esperei por alguma notícia urgente. Algum aviso que só poderia ser dado assim, quinzes para as nove de uma segunda-feira. Mas não. Joelson não queria me entregar flores. Nem explicar os motivos de ter saído de casa há mais de uma semana sem deixar um bilhete. Joelson não tinha os olhos de arrependimento. Joelson não trazia na bagagem as malas de volta para casa. Não tinha serenata para me cantar Bob Dylan. Não tinha bom dia na face de Joelson. Nem ao menos um abraço de despedida. Não tinha, reparem bem, não tinha Joelson de joelhos ao chão. O arrependimento passou longe da minha calçada. Também nos lábios, nossa! Os lábios de Joelson não esperavam pelo meu beijo.

Aliás, não tinha Joelson na porta de casa. Foi engano. Engano! Tenho enlouquecido sempre às quinze para as nove de segunda-feira.