I

Aos sete anos ficou sabendo que nunca seria alguém. E quem o disse foi aquele que agora estava ali, deitado, rijo, frio, mãos cruzadas sobre o peito faltando dois dedos na direita, o mindinho e o anelar, um cobertor de flores cobrindo o que seriam as pernas se elas ainda existissem, pernas que desapareceram há trinta e sete anos, ou seriam quarenta e dois, no acidente na Curva da Tartaruga, encontraram o carro, rodas para cima, e o corpo, que ainda não havia sido daquela vez que deixava de ter as características que por hábito se costuma dizer dos que estão vivos, demoraram algum tempo para encontrar, uma hora, talvez meia, um tanto escondido dentro de uma vala, um buraco, quem pode dizer como surgiu ali aquela cova que, ao contrário do que se pensa a respeito das atitudes habituais das covas, não o abrigou por toda a eternidade mas, sim, por pouco mais de uma hora, talvez meia, e o livrou da definitiva cova, a última, a derradeira, a providência divina aparece das formas mais inesperadas, pois essa cova, cavada ali, presume-se, pelas mãos do Altíssimo, para quem n´Ele crê, ou pelo vento ou pela chuva para os incrédulos e materialistas ferrenhos, foi a salvação, o coração ainda batia, o sangue corria, os pulmões respiravam, os olhos enxergavam um pouco de azul por trás de alguma névoa, que a dor muitas vezes dói tanto que deixa de doer mas coloca nuvens nos olhos. Vivo, ainda, mas duas pernas faltavam pouco abaixo dos joelhos e nunca foram encontradas, nem pelos que o socorreram, nem pela polícia, nem pelos cães, que muitos sempre houve por ali, terra de gente simples, poucas posses, pouca comida, pouca água, mas sempre um cachorro ou cadela para dividir o que sobrava ou partilhar a fome e a sede, e pode-se afirmar que as pernas, desaparecidas, desaparecidas realmente permaneceram e ainda seguem, pois pelo menos algum desses cães, se as houvesse encontrado, haveria de voltar para casa ao fim de um dia qualquer com um pedaço, um resto, um qualquer coisa preso aos dentes, e seu dono ou dona certamente haveria de o perceber pois ali, naquele lugar, bicho ou gente com fiapo de carne preso a um dente não é coisa comum. Disso nunca houve notícia, e o tempo passou, e aquele que agora ali está, digamo-lo novamente, deitado, rijo, frio, mãos cruzadas sobre o peito faltando dois dedos na direita, o mindinho e o anelar, um cobertor de flores cobrindo o que seriam as pernas se elas ainda existissem, passa seus últimos momentos, talvez hora, hora e meia, talvez menos, por sobre a terra, mas disso não pode saber já que está morto, e não há notícias fidedignas de que algum morto tenha por si mesmo dado a perceber sua condição de mortitude, e caso isso alguma vez tenha ocorrido, resolveu ele mesmo manter-se em silêncio, o que tampouco pode-se esperar que seja possível pois quem há de acreditar que um morto que seja capaz de perceber que está morto não esteja sim vivo, e que assim sendo iria gritar ou, no mínimo, balbuciar qualquer coisa que fosse para dar aos outros vivos notícia de que não, não haveria chegado sua hora, vamos festejar que a vida segue.