Não há notícias de que alguém ande por aí a medir a espessura ou o volume ou o peso das gotas de chuva, o que não exclui a possibilidade de que existam pessoas realizando tão relevante tarefa, grupos de cientistas, estudiosos anônimos e determinados, pode-se dizer até obcecados, incumbidos das obrigações científicas de explicar os mistérios do mundo, imagine dois desses gênios andando por aí, talvez até rivais em competição, Essa mede tanto, Essa mede tanto, Olhe, minha chuva está mais grossa que a sua, venci, Ora, a sua chuva pode ser mais espessa mas a minha molha mais, disputas do gênero tão comuns no dia a dia dos seres humanos seja em que área for do conhecimento, e até do desconhecimento, digamos assim. Vamos desconsiderar momentaneamente essa possibilidade, mas podemos afirmar que chovia uma chuva fina na tarde em que Alfredo conheceu Beatriz e que, a despeito do aparente pouco volume de água presente em cada pingo da chuva que Alfredo tomava, ele estava bastante molhado. Tentou correr para evitar que se ensopasse mas foi uma inútil tentativa, é esse um dilema bastante antigo da humanidade, como se molha mais, quando se corre na chuva com a pressa de terminar logo o trajeto ou quando se anda lentamente, a segunda hipótese demanda mais tempo na travessia porém diminui o impacto das gotas no corpo e ao menos em tese reduz a quantidade de água acumulada, e essa, convém dizer, é a hipótese lançada por um grupo talvez mais preguiçoso ou sem grande vontade de correr, ainda há gente realizando essa pesquisa mundo afora, talvez aqueles mesmos já citados, porém sem resultados concretos, e espera-se para breve uma resposta definitiva a tão inquietante questão, quem sabe a metodologia adequada seja mesmo a medição da espessura das gotas, vamos torcer pelo fim das pesquisas, que já nos cansam a todos esperar, mas por ora pode-se afirmar sem medo de equívoco que Alfredo estava, mesmo, completamente encharcado, nenhuma novidade, era assim sempre que se esquecia de carregar o guarda-chuvas, como naquela tarde. Nunca houve um só dia em sua vida em que, carregando o guarda-chuvas, este tenha se tornado instrumento útil, se o trazia consigo, por mais que ventasse, trovejasse, relampeasse ou sua mãe o avisasse, nada de chuva, nem um pingo, nem uma gota, nem um mililitro, nada, se o céu estivesse pesado e arroxeado para chover não chovia, mesmo que se sentisse o cheiro de terra molhada que anuncia a chuva, é bom que aqui se abra um parêntese para dizer, apenas a título de curiosidade e sem mais pretensões, que tal cheiro nunca sai da terra, mas sim provém de uma bactéria presente no ar e que se rompe em alta de umidade e libera o que se convencionou chamar de cheiro de chuva, e é um cheiro que quase toda a gente diz ser bom, talvez alguma nostalgia atávica, enfim, não é esse o ponto e, sim, que se Alfredo carregasse consigo o guarda-chuvas e o serviço de meteorologia avisasse no rádio de uma chuva torrencial ela não vinha, se a moça do tempo ajoelhasse na tela da TV jurando por todos os santos, por Nossa Senhora, pelo Santo Padre, pela mãe, o pai ou mesmo os filhos que choveria naquele dia, nada, tudo pareceria armado para a mais diluviana tempestade mas ela não viria. Ao contrário, bastava Alfredo sair sem o guarda-chuvas um dia que fosse e lá vinha ela, fina, persistente, constante, não havia como falhar, tudo que fosse ao contrário do afirmado acima, ou seja, mesmo que o céu estivesse azul, aberto, claro, ou, se de noite fosse, estrelado, limpo, mesmo que não houvesse vento nem cheiro de chuva nem previsão meteorológica, mesmo que nos jornais aparecesse ao lado da data de publicação um pequeno sol desenhado, como é de praxe nos periódicos diários, mesmo assim, era só Alfredo se descuidar, se distrair e sair de casa sem o guarda-chuvas pendurado no braço direito e, exatamente após concluir o centésimo vigésimo quarto passo, começava a garoa. Pois era uma dessas tardes. Alfredo havia esquecido o guarda-chuvas, já dera bem mais que cento e vinte e quatro passos, talvez passassem já dos mil e quinhentos, o que nos induz a crer que verdadeira, diante do já exposto, sua situação de encharcado, foi nessa situação que Alfredo, molhado até a alma se almas existirem e de alguma maneira possam se molhar, ao dobrar a esquina deu de cara com Beatriz. A bem da verdade dos fatos é bom considerar que “deu de cara” é uma afirmação hiperbólica, já que Beatriz vinha caminhando em sua direção, porém, à distancia de cerca de um quarteirão, ou algo próximo a cem metros do local em que Alfredo se encontrava naquele instante, e foi tão grande o impacto que Alfredo não conseguiu dar mais um passo que fosse. De alguma maneira, mesmo estando o rosto de Beatriz a tal distância, pareceu a Alfredo estar ali a menos de um centímetro, talvez meio ou menos, de seus olhos, Alfredo nunca havia visto assim tão de perto um rosto de mulher, exceção feita ao rosto de sua finada mãe, e vamos novamente lembrar que o rosto de Beatriz se encontrava a cerca de cem metros de distância. E enquanto ela caminhava em sua direção essa distância caía à razão de um metro a cada dois segundos, agora eram noventa e nove, agora noventa e oito, agora noventa e sete, e assim foi até que Beatriz e seu rosto estacionaram a trinta e oito metros dos olhos de Alfredo, mas para ele foi como se ela estivesse dentro dele, como se ela houvesse invadido cada ínfimo espaço de seu corpo, não mais órgãos, não mais vísceras, tudo agora dentro dele era Beatriz, seu coração pulsava Beatriz, seus pulmões respiravam Beatriz, e para poupar o leitor de descrições anatômicas desnecessárias vamos afirmar que, interiormente, todo Alfredo era agora Beatriz, que se Beatriz respirasse também respiraria Alfredo, que se Beatriz sorrisse também sorriria Alfredo, que se Beatriz derramasse lágrimas haja lenços para consolar Alfredo, e que, se Beatriz por algum motivo misterioso desaparecesse do raio de visão de Alfredo, morto ele estaria, já que, assim como morrem os seres humanos à falta de oxigênio, morreria Alfredo sem Beatriz, que, a partir daquele instante, ele respirava. E naquele ponto da rua ficou Alfredo estacionado, completamente imóvel, quase petrificado, algum desavisado poderia pensar ser uma estátua, uma homenagem dos munícipes ao encharcado anônimo, mas era Alfredo, olhos fixos em Beatriz, que voltara a se mover em sua direção mas ainda sem o olhar nos olhos, não que ela os evitasse, mas é que os olhos de Beatriz corriam alegres pela rua, iam de um lado a outro, de uma calçada a outra, olhavam para baixo e um segundo depois para cima, e muito havia para ser visto pelos olhos de Beatriz que olhava para tudo muito e bastante curiosa e desatenta, e seria muito mesmo uma obra do acaso se em algum momento os olhos de Alfredo e Beatriz se cruzassem, quase tão improvável quanto um choque planetário entre Vênus e Plutão, e Beatriz sorria, e Alfredo tentava entender porque e como em meio à chuva que caía por toda a cidade Beatriz caminhava com o sol brilhando sobre ela. Um sol leve, como um sol que acaba de nascer, refletindo-se nos cabelos, era como se Beatriz emanasse luz, e o sol ainda pintava de leve amarelo as flores que Beatriz trazia na cabeça, e Alfredo ainda também não entendia como e porque ao redor de Beatriz havia borboletas, azuis, verdes, lilases, de todas as cores, que dançavam ao seu redor enquanto ela caminhava e sorria. E Beatriz já voltara a diminuir a distância entre ela e o estacionado Alfredo à razão de um metro a cada dois segundos, agora, vinte e seis, agora vinte e cinco, contemos mais rapidamente e agora eram vinte metros, dezoito metros, agora oito metros, logo seis metros, e então Beatriz parou a exatos dois metros de Alfredo. E se o mundo é feito de regularidades, e se a ciência se baseia nas probabilidades e nas certezas, se as certezas decorrem da razão empírica, a razão, rainha de tudo o que há, se o mundo conhecido é feito pelas convicções e as coisas possíveis (dizem que já é morta a metafísica), nada existe fora da substância, é o que dizem muitos, então se é isso que é, algo de muito misterioso e improvável e enigmático, talvez só compreensível aos místicos e aos que tais, aconteceu. Beatriz parou em frente a Alfredo, olhou nos olhos de Alfredo e sorriu.
Enfim, embora com atraso, o tão bem guardado segredo
Antes que me ponha, finalmente, a revelar o tão bem guardado segredo que é a receita obtida por meu tataravô a duras penas nas ilhas geladas da Rondívia em fins do século 18, deixo aqui registrado, para toda a não-eternidade, que o universo não é composto por terra, água, ar e fogo, como vem da filosofia grega clássica e posteriores.
A Rondívia, este país situado em algum ponto a leste da rua Humboldt, cujo único cidadão caucasiano branco bípede com polegares opositores, barba, bigode e cabelo quase nenhum e que algum dia tenha escutado a quinta sinfonia a visitá-lo foi meu tataravô, é pródiga (a Rondívia, caso já tenha se esquecido tão longa foi a frase anterior) na produção de duas coisas: vento e filósofos. Tanto assim que os filósofos da Rondívia são absolutamente desconhecidos em qualquer parte do mundo mas, caso se desse o contrário e o mundo inteiro tivesse se dobrado à sapiência filosófica desses gênios desconhecidos, diria-se desses serem os filósofos cabeças-de-vento.
Os filósofos da Rondívia há muito sabem que tudo o que existe, existiu ou haverá um dia de existir é composto por cinco elementos essenciais: sal, peixe, vinho, música e amor. Desses cinco elementos deriva-se todo o universo. O corpo, a pedra, a folha, o mar, o sol, as pilastras dos palácios, os livros, os macacos, as bactérias, e até mesmo os políticos e os árbitros de futebol, ou seja, tudo que há, houve e haverá, tem a gênese nesses elementos, o que foi muito tempo depois interpretado um tanto erroneamente por Aristóteles e pelos alquimistas e por Jorge Ben Jor. Isso gerou a ilusão dos quatro elementos, a quintessência e outros enganos, coisa que deixaremos para comentar em outra oportunidade caso ela ainda nos surja em vida, assim como os motivos e circunstâncias que levaram meu avô a aportar na Rondívia e tudo o que sucedeu após esse fenomenal evento.
O fato é que o universo é composto por sal, peixe, vinho, música e amor. E é daí que vem a receita mais famosa da Rondívia: dos cinco elementos, mais a sextessência rondiviana, que é o macarrão. Hoje, através da ciência pós-moderna, sabe-se que o macarrão é fonte de carboidratos que são fundamentais para nossa sobrevivência, e daí se percebe a sabedoria do povo rondiviano transformada em culinária: os cinco elementos essenciais, mais a sextessência, fazem a Bacalhonada, o prato fundamental em torno do qual se reúne todo o conhecimento dos filósofos da Rondívia e, portanto, o conhecimento humano.
Tudo isso foi dito para que você perceba a necessidade de se reverenciar a receita que segue, e transformar o ato de prepará-la em evento ritualístico e sua deglutição em uma festa que deve ser anunciada aos quatro ventos antes, durante e após todo o ritual, até mesmo pelo rádio ou, quem sabe, por pombos correio, muito mais modernos.
Uma última observação antes da receita propriamente dita: siga rigorosamente as quantidades determinadas, para não correr o risco de um resultado absolutamente cartesiano. Assim como na vida, quanto mais se segue as regras menos se controlam os resultados, e é isso que faz, desse prato, um símbolo indelével da sabedoria dos mais sábios de todos os sábios de toda a história humana.
Bacalhonada
Ingredientes:
* 500g de bacalhau em lascas
* 1kg de macarrão (qualquer formato, mas preferencialmente talharim, para que possam todos passar alguma vergonha ao enrolar o macarrão no garfo)
* 12 garrafas de vinho (algumas de vinho branco, outras de vinho tinto)
* um tantinho de azeite
* algumas cebolas
* alho em pasta
* uns poucos tomates
* um pouquinho de sal
* azeitonas sem caroço, pretas e verdes
* música a gosto
* uma ou mais pessoas as quais se ama
Modo de preparo:
Mergulhe o bacalhau em lascas (previamente dessalgado mas não muito) em meio litro de vinho branco. Deixe que o bacalhau fique um tanto bêbado, o que deve levar cerca de 45 minutos. Beba o meio litro restante.
Coloque música a gosto no ar, e convide a(s) pessoa(s) que você ama para dançar. Abra outra garrafa de vinho. Distribua vinho para todos a cada 5 minutos, talvez um pouco menos.
Faça o macarrão à parte: (fazer o macarrão é tão óbvio que não merece instruções).
Em uma panela média coloque o azeite, deixe esquentar; coloque o alho em pasta, doure as cebolas cortadas em rodelas; quando douradas, beba um copo inteiro de vinho, dê dois rodopios com cuidado para não se queimar e beije o(s) ser(es) amado(s).
Ponha na panela o bacalhau e mexa bastante, no ritmo da música previamente escolhida; coloque os tomates picados; mexa mais lentamente; experimente e vá colocando sal a gosto.
Acrescente ao conteúdo da panela dois copos de vinho branco, para fazer um caldo leve; deixe esquentar até quase ferver, mas não ferva; beba mais vinho.
Ao perceber que o bacalhau está suficientemente cozido, o que vai depender mais de quanto vinho tomou do que qualquer outra coisa, apague o fogo.
Em uma travessa coloque o macarrão, jogue o molho de bacalhau por cima, decore com as azeitonas pretas e verdes e mais rodelas de cebola, que foram fritas no que restou na panela.
Beba mais vinho, cante alguma coisa como “Corrientes, Tres Cuatro Ocho” ou algo que o valha, bem alto, e sirva.
Todos devem estar embriagados do vinho.
A música deve estar no volume suficiente para que todos cantem, mas que possam eventualmente trocar ideias e desconvicções e delírios sobre futebol, amores, Paris, Oeiras ou qualquer coisa que encante a alma.
Essa receita serve entre duas e 6 pessoas. Ou mais. Quem há de saber quantas paixões cabem dentro do peito?
P.S.: em breve, novas delícias culinárias típicas da Rondívia e seus arredores.
Onde houvesse azul
Você me pergunta e eu respondo, e você olha para mim como se tudo que digo fosse absurdo, e eu lhe digo que nada nesse mundo é absurdo, nada, nada, absurdo é estar vivo, absurdo é achar que existe alguma coisa “normal”, que vivemos em um mundo comandado por algum tipo de lógica, que existe ordem, que existe manual para tudo que há, e que tudo foi criado assim, “faça-se a luz” e a luz foi feita, tu és isso, e isso passou a ser, tu és aquilo, e aquilo passou a ser, e que isso é isso, e que aquilo é aquilo, que tudo está dentro de regras e regras não podem ser quebradas, que regras não se dobram, regras, regras, você está presa a regras, você acredita que viemos para esse mundo com um destino traçado, e não é isso, não é, não é. E eu lhe digo que você é muito nova, muito nova, muito nova, e um dia você vai aprender que nada é absurdo, que destino não existe, que eu, você, o sol, o mar, as folhas, os animais, o chão, o vento, a chuva, os universos, todos, todos, todos somos obra do acaso, e que se somos obra do acaso nada pode ser certo e definitivo ou errado ou real ou absurdo. Ando um pouco sem memória, você perguntou sobre o quê, sobre aquele jogo, e eu digo que aquilo não foi um jogo, não foi uma partida, não foi, foi alguma coisa que não foi daqui, aquilo foi de outra dimensão, outra, não daqui, aquilo foi prova de que nada é absurdo, nada, menos ainda dentro de um campo de futebol, nada, não existe o impossível, não existe, não existe o melhor, não existe, só existe alma dentro de um campo de futebol, e é preciso rasgar a alma, entregar a alma inteira à grama, à terra, à lama, só existe a coragem de esfregar a alma no chão, de atirar a alma ao nada para salvar o time, só, só existe a vida, imprevisível, a vida é correr, a vida é cair, a vida é chutar, a vida é dividir as bolas como quem vai morrer no próximo segundo, a vida é superar a dor, porque ali sentimos dor, e viver é ter dor, é chorar e sorrir e chorar e chorar mais e sorrir de novo, isso é a vida, é isso, isso é futebol, é isso, a vida é louca, louca, louca, você já fez alguma coisa louca na vida, não precisa dizer, é claro que já fez, como você chegou aqui, você me lembra alguém, mas que memória a minha, tão ruim, tão… Ah, a partida, a partida, não éramos homens ali, não éramos humanos ali, não jogávamos futebol, não éramos onze contra onze, sim, a matemática e os estatísticos e os comentaristas e os corretos e os advogados e os céticos, coitados, essa gente diria que eram onze de um lado, onze de outro, mas não era, não era, éramos mais, muitos mais. Cada um era mais de um, cada um do lado de lá era mais de um, talvez fôssemos todos dois, ou três, ou quinze, quem há de saber, não houve tempo para contar, era só correr, chutar, driblar, cair, cabeça na bola, levantar, correr, cotovelada, cair, chutar, e era gol, soco nas costas, correr, e chutar, e gol, e sempre isso, a cada minuto mais, e outro, e outro, e outro, cair, correr, cabecear, chutar, e gol, e gol, nariz quebrado, e gol, e mais nada, era preciso fazer mais, era preciso fazer mais. Você já jogou futebol? Não? Então você não sabe, não conhece o cheiro da grama, o cheiro da terra, não sabe, o cheiro de uma bola molhada, os pés doendo, doendo, doendo, não sabe, a cada passo, splash, splash, splash, chovia, chovia, splash, splash, os joelhos doendo, os tornozelos doendo, a canela sangrando, o ar desaparecendo, você não sabe, a cabeça doendo, sangue, o suor escorrendo, a vida escorrendo, como dói, splash, splash, outro chute, outro chute, e gol, e outro, e dor, e outro, e o ar, e outro, e outro. De quem eu lembro ao ver você, não sei, não sei, lembro de borboletas, lembro de borboletas azuis que eu via cada vez que chegava no gol do lado de lá, as borboletas eram azuis, lembro que você me lembra alguém e me lembra as borboletas, você e borboletas, não sei, mas eram azuis como as nossas camisas, isso, éramos demônios vestidos de azul, éramos diabos vestidos de azul, o céu era cada um de nós, azul, azul, azuis, mas você me lembra alguém, que memória, e borboletas. Eles? Eles eram vermelhos, eram, eram vermelhos, inteiramente vermelhos, mas os demônios éramos nós, azuis, e eles, vermelhos, vermelho é a cor dos demônios, não é? Mas não, os demônios éramos nós, azuis, os vermelhos vinham de toda parte, de cima, de baixo, não sei, não eram humanos, se multiplicavam, não eram onze, eram quinze, eram vinte, trinta, não sei bem, mas éramos os azuis contra os vermelhos, e naquele dia, onde houvesse uma camisa azul sobre a Terra azul havia um de nós, onde houvesse um lenço azul em uma gaveta havia um de nós, onde houvesse um lençol azul secando ao vento havia um de nós, onde houvesse um pedaço de azul derramado sobre uma pedra havia um de nós, onde houvesse uma flor azul se abrindo havia um de nós, onde houvesse uma borboleta azul, uma borboleta azul, tudo o que era azul era um de nós, quem vestisse azul era um de nós e estava lá dentro do campo, e estava do nosso lado, contra os vermelhos, eles, os vermelhos, os terríveis, tantos, tantos, não sei de onde tiramos força, tanta, não sei como transformamos tanta dor em ar, não sei como conseguimos continuar e continuar e fazer gols, outro gol, outro gol, enquanto eles vinham, tantos, tantos, e faziam mais um, que demônios, não, os demônios éramos nós, que memória a minha. Quanto tempo? Não sei, não sei, não foram noventa minutos, não foram, dizem que durou sete dias, isso, sete dias, mas sete é conta, você sabe, de quem mente, você sabe, e eu não minto, nunca menti, talvez minta agora pra você, você me lembra alguém, as borboletas azuis, alguém, isso, talvez um dia, talvez três, mais de sete dias, talvez dez, quem sabe, não lembro bem, faz tanto tempo, tanto, o que eu lembro bem é do som, splash, splash, a chuva, os pés, gemidos, lembro de gemidos, lembro do cheiro da dor, e dos sons, lembro do som de pés batendo uns nos outros, e o som da bola batendo na rede, você já ouviu alguma vez, não, não ouviu, pois escute, é um som lindo, lindo, um som lindo, é um plef, um plef que estica, que se expande, um plef elástico, às vezes é pleeeeef, um pleeeeeef que escorre pela rede e faz o som de asas de borboleta, você já ouviu? Não? Sim, borboletas, elas de novo, azuis, o som é lindo, lindo, e foram muitos sons de borboletas naquela partida, plef borboletas, plef borboletas, plef borboletas, tantas, tantas… Desculpe, não lembro bem, que memória, dizem que durante noventa minutos, ou três dias, sete dias, ou dez, quem sabe, o sol não se pôs, não houve noite, o mundo era o campo, o mundo era todo ali, a gente pisava no mundo, a gente rolava no mundo, o mundo tinha linhas e traves e grama e lama, e não havia mais ninguém no mundo, só nós, os onze, os vinte e dois, ou quarenta e quatro, ou quantos, tantos, splash, splash, plef borboletas, plef borboletas, e o ar, onde está, e o ar, como doía, como doía. Quanto? Não sei, não sei, mas isso não importa, ninguém ali venceu, ninguém ali perdeu, não éramos onze contra onze, éramos mais, muitos, cada um de nós era dois ou três ou quinze, nós, os demônios de azul, eles os vermelhos, não sei quantos, o que lembro, eu lembro que depois de tudo, depois de tudo, nos olhamos todos entre nós, éramos muitos, e resolvemos parar, não houve apito, não houve aplauso, não houve vaias, não havia ninguém, ninguém, não havia mais pernas, não havia mais ar, não havia mais dor, não havia placar, éramos só nós, tantas almas, tantas almas enlameadas, não éramos mais demônios, não éramos mais corpos, quando tudo acabou éramos uma mistura pastosa de vermelho e azul e lama e almas, não havia vermelhos ou azuis, éramos todos os mesmos, iguais, isso, iguais, onze, vinte e dois, quarenta e quatro, oitenta e oito, ninguém contou, você nunca jogou futebol, não, você não sabe que nada é impossível dentro de um campo, não existe impossível, não existe absurdo, não existe. Você me lembra alguém, e me lembra borboletas, elas eram azuis, nós éramos azuis, demônios azuis, borboletas, desculpe, não lembro de mais nada, preciso ir, preciso ir, plef, borboletas, plef borboletas. Como é lindo o som, como é lindo, você nunca ouviu o bater de asas de uma borboleta?
Carta de Monsieur H. para Helena
Senhora Helena
Acabo de chegar de Veneza. Fui passar duas semanas, e acabo de chegar à minha morada. Dois anos, quatro meses e setenta e oito dias fora da minha pequena caverna. Qual não foi minha surpresa ao encontrar, na empoeirada caixa de correios, esses dezenove envelopes verdes. Não há quase nada no mundo que me surpreenda mais, especialmente depois dessa longa estada em Veneza onde vi coisas que nem imagina, senhora Helena. Vi coisas absolutamente inacreditáveis, e o mais incrível que todas as coisas eram dentro de mim. Mas chegar e encontrar dezenove envelopes verdes vindos da senhora não fazia parte de minhas convicções. E, confesso: os malditos quatro andares de escadarias que me sugerem o Himalaia me foram leves como quase nunca.
Pensei que me houvesse esquecido. Não fui elegante em não me comunicar com a senhora nem dar sinais de vida, senhora Helena. Mas não dei sinais de vida por uma grande dúvida sobre se, em mim, havia alguma. Pensei mesmo que o tempo a faria se esquecer deste homem magro e eternamente de pés úmidos que, não de muito em muito tempo, reclama da vida. Pensei que se esqueceria de mim, porque eu mesmo fiz força para me esquecer de mim e, por isso, fiquei em Veneza por tanto tempo.
Aluguei um pequeno cômodo no Dorsoduro (não sei se conhece bem Veneza, enfim, é um bairro silencioso, sem as pavorosas hordas de turistas, e onde o canal não cheira a peixe mas, sim, a lágrima), coloquei ali uma pequena mesa para apoiar meu permanente copo d´água e meus remédios (uma cápsula vermelho e branca, uma bolinha branca e uma bombinha que preciso chupar e aspirar seu pozinho mágico a cada hora e meia), uma pequenina cama de solteiro e seu colchão e uma cadeira, de madeira escura e onde me balançava dia a dia, olhando o canaletozinho que me era visível pela janela. Ali em Veneza não tinha o meu único amigo Micko, o polaco, eslovaco ou coisa que o valha que tenho aqui em Paris como meu vizinho (já lhe falei dele, não sei se o recorda), nem a boulangerie de minha preferência. Então fazia minha única refeição diária, meu desjejum, em um hotel perto de minha moradia, o Tiziano. É um hotel grande, um edifício imponente e onde o que mais havia de comum comigo era a idade, já que foi construído no século XV, como eu, e que sempre tem à mesa do café um pequeno jarro com uma flor branca. Meu desjejum era sempre ali, e durava cerca de duas horas, todo dia. Não que eu coma muito, senhora Helena, sabes já que sou magro. E, como disse, o desjejum era minha única refeição. Nunca sentia fome, e as frutas e pãezinhos me bastavam. Mas da mesa podia observar a entrada do hotel e um pedaço do canal. E via as pessoas, senhora Helena, sem que pudesse ser visto por elas. E essa era a minha televisão: observar as pessoas entrando e saindo do Tiziano, e observar as pessoas andando para lá e para cá, uma gôndola ou uma lancha eventual. E perceber e pensar em como as pessoas são tão diferentes, apesar de absolutamente idênticas, senhora Helena. Não sei se assim o pensa, mas cada pessoa é absolutamente diferente e absolutamente igual a todas. Ali vi japoneses, brasileiros, franceses, italianos, chineses, o que há no mundo passa por Veneza e ali eu os via, todos os dias, iguais, iguais, diferentes, diferentes. Um fala mais, outro fala menos, um anda a passos rápidos, outra a passos lentos, uma sorri pouco, outro é um sorriso cercado de incertezas por todos os lados. Felizmente, como disse, ali não chegavam milhares de turistas e, sim, alguns poucos, minimamente civilizados, o que me dava oportunidade de observá-los com alguma demora. Divago, retorno então a meus hábitos.
Que eram apenas esses: o café no Tiziano, a subida para casa, a cadeira de balanço, os remédios, a janela que dá para o canal e, ia me esquecendo, a garrafa verde de água mineral que me lembrava os seus envelopes verdes, os quais, imaginava, nunca mais veria. Do desjejum para casa, onde me colocava à janela, de onde via também as pessoas, todas elas, iguais e tão diferentes, esperando ver uma em especial, já sabes quem, a única pessoa diferente e desigual das demais nesse mundo. Da janela só saía para cair na estreita cama, dormir um pouco e recomeçar no dia seguinte.
Pensei, senhora Helena, que nunca mais me escreveria, assim como pensava que nunca mais voltaria a este apartamento que, confesso, hoje cheira a pó e mofo. Dois anos, quatro meses e setenta e oito dias deixam marcas, odores e rugas, nas coisas, nas memórias e nas pessoas. Não sei se há como tirar isso do corpo, mas das coisas penso em chamar Iulianna, a mocinha que mora no apartamento logo abaixo do meu, para tirar. Não sei nem se ainda mora aqui, mas enfim. O tempo irá me fazer voltar para essa casa, onde acabo de entrar mas tenho dúvidas se saí algum dia.
Espero que me perdoe e comigo tenha paciência, já que tenho tanto a contar e tanto a fazer aqui, o que me impede se seguir agora nessa missiva. Espero não estar sendo mais uma vez invasivo e a incomodando com minha imprudência, afirmo que bastante eventual, em lhe retornar depois de tanto tempo como um mal agradecido qualquer. O que me deixou um pouco mais confiante em escrevê-la novamente foram as datas dos Correios nos envelopes, aliás, que curioso, abri um a um e estavam todos vazios, exceção feita ao último, onde encontrei sua carta, com data da segunda-feira última. O que mostra que os Correios andam um pouco mais eficientes, afinal hoje é sexta-feira e já tenho cá a sua carta.
Senhora Helena, lhe escrevo mais para a semana. Estou deveras cansado, e preciso organizar o confuso que há dentro de mim, ao menos o suficiente para lhe ser minimamente agradável como missivista.
Com um abraço,
H
P.S.: Lhe envio em anexo uma foto de mim, feita por uma turista finlandesa que passou duas semanas tomando café na mesa ao lado da minha. Um dia ela chegou, sorriu e me entregou esse retrato, e nunca mais a vi. Perceba que é excelente fotógrafa e me enxerga exatamente como sou. Queria compartilhá-la com a senhora, como sinal de respeito e pedido de desculpas.
Nessun dorma
(ou o 10)
Rita Hayworth soube por amigos em comum que Virginia compartilha com ela seu maior desejo: aumentar as noites para conseguir enchê-las de sonhos. Mas noites são seres fugidios que escorregam pelo mundo antes que possamos abrir suas barrigas e mergulhar dentro delas profundamente e colar em suas paredes todas as estrelas que iluminam nossos céus. “Nessun dorma, nessun dorma”, mas mesmo que não se durma nessa cidade em uma noite de terça-feira ninguém vê que Rita Hayworth carrega pela Lardennois sua cadeira de espaguete blêblanrúge, sobe os degraus de seu perfeito esconderijo e, com alguns passos à direita, chega ao lugar onde mais se encontra com ela mesma. Rita Hayworth se senta, tirando antes do bolso traseiro um pequeno papel dobrado. É uma canção antiga, que a mãe da mãe da mãe de Rita Hayworth cantava para o irmão mais novo dormir, e que diz mais ou menos assim: “eu quero amor, alegria, bom humor, não é o dinheiro que me trará felicidade, eu quero morrer com a mão no coração”. Rita Hayworth sobe na cadeira, espeta com um alfinete de cabeça amarela o bilhete no céu, senta novamente e espera o sol nascer. Já é quase dia, e Rita Hayworth agora caminha de volta pela Lardennois retirando pedras dos bolsos do casaco. A cada pedra que retira e joga por cima do ombro Rita Hayworth dá um sorriso e diz baixinho: venci outra vez. Treme seu celular. É Virgínia.