André Gonçalves

Farinhada

Blog Title

Uma nova grande narrativa?

Talvez o que tenhamos deixado passar despercebido quando Lyotard nos disse que havia chegado ao fim a época das grandes narrativas foi o fato de que, na verdade, vivemos em múltiplos tempos, dentro de um “agora”: alguns de nós vivem no século 21, outros no 20, outros não passaram do 19 e há quem diga que temos grupos que vivem, ainda hoje, no período medieval (e até anteriores).

Com isso nós, que nos acreditamos “de esquerda”, nos permitimos fragmentar ao máximo nossas agendas e nossa pauta reivindicatória. Claro, já que isso que chamamos de pós-modernidade contempla essa infinita multiplicidade de referências e até mesmo nenhuma ao invés de um “norte”. E nos dissolvemos em nossas subjetividades, tantas, incontáveis, superpostas em nós mesmos e em possibilidades sem fim. E aí não somos “a” esquerda, mas quase infinitas “esquerdas”, que muitas vezes tentamos impor às demais e nos posicionar em uma linha reta sendo que, usando uma geometria ideológica de possibilidades como modelo, talvez fosse melhor tentar nos localizar enquanto “esquerda” em um dos pontos de um megágono tridimensional e maleável.

Então estamos nesse megágono que flutua e gira e não tem nenhum rigor de forma e nossos opositores, lá na lógica do século 19, seguem com um discurso que tem como base apenas aqueles três pontos que vêm, talvez, do século 17 e formam o esqueleto do conservadorismo: tradição, família e propriedade, que também pode ser lido como hierarquia, deus e capital, e, mesmo que aqui e ali eles tenham suas incongruências, o esqueleto segue sendo algum norte, apesar de, sim, esqueleto pós-cadáver, e uma estrutura. E os una.

Uma hora esse esqueleto ia sair dos armários mofados e se aproveitar da nossa multiplicidade, que ao mesmo tempo é nossa maior força e maior fragilidade, para tentar nos derrubar e, como está na letra “t” do tripé, nos levar de volta ao passado, mal-estruturado e feio, porém pronto, ao invés de nos projetar para um futuro desconhecido, mas possível de ser construído.

Zizek disse ali que nisso de pós-modernidade tudo se tornou demasiadamente próximo, promíscuo, sem limites, deixando-se penetrar por todos os poros e orifícios. Começo a pensar que ele está certo e que tudo isso, que poderia ser mesmo nossa grande oportunidade, se tornou nosso maior problema, já que essa promiscuidade e falta de limites e porosidade permite que o passado, o mofo e o retrocesso se mantenham vivos, fortes, firmes, e a superposição de tempos vividos possibilita que “os outros” tentem reassumir o comando de tudo usando uma nova grande narrativa: a narrativa do “não há nada melhor que isso”, ancorada na hierarquia social da tradição, no estruturalismo moral da família regida por um ser divino, e no capital, na propriedade, no acúmulo.

Vai ser uma luta difícil. Talvez precisemos também de uma nova grande narrativa. Será? Mas qual?

Da memória #2

Ele deu tchau, e saiu. Pela janela, o vi atravessando a avenida. Chegou à parada de ônibus, apalpou o paletó na altura do peito. Sempre usava paletó para tocar. Música merece respeito. Meteu a mão nos bolsos. E voltou. “Esqueci os óculos”. Sorrimos um para o outro. Ouvi a porta fechando, voltei à janela e ele logo voltou a atravessar a avenida. Novamente, na parada, o apalpar e as mãos nos bolsos. E a caminhada de volta, os passinhos curtos um pouco mais ligeiros que o habitual. “Vim buscar os óculos, levei a escaleta e esqueci os óculos”. “Não vai esquecer de novo!”. Novamente os passinhos na avenida. Dessa vez, antes mesmo de atravessá-la, giro nos calcanhares. Levantei, peguei os óculos na mesinha e já o esperei à porta. Em meio a gargalhadas, ele: “Tô velho!”. Beijos um no outro. De volta à janela. Passinhos cruzando a avenida. A parada de ônibus. Dessa vez, o ônibus chegou e ele embarcou. Levando os óculos. Lá, do alto, fui junto. Sempre ia.

Da memória #1

Todos os dias, por volta das cinco da tarde, ela estacionava seus setenta e poucos anos ali, em frente à loja de discos no Largo do Machado, colocava suas sacolinhas no chão e esperava. Da loja logo soava, bem alto, o Bolero de Ravel, que ela regia, concentrada. Algo em torno de treze minutos depois, uma reverência da maestrina improvável a um público invisível, sacolinhas de novo nas mãos e o andar instável em direção à esquina.

Trinta anos depois ainda não sei bem quem melhor representaria a loucura: a maestrina, o dono da loja de discos, eu, que sempre assistia ao espetáculo ou as pessoas que passavam e achavam aquilo uma coisa de loucos.

Levantando a poeira do tempo

Uma das frases de que mais gostei a respeito das manifestações no Brasil foi: “estamos construindo uma nova governança da espécie”. Infelizmente meu desmemoriamento crônico não me deixa lembrar quem a disse, e peço desculpas. Mas ela cabe exatamente no que penso sobre o momento, ainda vigente. Estamos, não só no Brasil mas em todo o mundo, construindo um novo modo de pensar sobre o que é tudo.
Algumas pessoas tem me dito que é impossível satisfazer todas as demandas e que governo nenhum tem condições de resolver tudo. Claro que não. Mas a questão maior a ser debatida é: que tipo de mundo queremos ter? E essa pergunta engloba muitas coisas.

Que tipo de mundo queremos ter implica em que relações queremos que países e pessoas tenham com o dinheiro, com o capital. Dinheiro. O que é dinheiro, hoje? Que mundo queremos ter implica em que tipo de sociedade desejamos, qual a nossa relação com a diversidade cultural, com o outro, com os diferentes. Que tipo de mundo queremos ter significa o que é ser médico, engenheiro, político, artista, quais os novos compromissos e descompromissos de cada um. Significa o que é liberdade de ir e vir, o que são fronteiras e em que condições pessoas de nacionalidades diversas podem entrar e sair de outros países, seja para fazer turismo, estudar ou exercer uma profissão. Que mundo queremos ter significa que tipo de soberania um país tem sobre ele mesmo e sobre os outros, e como essa noção de soberania se adequa ao resto do mundo. Se é ético ou razoável que presidentes tenham seus aviões proibidos de pousar por que outro desconfia de uma carona a um denunciador de espionagem. Esse mundo que queremos ter, qual é a relação dele com a tecnologia, qual a nova configuração de direitos individuais, como é e o que é sexualidade? Quais os limites para a pobreza? E para a riqueza, qual o limite? Deve haver limite? É ético, sustentável, razoável, dispor de bilhões de dólares na conta bancária e outro dispor de um pedaço de pão dormido? Aliás, o que é sustentabilidade? Quais os limites para se definir o que é e o que não é uma afronta à dignidade humana? Que mundo queremos ter significa como as instituições vão se adaptar à sociedade em rede e na nova identidade do comum e reaprender o que é democracia, o que é participação popular, o que é trabalho, hierarquia, comando, chefia, liberdade. O que é corpo? O que é autonomia? O que é direito? O que é cidadania? E direita e esquerda e centro, o que são? Ainda são?

Quando vemos governantes, aqui e mundo afora, perdidos, sem saber que decisões tomar e aparentemente sem entender as transformações que começaram e já faz algum tempo, percebemos o quanto se distanciaram da(s) sociedade(s). E mantêm uma lógica caduca e empoeirada para tomar decisões que, não, não serão aceitas por todos e não vão impedir protestos e revoltas e, até mesmo, oh!, vandalismo. Vandalismo? Hoje, o que significa “vandalizar”? O Big Brother está invertido. Agora, as pessoas apontam olhos mágicos para quem as espiava e espionava. Agora múltiplos panópticos têm, no centro, velhos líderes embolorados, instituições mofadas e inconformados guardiões do ontem. Mesmo que esses ainda nos vigiem, todos estamos de olho neles, em uma espécie de contravigilância.

Estamos no meio de uma revolução. No centro dela. Não há como saber se maior, mas claramente diferente de todas as outras. Não adianta pensar usando a mesma lógica de sempre. Há uma nova lógica em construção. Novas éticas. E o que vai vir daí? Tentar respostas imediatas é usar modelos de pensamento carcomidos. É preciso estudar, observar e demolir as velhas estruturas rígidas, hoje lívidas e geladas. As novas estruturas serão fluidas, plurais, e estão sendo gestadas hoje, nesse instante, e não sabemos quando estarão ou se estarão prontas um dia. Até porque, de alguma maneira, elas já estão aí, ainda não como formas mas seguramente como devires de governanças. É bom que se compreenda isso e que se levante a poeira de tudo. O quanto antes. Levantar a poeira do tempo e recriar utopias.

Mais do que nunca, novas utopias são necessárias. As antigas, bem ou mal, nos trouxeram até aqui. Para onde vamos vai depender das que conseguiremos fazer nascer.

(texto de 2013)

[rezistență]

Tenho utilizado nos últimos dias todo meu repertório e conhecimento matemático, ou seja, duas ou três das quatro operações elementares já que das outras não me lembro muito bem, para tentar calcular coisas essenciais à nossa existência. Por exemplo, quantas mastigadelas devemos dar quando comemos, quantas a mais deveremos dar se ao invés de comermos pão comermos carne, quantos saltos conseguimos efetuar em uma perna só ouvindo Kula Shaker, quantos beijos é possível dar em quem amamos ao longo da vida, qual a diferença de peso da saudade em dias de chuva ou de sol. Tenho me saído um pouco mal em algumas situações, um pouco melhor em outras.

Outro dia obtive espetacular sucesso ao contabilizar suspiros dados em escritórios e lugares onde gente importante anda engravatada no período entre 17 horas e 17 horas e 58 minutos. Através de observação direta e fazendo, a partir do número absoluto obtido, cálculos bastante complexos e muitíssimo objetivos, cheguei à conclusão: o número de suspiros é proporcional ao número de esperanças desfeitas, elevado à nona potência. Não que isso tenha me assustado, já não sinto arrepios com nada que nos seja visível ou imaginável. Mas me remeteu a outra necessidade de cálculo: quantas formas há de morrer e quantas formas há de nascer? Os resultados são surpreendentes.

Há apenas uma forma de nascer, a clássica: dois alguéns copulam, o espermatozoide fecunda o óvulo e aí já se sabe o resto. Vamos desconsiderar provetas e afins para simplificar, já que não deixa de ser uma corruptela da forma básica. Ok. E para morrer? Quantas formas há de se perder a vida nessa vida? Veja bem: são exatamente três milhões, quatrocentas e dezessete mil, novecentos e nove vírgula zero cinco modos de morrer. O que significa que é mais provável que se esteja morto daqui a 30, 29, 28, 27, 26 segundos do que vivo e saltitante. Três milhões, quatrocentas e dezessete mil, novecentos e nove vírgula zero cinco modos de morrer.

Telefonei a uma amiga e lhe disse esse resultado. Ela respondeu: “vamos beber”. E eu lhe disse que o álcool aumenta o risco de morte e ela respondeu: “o que mais aumenta o risco de morte é estar vivo”. Nos encontramos e acabou que não bebemos tanto assim, já que ficamos a observar as pessoas que passavam. Seus rostos. Seus olhos. Suas bocas. E foi curioso perceber que todas as pessoas espremiam tanto seus olhos que eles, olhos, sumiam. E silenciavam tanto suas bocas que elas sumiam. E faziam tanto esforço para parecerem diferentes, com grandes desenhos e marcas nas roupas, grandes tênis coloridos, tantos cabelos para um lado ou para o outro, para cima ou para baixo, que se tornavam todos absolutamente iguais. Rostos sem rostos.

Nos olhamos, eu e minha amiga, e silenciamos. Compartilhamos em silêncio a epifania de que viver é um permanente risco de morte. Mas morre muito antes quem não consegue perceber que viver é um milagre. Um milagre. Um milagre. Mesmo para quem, como eu, não acredita nessas coisas de milagres