André Gonçalves

Farinhada

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Da memória #1

Todos os dias, por volta das cinco da tarde, ela estacionava seus setenta e poucos anos ali, em frente à loja de discos no Largo do Machado, colocava suas sacolinhas no chão e esperava. Da loja logo soava, bem alto, o Bolero de Ravel, que ela regia, concentrada. Algo em torno de treze minutos depois, uma reverência da maestrina improvável a um público invisível, sacolinhas de novo nas mãos e o andar instável em direção à esquina.

Trinta anos depois ainda não sei bem quem melhor representaria a loucura: a maestrina, o dono da loja de discos, eu, que sempre assistia ao espetáculo ou as pessoas que passavam e achavam aquilo uma coisa de loucos.

Levantando a poeira do tempo

Uma das frases de que mais gostei a respeito das manifestações no Brasil foi: “estamos construindo uma nova governança da espécie”. Infelizmente meu desmemoriamento crônico não me deixa lembrar quem a disse, e peço desculpas. Mas ela cabe exatamente no que penso sobre o momento, ainda vigente. Estamos, não só no Brasil mas em todo o mundo, construindo um novo modo de pensar sobre o que é tudo.
Algumas pessoas tem me dito que é impossível satisfazer todas as demandas e que governo nenhum tem condições de resolver tudo. Claro que não. Mas a questão maior a ser debatida é: que tipo de mundo queremos ter? E essa pergunta engloba muitas coisas.

Que tipo de mundo queremos ter implica em que relações queremos que países e pessoas tenham com o dinheiro, com o capital. Dinheiro. O que é dinheiro, hoje? Que mundo queremos ter implica em que tipo de sociedade desejamos, qual a nossa relação com a diversidade cultural, com o outro, com os diferentes. Que tipo de mundo queremos ter significa o que é ser médico, engenheiro, político, artista, quais os novos compromissos e descompromissos de cada um. Significa o que é liberdade de ir e vir, o que são fronteiras e em que condições pessoas de nacionalidades diversas podem entrar e sair de outros países, seja para fazer turismo, estudar ou exercer uma profissão. Que mundo queremos ter significa que tipo de soberania um país tem sobre ele mesmo e sobre os outros, e como essa noção de soberania se adequa ao resto do mundo. Se é ético ou razoável que presidentes tenham seus aviões proibidos de pousar por que outro desconfia de uma carona a um denunciador de espionagem. Esse mundo que queremos ter, qual é a relação dele com a tecnologia, qual a nova configuração de direitos individuais, como é e o que é sexualidade? Quais os limites para a pobreza? E para a riqueza, qual o limite? Deve haver limite? É ético, sustentável, razoável, dispor de bilhões de dólares na conta bancária e outro dispor de um pedaço de pão dormido? Aliás, o que é sustentabilidade? Quais os limites para se definir o que é e o que não é uma afronta à dignidade humana? Que mundo queremos ter significa como as instituições vão se adaptar à sociedade em rede e na nova identidade do comum e reaprender o que é democracia, o que é participação popular, o que é trabalho, hierarquia, comando, chefia, liberdade. O que é corpo? O que é autonomia? O que é direito? O que é cidadania? E direita e esquerda e centro, o que são? Ainda são?

Quando vemos governantes, aqui e mundo afora, perdidos, sem saber que decisões tomar e aparentemente sem entender as transformações que começaram e já faz algum tempo, percebemos o quanto se distanciaram da(s) sociedade(s). E mantêm uma lógica caduca e empoeirada para tomar decisões que, não, não serão aceitas por todos e não vão impedir protestos e revoltas e, até mesmo, oh!, vandalismo. Vandalismo? Hoje, o que significa “vandalizar”? O Big Brother está invertido. Agora, as pessoas apontam olhos mágicos para quem as espiava e espionava. Agora múltiplos panópticos têm, no centro, velhos líderes embolorados, instituições mofadas e inconformados guardiões do ontem. Mesmo que esses ainda nos vigiem, todos estamos de olho neles, em uma espécie de contravigilância.

Estamos no meio de uma revolução. No centro dela. Não há como saber se maior, mas claramente diferente de todas as outras. Não adianta pensar usando a mesma lógica de sempre. Há uma nova lógica em construção. Novas éticas. E o que vai vir daí? Tentar respostas imediatas é usar modelos de pensamento carcomidos. É preciso estudar, observar e demolir as velhas estruturas rígidas, hoje lívidas e geladas. As novas estruturas serão fluidas, plurais, e estão sendo gestadas hoje, nesse instante, e não sabemos quando estarão ou se estarão prontas um dia. Até porque, de alguma maneira, elas já estão aí, ainda não como formas mas seguramente como devires de governanças. É bom que se compreenda isso e que se levante a poeira de tudo. O quanto antes. Levantar a poeira do tempo e recriar utopias.

Mais do que nunca, novas utopias são necessárias. As antigas, bem ou mal, nos trouxeram até aqui. Para onde vamos vai depender das que conseguiremos fazer nascer.

(texto de 2013)

[rezistență]

Tenho utilizado nos últimos dias todo meu repertório e conhecimento matemático, ou seja, duas ou três das quatro operações elementares já que das outras não me lembro muito bem, para tentar calcular coisas essenciais à nossa existência. Por exemplo, quantas mastigadelas devemos dar quando comemos, quantas a mais deveremos dar se ao invés de comermos pão comermos carne, quantos saltos conseguimos efetuar em uma perna só ouvindo Kula Shaker, quantos beijos é possível dar em quem amamos ao longo da vida, qual a diferença de peso da saudade em dias de chuva ou de sol. Tenho me saído um pouco mal em algumas situações, um pouco melhor em outras.

Outro dia obtive espetacular sucesso ao contabilizar suspiros dados em escritórios e lugares onde gente importante anda engravatada no período entre 17 horas e 17 horas e 58 minutos. Através de observação direta e fazendo, a partir do número absoluto obtido, cálculos bastante complexos e muitíssimo objetivos, cheguei à conclusão: o número de suspiros é proporcional ao número de esperanças desfeitas, elevado à nona potência. Não que isso tenha me assustado, já não sinto arrepios com nada que nos seja visível ou imaginável. Mas me remeteu a outra necessidade de cálculo: quantas formas há de morrer e quantas formas há de nascer? Os resultados são surpreendentes.

Há apenas uma forma de nascer, a clássica: dois alguéns copulam, o espermatozoide fecunda o óvulo e aí já se sabe o resto. Vamos desconsiderar provetas e afins para simplificar, já que não deixa de ser uma corruptela da forma básica. Ok. E para morrer? Quantas formas há de se perder a vida nessa vida? Veja bem: são exatamente três milhões, quatrocentas e dezessete mil, novecentos e nove vírgula zero cinco modos de morrer. O que significa que é mais provável que se esteja morto daqui a 30, 29, 28, 27, 26 segundos do que vivo e saltitante. Três milhões, quatrocentas e dezessete mil, novecentos e nove vírgula zero cinco modos de morrer.

Telefonei a uma amiga e lhe disse esse resultado. Ela respondeu: “vamos beber”. E eu lhe disse que o álcool aumenta o risco de morte e ela respondeu: “o que mais aumenta o risco de morte é estar vivo”. Nos encontramos e acabou que não bebemos tanto assim, já que ficamos a observar as pessoas que passavam. Seus rostos. Seus olhos. Suas bocas. E foi curioso perceber que todas as pessoas espremiam tanto seus olhos que eles, olhos, sumiam. E silenciavam tanto suas bocas que elas sumiam. E faziam tanto esforço para parecerem diferentes, com grandes desenhos e marcas nas roupas, grandes tênis coloridos, tantos cabelos para um lado ou para o outro, para cima ou para baixo, que se tornavam todos absolutamente iguais. Rostos sem rostos.

Nos olhamos, eu e minha amiga, e silenciamos. Compartilhamos em silêncio a epifania de que viver é um permanente risco de morte. Mas morre muito antes quem não consegue perceber que viver é um milagre. Um milagre. Um milagre. Mesmo para quem, como eu, não acredita nessas coisas de milagres

II (carta #154 para Beatriz)

Beatriz, meu pai está morto. Foi no último fim de semana. Morto no sábado, sepultado no domingo. De certo modo estava morto já há muito mas não sabia, ou, se sabia, não tinha coragem de cair. Vai ver por isso se segurava na garrafa, talvez a garrafa fosse sua vara de equilíbrio, como aquela que um equilibrista carrega quando caminha sobre a corda bamba. Há muito, Beatriz, eu sabia que meu pai não estava exatamente vivo. Várias vezes vi nos olhos dele que a luz, sabe, aquela luz que a gente vê nos olhos das pessoas, estava apagada. Para ser honesto nunca vi nos olhos do pai qualquer sinal de vida. Você lembra do olhar dele, era oco, você me disse uma vez que sentiu medo na primeira vez que olhou nos olhos de meu pai, que eram olhos de vidro, um vidro opaco, sem reflexo do que estava fora nem sinal de que havia um algo dentro, você disse que ele olhava você como se os olhos dele faltassem nas órbitas, eu lembro bem do seu jeito assustado ao me dizer isso.
Pois agora, Beatriz, meu pai está mesmo morto. Além de não terem luz, agora os olhos do pai estão fechados e nunca mais vão abrir. E eu não sinto nada, Beatriz. Não sinto dor nem sofro. Mas também não sinto alegria. Não sinto vontade de chorar, não sinto saudades, não sinto raiva, não sinto nada. E fico pensando se isso é algo de ruim, a gente aprende que é preciso sentir dor na morte, o papel que se espera que a gente represente na morte é o de sofrimento. Mas eu não sinto nada, Beatriz. Nada. Talvez seja porque, como meu pai me disse, eu não seja ninguém e, assim sendo, ou sendo que eu não sou alguém, não tenho como sentir nada.
Sei que isso não deve lhe interessar, que para você tanto faz, sei que se para mim ele não faz falta muito menos para você, já que nunca se deram bem. Mas achei que devia lhe contar.
Espero que esteja bem. Saudades.

Dissonance

A mãe de Rita Hayworth disse um dia que ela podia morar em qualquer lugar do mundo, menos parrí. E é por isso que, sempre que o mundo deixa seu coraçãozinho encharcado, ela vai para parrí, morar viver sentir sorrir voar andar correr dançar dançar dançar.  A mãe de Rita Hayworth também disse que ela podia escolher qualquer profissão, menos a profissão de sonhar. E não é bem por isso, mas sonhar é o que sempre deixa Rita Hayworth em pé como quase todo mundo e com a cabeça nas nuvens como só ela. Aliás, é em parrí que ela roça os cabelos na lua e sonha como em nenhum outro lugar, e é no alto da mais feia das torres, negra e fria, que Rita Hayworth se encontra neste momento, respirando o mais puro dos ares. Rita Hayworth domina parrí com o olhar, e com um leve sorriso abre os braços, dá dois passinhos para frente e, contra toda a vertigem do mundo, está à beira de seu próprio abismo. Quem vê de baixo não compreende bem o que faz aquela silhueta balançando balançando balançando sem que se tenha a certeza de que vai se manter em pé ou mergulhar mergulhar mergulhar até que o mundo inteiro seja apenas cimento frio machucando a pele. Nos fones imaginários de Rita Hayworth toca uma valsa, uma valsa para a Lua, e Rita Hayworth segue balançando balançando balançando enquanto parrí gira, gira, gira, gira. A valsa de Rita Hayworth dura sete dias e, dizem, durante este tempo foi ouvida por milhares de pessoas em todo o hexágono, até que se faz silêncio e ela, como se viver fosse a coisa mais normal do mundo, dá dois passos para trás, fecha seu casaco, olha para o céu que é logo ali em cima e agradece com um suspiro. O caminho de casa é longo. Mas com o coração mais leve fica bem mais fácil caminhar.