Uma das frases de que mais gostei a respeito das manifestações no Brasil foi: “estamos construindo uma nova governança da espécie”. Infelizmente meu desmemoriamento crônico não me deixa lembrar quem a disse, e peço desculpas. Mas ela cabe exatamente no que penso sobre o momento, ainda vigente. Estamos, não só no Brasil mas em todo o mundo, construindo um novo modo de pensar sobre o que é tudo.
Algumas pessoas tem me dito que é impossível satisfazer todas as demandas e que governo nenhum tem condições de resolver tudo. Claro que não. Mas a questão maior a ser debatida é: que tipo de mundo queremos ter? E essa pergunta engloba muitas coisas.
Que tipo de mundo queremos ter implica em que relações queremos que países e pessoas tenham com o dinheiro, com o capital. Dinheiro. O que é dinheiro, hoje? Que mundo queremos ter implica em que tipo de sociedade desejamos, qual a nossa relação com a diversidade cultural, com o outro, com os diferentes. Que tipo de mundo queremos ter significa o que é ser médico, engenheiro, político, artista, quais os novos compromissos e descompromissos de cada um. Significa o que é liberdade de ir e vir, o que são fronteiras e em que condições pessoas de nacionalidades diversas podem entrar e sair de outros países, seja para fazer turismo, estudar ou exercer uma profissão. Que mundo queremos ter significa que tipo de soberania um país tem sobre ele mesmo e sobre os outros, e como essa noção de soberania se adequa ao resto do mundo. Se é ético ou razoável que presidentes tenham seus aviões proibidos de pousar por que outro desconfia de uma carona a um denunciador de espionagem. Esse mundo que queremos ter, qual é a relação dele com a tecnologia, qual a nova configuração de direitos individuais, como é e o que é sexualidade? Quais os limites para a pobreza? E para a riqueza, qual o limite? Deve haver limite? É ético, sustentável, razoável, dispor de bilhões de dólares na conta bancária e outro dispor de um pedaço de pão dormido? Aliás, o que é sustentabilidade? Quais os limites para se definir o que é e o que não é uma afronta à dignidade humana? Que mundo queremos ter significa como as instituições vão se adaptar à sociedade em rede e na nova identidade do comum e reaprender o que é democracia, o que é participação popular, o que é trabalho, hierarquia, comando, chefia, liberdade. O que é corpo? O que é autonomia? O que é direito? O que é cidadania? E direita e esquerda e centro, o que são? Ainda são?
Quando vemos governantes, aqui e mundo afora, perdidos, sem saber que decisões tomar e aparentemente sem entender as transformações que começaram e já faz algum tempo, percebemos o quanto se distanciaram da(s) sociedade(s). E mantêm uma lógica caduca e empoeirada para tomar decisões que, não, não serão aceitas por todos e não vão impedir protestos e revoltas e, até mesmo, oh!, vandalismo. Vandalismo? Hoje, o que significa “vandalizar”? O Big Brother está invertido. Agora, as pessoas apontam olhos mágicos para quem as espiava e espionava. Agora múltiplos panópticos têm, no centro, velhos líderes embolorados, instituições mofadas e inconformados guardiões do ontem. Mesmo que esses ainda nos vigiem, todos estamos de olho neles, em uma espécie de contravigilância.
Estamos no meio de uma revolução. No centro dela. Não há como saber se maior, mas claramente diferente de todas as outras. Não adianta pensar usando a mesma lógica de sempre. Há uma nova lógica em construção. Novas éticas. E o que vai vir daí? Tentar respostas imediatas é usar modelos de pensamento carcomidos. É preciso estudar, observar e demolir as velhas estruturas rígidas, hoje lívidas e geladas. As novas estruturas serão fluidas, plurais, e estão sendo gestadas hoje, nesse instante, e não sabemos quando estarão ou se estarão prontas um dia. Até porque, de alguma maneira, elas já estão aí, ainda não como formas mas seguramente como devires de governanças. É bom que se compreenda isso e que se levante a poeira de tudo. O quanto antes. Levantar a poeira do tempo e recriar utopias.
Mais do que nunca, novas utopias são necessárias. As antigas, bem ou mal, nos trouxeram até aqui. Para onde vamos vai depender das que conseguiremos fazer nascer.
(texto de 2013)