pela mesma janela da qual vejo viktor nu de costas para a praça e olhando para o rio vejo que chove, em verdade já choveu e o vidro da janela está molhado, e toda vez que vejo o vidro da janela molhado penso que ainda vejo a luz do poste iluminando de amarelo o calçamento molhado da rua, sinto o frio do vidro molhado congelando a ponta do meu nariz, mas é claro que é um exagero, nunca fez tanto frio assim nessa cidade a ponto de congelar narizes colados nos vidros das janelas, é que lembranças são feitas de material semelhante aos sonhos e nunca se sabe o que é uma coisa, o que é outra, há quem viva sonhando ou se recordando de algo, de alguém, de algum lugar, sendo que nunca o soube, o viu ou lá esteve, há quem recorde de coisas nunca vividas na vida chamada por muitos de real e, talvez, foram vividas em sonhos, e não sei se você sabe mas ninguém se lembra do início ou do fim de um sonho, é sempre assim, ali se está, não há prólogo nem epílogo, nos sonhos não existe diretor de continuidade como nos filmes, são cortes secos, e você está aqui e logo está ali, você pula de um set de filmagem para outro e não há roteiro, não existem roteiristas de sonho, se existissem deveriam ser muito bem remunerados, mas não há, assim como não há narrador e os efeitos especiais são perfeitos, tudo pode, é possível voar, é possível perguntar as horas aos animais e eles responderem, é perfeitamente normal beber vinho sentado à mesa com ursos polares ou ir de tegucigalpa a helsinque apenas dobrando uma esquina ou entrando em um armário amarelo, ou pilotar um monomotor da força aérea britânica dos anos 1930, o difícil é saber de onde vêm os sonhos e para onde vão e por que desaparecem em segundos mal abrimos os olhos, ainda não há respostas, talvez nunca as haja, mas há, sim, gente que sonha acordada, mas não se pode afirmar que sejam mesmo sonhos ou que sejam delírios, ambos habitam a mesma casa mas em quartos diferentes, veja que isso foi uma metáfora, e não sei se foi sonho ou lembrança a sensação de que meu nariz congelava colado ao vidro da janela enquanto chovia lá fora, lembro que chovia também nos meus olhos, nessa idade eu pensava que lágrimas eram chuva que saía de dentro da gente, lembro da luz amarela do poste iluminando o calçamento molhado, não mais existem as luzes amarelas, agora todas são brancas, acinzentadas, despidas de calor, lembro que meus olhos choviam e eu sentia medo, eu sozinho no meio da noite, era uma casa grande uma sala grande um sofá grande uma janela grande, como são grandes as casas quando somos assim miúdos, depois tudo fica pequeno quando estamos adultos e começamos a pagar contas, é o começar a pagar contas que marca nossa maioridade, mas ainda eu era miúdo, e era noite, muito noite, muitíssimo noite e eu ali, sem A mãe, nariz congelando grudado no frio vidro da janela, e talvez eu tenha dormido com o nariz grudado no frio vidro da janela enquanto esperava A mãe, que nunca chegava, mas a uma altura, quando olhei de novo, não via mais o poste de luz amarela iluminando o calçamento molhado, A mãe me tinha no colo e A mãe falava baixinho algo que eu não entendia, e meu nariz já estava quentinho e eu via a casa balançando porque A mãe me balançava, quase me sentia bêbado, não que eu bebesse algo alcóolico à época, logo está que seria um crime, está até no código penal, não se dá álcool a pessoas ainda miúdas, mas hoje sinto que era torpor semelhante ao pré-sono dos bêbados, mas era bom, sinto falta desse balanço, mas eu então logo já estava enrolado em uma pele de onça e olhei A mãe e dormi, e naquela noite vi A mãe pela última vez, porque depois nunca mais vi A mãe, vida afora vi outra mulher aqui e ali vez ou outra, talvez fosse a mãe de outros filhos, a mãe de alguém que não era eu, e procurei depois por muito tempo ou nem tanto mas A mãe nunca mais encontrei, é disso que lembro quando vejo que choveu e ficou molhado o vidro da janela, mas sem nenhuma certeza se é sonho ou lembrança, já que faz muito tempo, foi antes da stimmung, antes dos calças-pretas, antes de toda essa merda que nos obriga a ficar dia após dia olhando pela janela a enorme bunda nua de viktor para termos algum fiapo de certeza de que tudo segue relativamente tranquilo, apesar de tranquilo não ser a palavra mais adequada para os dias que vivemos ou, ao menos, teimamos, que viver é outra coisa, ora se não é.
do dia que há de ser
hoje não é dia
de dar com a cara
no muro
de morder as paredes
de perder as unhas raspando
o piso de cimento
de queimar as retinas
nos quatro sóis
de ralar a bunda no asfalto
mole
não é dia de romper o braço
na disputa com a palavra bruta
cada dia mais
bruta
mais bruta
e mais
o medo
nos protege
medo
é outro nome para
coragem
há de se ter coragem para ter
medo
ou a covardia
nos desaba em
medo
hoje, não é dia
quando será?
quando, será
quando.
Crescer
era um menino
que contava estrelas
amanhecia o dia
guardava as estrelas
no bolso traseiro esquerdo
nos dianteiros
pirulitos zorro de morango jujubas amendoim torrado pipoca doce
ploc de hortelã figurinha de jogador de futebol garrafa de grapette
medalha de segundo lugar patuá
um sorriso
uma camisa dez azul
bala chita
dois lápis um com a ponta quebrada borracha azul e rosa
uma marta rocha
dois quase afogamentos
um gol de bicicleta
dente de leite
brigadeiros, amassados
um monstro peludo sorridente
um chimpanzé
três índios de forte apache um corneteiro da cavalaria yankee
um foguete
as perguntas
juca chaves
cheiro de flamboyants
e um chico
um dia
as estrelas explodiram
no bolso traseiro esquerdo
e o menino
desolado
ficou adulto
vestiu calças compridas
e arrumou um emprego
Faca
passa um pouco
das cinco e a
faca
que eu trazia
entredentes
está dissolvida
na saliva
que despejo na pia
Para estar vivo
é preciso um pouco
de sorte
um tanto de morte
circulando nas veias
para estar vivo
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