Desde a universidade, a designer de estampas Juliana Glenda Santos, 24 anos, aderiu a compra de roupas de brechós. Teve a iniciativa por questões econômicas, como também pelo seu conhecimento sobre o processo de produção de roupas. “Meu primeiro vestido de brechó foi 10 ou 15 reais. E foi o maior investimento da minha vida! Passei toda a minha graduação usando ele, fiquei até triste em ter que doá-lo. Mas aí pensei: se eu não usar, tenho que passar para frente”, conta a graduada em Moda pela Universidade Federal do Piauí (UFPI).
A ideia de aderir ao uso de peças de segunda mão e dar um ciclo maior de vida para as roupas que usa teve influência na formação acadêmica de Juliana. “Em toda pesquisa procuro trabalhar com sustentabilidade. No sétimo período do curso, abri um brechó. Depois comecei a trabalhar em um brechó de luxo em Teresina”, conta. Assim aconteceu também com Bárbara Pontes, 27 anos, graduanda do mesmo curso. Ela está acostumada a “herdar” roupas de familiares e amigas desde a infância, assim, usar roupa de segunda mão nunca foi um problema. Para Bárbara, o uso de peças de brechó inspirou até seu Trabalho de Conclusão de Curso. “Minha pesquisa fala sobre moda sustentável e os brechós. Pesquisei o surgimento e crescimento rápido dos brechós de luxo e sobre o consumo nos mesmos, com recorte na cidade de Teresina”, diz.
A criação de espaços para venda de produtos usados surge na Europa, na década de 1860. Na França, roupas eram comercializadas em mercados com pouca higiene e infestado de pulgas. Daí originou-se o Mercado das Pulgas, na tradução do francês “Marché aux puces”, onde hoje se encontram antiguidades e peças vintages exclusivas. No Brasil, esses locais também datam do século XIX. A nomenclatura “brechó” surgiu em função do nome da primeira loja de roupas usadas do Rio de Janeiro, “Casa de Belchior”. As pessoas foram adaptando o nome do comerciante português para algo mais fácil de pronunciar, daí nasceu o brechó.
O mercado de roupas de brechó cresceu mais de 48% no Brasil em dois anos. Ajudam a explicar o crescimento: situação de crise econômica, busca de alternativas de consumo e incremento das vendas online.
Dados do SEBRAE (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas) apontam que entre 2020 e 2021 o mercado de roupas de segunda mão cresceu mais de 48% no país. Ajudam a explicar esse crescimento a situação de crise econômica e busca de alternativas de consumo, o incremento das vendas online durante a pandemia, gerando novos negócios, e ainda a ideia de crescimento de startups que incentivam a prática do desapego. Em sua pesquisa, Bárbara constatou que, em Teresina, há um crescimento no segmento de brechós online, embora a pesquisa não tenha dados quantitativos. “Vejo esse crescimento de brechós em Teresina como positivo, mesmo que a motivação inicial não o seja. Infelizmente as pessoas não consomem peças de segunda mão pensando em um consumo consciente, mas, de qualquer forma, acaba sendo algo benéfico”, explica, apontando também a existência de um preconceito com peças de segunda mão.
Nesse cenário é preciso desmistificar a condição de roupa usada para que seu ciclo de vida continue. Juliana Glenda verifica que ainda há resistências na compra de roupas de segunda mão, especialmente entre consumidores de mais idade. No entanto, ela aponta que entre o público de 16 a 40 anos, usar roupas de brechó já é uma prática. A designer de estampa acrescenta que, hoje, as lojas são muito organizadas e todos os produtos, bem cuidados. Não há a procura só por peças baratas, mas também vintages e únicas.
Entre os chamados bazares de luxo, há ainda tendências que se verificam, como conta Bárbara: “Estamos vendo bazares feitos por pessoas da mídia, como atrizes e influencers, e isso ajuda a quebrar preconceitos com roupas usadas, mesmo sabendo que essas iniciativas não tenham esse intuito na sua criação nem por parte da maioria dos consumidores”.
Moda, consumismo e meio ambiente
Quando bate a vontade de renovar o guarda-roupa e adquirir peças novas, pode vir a pergunta: “Eu preciso mesmo disso?” Apelos de propaganda promovem a ideia de que “é preciso estar na moda”, além de promoções que podem ser tentadoras: Compre em x parcelas sem juros. Esses são estímulos frequentes nos meios de comunicação que ajudam a movimentar toda uma cadeia produtiva importante.
Mas o que seria Moda Consciente? O termo surgiu junto a outro: “Slow fashion” – que aparece por volta de 2004, em Londres, a partir de um artigo de Angela Murrills, escritora de moda, e se torna conhecido ao ser adotado em blogs de moda e textos na internet. Ele tem inspiração no conceito de “slow food”, originado na Itália nos anos 1990. Ao adaptar algumas ideias para o mundo da moda, o slow fashion defende a moda com menor impacto ao meio ambiente, com atenção a produtos reutilizáveis, uso de materiais biodegradáveis, valorização do produto e do profissional da confecção.
O slow fashion defende a moda com menor impacto ao meio ambiente, atenção a produtos reutilizáveis, uso de materiais biodegradáveis, valorização do produto e do profissional da confecção.
Dados de pesquisa da plataforma Cupom Válido (portal de cupons de desconto) apontam que o Brasil é o 9º país que mais consome roupas e acessórios no mundo. Na pesquisa foi analisado o comportamento de consumidores de 195 países. A professora Célia Santos, do curso de Moda da UFPI, que pesquisa sobre meio ambiente e interfaces com a moda, diz que esse dado é reflexo do modelo capitalista e que o alto consumo de moda gera impactos ambientais, chamando a atenção para outros pontos: “Tudo virou mercadoria e, com isso, o importante é manter a alta margem de lucro. Por isso a precarização do trabalho, perda de direitos trabalhistas, destruição de insumos naturais e consumo elevado de água.”
Pesquisa da Organização Akatu, que promove o consumo consciente, aponta que as lojas com maiores volumes de vendas no Brasil são as grandes fast fashion, mais conhecidas como lojas de departamento. Algumas delas enfrentam denúncias sobre condições de trabalho, poluição e consumo de recursos naturais, como a água. Segundo a Akatu, em média, se gasta 2.700 litros de água na fabricação de uma camisa de algodão. Em uma calça jeans gasta-se 5.196 litros de água, o que equivale ao consumo de cerca de 70 dias em uma residência.
Célia Santos diz que, para estimular uma produção reversa, há estudos que fortalecem a fabricação de artefatos a partir de resíduos. “Isto pode acontecer em todas as áreas, não apenas na moda. Trata-se do uso da técnica de upcycling, que significa a reutilização de produtos pós-consumo e/ou resíduos pré-consumo. O objetivo é fabricar um produto de valor, com menor custo de insumos – matéria-prima, energia, horas de trabalho e equipamentos”, explica.
A pesquisadora informa que a técnica teve origem na Europa em 1994, a partir do ambientalista Reine Pilz, e foi difundida com a ideia de criar e reciclar ilimitadamente. “É uma técnica de circularidade dos materiais para a fabricação de novos produtos. Faz parte da Economia Circular.” Segundo a docente, para o setor do vestuário, o upcycling funciona com reaproveitamento das sobras/aparas de tecidos oriundos das modelagens das peças, os resíduos pré-consumo, como também por meio de roupas obsoletas, que são resíduos pós-consumo. “Esse novo modo de produzir, sobretudo no Brasil, é incipiente, mas de grande valor, já que minimiza a extração de novas matérias-primas, reduz o consumo d’água, de energia elétrica, a geração de poluentes, bem como ainda reduz o volume nos aterros sanitários”, explica. Para ela, essa maneira de produzir resultará em uma moda mais sustentável. “O desenvolvimento sustentável é um processo, mas já estamos no caminho”, afirma.
Para que a cadeia da moda consciente siga firme é preciso desacelerar uma produção que gira em velocidade máxima. “O consumo consciente inclui mudança nos valores” – Célia Santos, professora de Moda.
Alguns consumidores já demonstram atenção aos conceitos “sustentável” e “moda consciente”. Juliana Glenda destaca que algumas marcas divulgam o conceito de sustentável também pensando em vendas. “Quando o tema é sustentabilidade, as empresas estão sabendo que elas têm que se virar. A marca Levis fez uma campanha para trocar calças velhas e com algum problema por outra peça nova. É uma forma de circular a pauta da sustentabilidade no mercado e a marca continuar relevante”, diz a designer. “Mas a gente sofre muito com as marcas gringas. Muitas fazem campanhas que ignoram o verde, a ideia de salvar o planeta”.
Ela lembra que há, sim, marcas que produzem tecidos reutilizáveis, com fios de peças que iriam para o lixo e ganham nova composição criativa. Porém afirma que grande parte continua a usar produtos que agridem o meio ambiente e aponta como um caminho, estimular o próprio consumidor a ter peças com tecidos eco-friendly, ou seja, ecologicamente corretos.
Para que a cadeia da moda consciente siga firme é preciso desacelerar uma produção que gira em velocidade máxima. “O consumo consciente vai muito além de consumir em brechós”, argumenta Célia Santos. “Inclui uma mudança nos valores, que ultrapassa a aquisição de bens de consumo. É preciso ter consciência ecológica, repensar a própria maneira de utilizar recursos naturais, como água e energia – e em qualquer ambiente, seja privado ou público. É uma nova forma de estar no mundo, um novo comportamento, uma busca por produtos e serviços ecologicamente corretos. Mas, para isso, é importante saber como tal produto ou serviço é manufaturado, produzido”.
A professora recomenda consumir peças fabricadas com matérias-primas renováveis, biodegradáveis, com menor impacto ambiental. E alerta que os consumidores devem estar atentos à postura das marcas, como os produtos são adquiridos, se exploram funcionários. “Em geral, peças muito baratas, trabalham com esse tipo de produto, ecologicamente incorreto”, adverte.
O Fashion Revolution é um movimento criado para denunciar marcas globais que utilizam trabalhadores em condições análogas à escravidão. Peças muito baratas, muitas vezes, trabalham assim.
O Fashion Revolution é um movimento global de conscientização que propõe uma indústria da moda limpa, segura, justa, transparente e responsável. Ele foi criado após o desabamento do Edifício Rana Plaza em Blangadesh, em 24 de abril de 2013, que ocasionou a morte de 1.134 trabalhadores da indústria da moda e deixou mais de 2.500 profissionais feridos. Eles trabalhavam para marcas globais em condições análogas à escravidão.
Há iniciativas de Fashion Revolution em mais de 100 países. No Brasil, o movimento teve início em 2014 e tem promovido, anualmente, a Semana Fashion Revolution, com rodas de conversas, aulas e exibição de filmes, com o intuito de estabelecer uma agenda de mudança de comportamento de consumo da moda. A campanha #Quemfazminhasroupas é uma das ações do movimento. Ele realizou ações de conscientização em Teresina a partir de 2016, estimulando a compra de produtos de brechós, realizando bazar com troca de roupas, rodas de conversas sobre economia criativa, uso de artesanato e produção de moda local.
O professor de Moda Manuel Teles (UFPI) é representante voluntário do Fashion Revolution em Teresina. Ele diz que a ideia é trazer debates que estimulem mudança de comportamento em consumidores, indústria e produtores de moda. “Todas as ações têm caráter educacional”, afirma, complementando que a articulação do movimento é feita por diversos atores sociais, marcas, prestadores de serviços e público acadêmico. As ações buscam estimular a pesquisa e o desenvolvimento sustentável na indústria da moda.
Parafraseando Belchior, o passado pode ser uma roupa que não nos serve mais. Assim, é preciso pensar num futuro com consumo cíclico e duradouro. “Acredito que o consumo de moda será mais consciente quando tivermos mais educação e mais fiscalização”, conclui Bárbara.
***
Revestrés#52