capital piauiense nasceu em uma região escolhida a dedo. Os governantes queriam transferir a província para um ponto estratégico que beneficiasse a economia da época, baseada na agricultura, e que facilitasse a comunicação com outros centros comerciais importantes. A mudança foi milimetricamente calculada. O presidente da província, José Antônio Saraiva, escolheu uma região entre dois rios, Parnaíba e Poti. Ele queria projetar uma nova cidade, desde a sua planta e a disposição dos prédios e monumentos. As ruas e os espaços foram geometricamente desenhados, e sua construção seguiu passo a passo o disposto no que ficou conhecido de “Plano Saraiva”. E, então, em 16 de agosto de 1852, surgiu Teresina, a primeira capital planejada do país. 

Igreja São Benedito | Foto: Maurício Pokemon

Teresina teve, desde o início, seu desenvolvimento atrelado à modernidade. Havia uma necessidade e um cuidado especial para que a capital alcançasse progresso e grande crescimento. A urbanização da cidade também era de interesse de seus governantes. A construção urbana não levava em conta apenas a questão técnica, mas também a estética. Era preciso que os prédios, monumentos e praças fossem belos. Entretanto, ao longo dos anos, o centro em que se localizava a cidade não comportava mais toda a população. Teresina extrapolava o seu tamanho para além do previsto no seu traçado urbano e começava a se expandir para outras direções e incorporar regiões ao redor que já estavam sendo ocupadas. 

Mas o que foi feito dessa parte da cidade que surgiu tão bela e imponente? Para entender essas transformações, Revestrés percorreu a região inicial da cidade, conversou com poetas, cronistas, historiadores e arquitetos e fez uma imersão no passado de ruas, prédios, igrejas e praças. 

 

No começo era o verbo 

As cidades são representações. Um ensaio contínuo de inventividades humanas. Cada ponto fala muito sobre nós. Está tudo ali, silenciosamente entrelaçado, numa relação de causa e efeito entre o que surgiu, o que foi e o que há de vir. É possível narrar grandes histórias apenas investigando o que existe por entre ruas, prédios e praças atravessadas de sentidos. Se você quer saber um pouco mais sobre um sujeito, procure saber de qual cidade ele veio. 

Volta e meia me vejo em uma esquina qualquer tentando entender o espaço que nasci e reinventei para mim. Criada sob a ótica da cidade-menina, Teresina é apenas dó e sol, como disse certa vez a poeta Laís Romero? Nenhuma outra nota dá? O que de fato perpassa os caminhos traçados por cima desse tabuleiro de xadrez onde as peças agora são jogadas desordenadamente? O que tanto é meu? O que é resquício de outra época? Tenho mais de mim ou da cidade que envelheço? Para saber, é preciso observar ao redor. É fundamental voltar ao ponto de partida para entender como de fato nasce uma cidade. O lugar onde tudo começou diz muito sobre o que é o agora. Deve-se marcar o caminho ao nos aprofundarmos pelos pontos principais nos primeiros cem anos da cidade, para que não fiquemos confusos ao voltar para o presente. 

 

Praça Rio Branco | Foto: Maurício Pokemon

Nascida para ser a capital da província do Piauí e criada para a modernização, Teresina surge em 16 de agosto de 1852 como sendo a primeira capital planejada do Brasil. Como um tabuleiro de xadrez, o plano da cidade foi elaborado em linhas retas, rigidamente geométrico, erguido na beira do cais do Rio Parnaíba e que obedece a um padrão europeu de construção. O aspecto econômico foi um dos fatores principais para a mudança da capital de Oeiras para Teresina. José Antônio Saraiva, então presidente da província, escolheu a região sob o argumento de que as novas terras seriam férteis para a agricultura e que a sua localização iria facilitar a comunicação com outros centros. 

Planejar e modernizar eram os verbos da vez. Existiam fortes e grandes pretensões para o destino da nova capital piauiense. “A elite política e intelectual que residia na cidade construiu um discurso de modernização”, verifica o historiador Alcides do Nascimento. Os discursos traduziam a ideia de progresso. A implantação, nos primeiros anos do século XX, de água encanada, telefone, energia elétrica e bonde com motor de explosão demarcou os avanços. Além da construção e urbanização de praças, edificação de equipamentos urbanos, implantação de redes urbanas. A cidade se expandia a partir do centro, limitado pelo contorno da linha férrea. Até extrapolar sua densidade. 

Em 1940, a área central urbana da capital piauiense estava integralmente ocupada, pouco antes do seu centenário. Dali em diante, o jogo avançava concomitantemente para a zona sul na direção da atual avenida Joaquim Ribeiro e zona norte, com a incorporação das áreas que originaram os bairros Matinha e Mafuá. Mas a cidade, que ainda nos seus primeiros anos teria uma vocação urbana, foi se desenvolvendo com uma forte ligação com o meio rural. Na primeira década do século XX, era visível o contraste. “A cidade pequena, acanhada, tinha um núcleo central bem organizado, seguindo aquelas linhas que foram propostas. Mas o entorno dela foi construído com habitações muito precárias. A maioria absoluta era de casas de palha”, explica o historiador.  

A cidade foi crescendo para todos os lados e incorporando os lugares já existentes, extrapolando as quadras e os traços projetados no Plano Saraiva. Mudanças foram feitas ao longo dos anos, de acordo com as necessidades, como todas as cidades habitadas. Aqui, destacam-se: alargamento de ruas e avenidas, arborização de espaços, extensão de novas áreas e reordenamento da rede de distribuição dos serviços essenciais. Todas obedecendo preceitos definidos, conforme assegura a arquiteta e urbanista Ângela Braz: “Os primeiros cem anos de Teresina foram regidos por três princípios básicos: a questão da salubridade; a preocupação com a circulação, elemento importante para a modernização das cidades, e a questão estética – era importante ser belo, a beleza tinha uma certa relação com a salubridade urbana”. 

Como representação inicial, foram construídos pontos de referência do poder, além de um local para atividade comercial, nos arredores da primeira praça, Marechal Deodoro, conhecida hoje como Praça da Bandeira. Ao redor, tem-se o primeiro templo religioso, a Igreja Nossa Senhora do Amparo. Do outro lado, o prédio ocupado hoje pelo Museu do Piauí, que antes já serviu de sede do Governo e também foi sede do Poder Judiciário. Do outro, onde é o Palácio da Cidade, foi a Câmara dos Vereadores. Três pontos principais de demarcação de uma cidade – o poder religioso, judiciário e legislativo. Acrescido a esses pontos, temos o Mercado São José (1860), conhecido como Mercado Velho, encaixando-se com a anseio de pôr em prática uma cidade em movimento. 

É possível observar outras representações arquitetônicas e sociais da cidade: as praças, os prédios e monumentos, e as igrejas – a maioria das edificações erguidas nos primeiros cem anos. Construções valorosas para as histórias de todas as épocas da capital. 

 

Museu do Piauí | Foto: Maurício Pokemon

Nascem lugares, surgem sentidos 

Se as cidades refletem as práticas de seus moradores, estes, por sua vez, dão sentido às figuras de concreto erguidas e derrubadas, dia após dia. Uma relação intensa e mútua de troca de energia. As lembranças dão conta que grande parte das vivências na Cidade Verde se passa nas praças, “sempre tão cheias de gente, tornando-se um centro de reunião obrigatória para quem quer participar da vida na cidade, o lugar que se faz a crônica viva dos acontecimentos cotidianos, ponto de encontros e discussões, comentários e mexericos”, como registrou o poeta H. Dobal em seu Roteiro Sentimental e Pitoresco de Teresina (1952).  

Cada uma representava um tipo de encontro. “Lá no começo do século XX, a praça Rio Branco foi organizada para ser um lugar de sociabilidade. Era ali que os desfiles de carnaval aconteciam”, conta Alcides. O coreto existente no local era também utilizado para realização de discursos, declamação de poesias e, aos domingos, servia de encontro pós missa. Em um período, também foi o jardim público da cidade. “Em algum momento ali foi chamado de Passeio Público. Além de que, quando a iluminação foi posta, sempre havia alguma novidade durante a noite”, acrescenta o historiador. 

Apesar disso, o espaço noturno era mais praticado na Praça Pedro II, identificada por Dobal como “a praça dos namoricos”. “Ali, depois do processo de urbanização na década de 1930, transformou-se em um lugar de ajuntamento de pessoas para ir a uma das duas casas de cinema, ao Theatro 4 de Setembro, principalmente devido aos bares e clubes no entorno”, relembra Alcides, fazendo referência também ao Clube dos Diários. Os mesmos rapazes ou a maioria desses, após os encontros furtivos nas praças, estendiam o passeio para depois do toque de recolher das nove horas da noite. Iam em comboio para os clubes de pomposas festas e também para os cabarés da Rua Paissandu, cheios de música e luxúria. 

Enquanto os jovens arranjavam-se em encontros noturnos, revelando hábitos de uma cidade que já nasceu velha e que sempre teve o ar de uma grande aldeia, as crianças brincavam durante o dia no playground, ocupando o tempo e os caminhos da Praça João Luís Ferreira. 

Os templos religiosos que existiam no entorno das praças serviam para os teresinenses explicarem onde moravam, se perto da Igreja do Nossa Senhora do Amparo, Nossa Senhora das Dores ou São Benedito. Os pontos de referência eram certeiros e não deixavam margem para dúvidas. Os novenários que aconteciam atraiam a população, acompanhados das quermesses. Na vida da cidade, era de praxe a missa completar o domingo. 

Tudo servia de dedo de prosa. A cidade deixava um pouco de essência para cada um que atravessava esquinas e transitava os espaços tranquilamente, principalmente escritores e boêmios. Uma cidade a plenos pulmões poéticos, onde os bares se multiplicavam sobre o traçado, fortalecendo os encontros, hoje convertidos em risco de memórias ambulantes que a qualquer momento podem desaparecer. 

(Reportagem publicada na Revestrés#37 – agosto-setembro de 2018)

Ajude Revestrés a continuar produzindo jornalismo independente. Contribua conosco no Catarse. A partir de R$ 10,00 (dez reais) você já nos ajuda muito. Acessecatarse.me/apoierevestres