Foto Marcelo Cardoso

Foto Marcelo Cardoso

Nascida e criada na Fazenda Algodões, onde hoje se localiza a área entre os municípios de Nazaré do Piauí e Floriano, Esperança Garcia trazia consigo a força e resistência características da mulher negra. Resistência e esperança, substantivos que, por muito se confundem, e ressignificam um ao outro. Mesmo presa a um contexto social e histórico que lhe oprimia, foi por resistir e acreditar, que Esperança Garcia fez-se verbo e marcou a história, tornando-se ícone da luta negra no Brasil.

Sonhadora indomável, a escrava aprendeu a ler e escrever com os jesuítas que administravam a fazenda onde cresceu, algo proibido      época. Em um período em que até mesmo “mulheres livres”, vítimas de uma sociedade patriarcal implacável ainda eram proibidas de estudar para que não escrevessem bilhetes para seus pretendentes, Esperança transformou sua indignação e insatisfação em palavras que ressoam até hoje.

No ano de 1770, em um Brasil ainda colonial, ela, descontente com os desmandos e maus tratos de seu senhor, o então inspetor da inspeção de Nazaré, capitão Antônio Vieira de Couto, tomou forças e escreveu uma carta destinada ao governador da capitania do Maranhão, Gonçalo Lourenço Botelho de Castro, denunciando os absurdos sofridos por ela, seus filhos e seus companheiros. À época, o Piauí era politicamente ligado a capitania do Maranhão, laço esse rompido apenas em 1811, quando se tornou governo independente.

Na carta, considerada por muitos a primeira petição redigida por escravos no Brasil, ela reivindica o seu retorno a sua fazenda de origem, Algodões, onde por muito viveu junto ao marido e filhos. Há muito sem se confessar e com dois filhos por batizar, Esperança acudiu-se na fé e religiosidade para reunir argumentos que amparassem a sua causa. O batismo, por sinal, era um dos poucos direitos adquiridos pelos escravos quando Esperança resolve escrever a carta.

Originalmente pertencente a Domingos Afonso Mafrense, um dos bandeirantes que liderou o processo de colonização do Piauí, Algodões foi herdada pela Companhia de Jesus e ficou aos cuidados dos padres jesuítas que habitavam o sertão piauiense.

Porém, a permanência dos jesuítas no Brasil foi interrompida no ano de 1760, em uma medida da já conhecida Reforma Pombalina, aplicada pelo Marquês de Pombal, como contam os livros de história.

Algodões e as demais fazendas jesuítas passaram à administração do império e passaram a ser chamadas de fazendas nacionais. Como parte da reforma, elas foram divididas em três inspeções e geridas por criadores que se reportavam aos inspetores nomeados. A Fazenda Algodões passou a ser parte da inspeção de Nazaré, quando Esperança Garcia foi tirada do seu lar para servir na casa do capitão Antônio Vieira de Couto.

Desde a sua descoberta, em 1979, pelo historiador e antropólogo Luiz Mott, a carta foi transformada em símbolo da resistência negra e peça fundamental na construção de uma identidade afro no estado. Esperança tornou-se símbolo de resistência, o dia 06 de agosto, dia em que a carta foi escrita, data de celebração da consciência negra no Piauí. Não se sabe ao certo qual o destino de Esperança Garcia após a escrita da carta. Seu nome, porém, percorreu os trilhos do tempo e está marcado em inúmeros coletivos de mulheres negras no Piauí.

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Foto: Marcelo Cardoso

   A CARTA:

“Eu sou hua escrava de V. Sa. administração de Capam. Antº Vieira de Couto, cazada. Desde que o Capam. lá foi adeministrar, q. me tirou da fazenda dos algodois, aonde vevia com meu marido, para ser cozinheira de sua caza, onde nella passo mto mal. A primeira hé q. ha grandes trovoadas de pancadas em hum filho nem sendo uhã criança q. lhe fez estrair sangue pella boca, em mim não poço esplicar q. sou hu colcham de pancadas, tanto q. cahy huã vez do sobrado abaccho peiada, por mezericordia de Ds. esCapei. A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confeçar a tres annos. E huã criança minha e duas mais por batizar. Pello q. Peço a V.S. pello amor de Ds. e do seu Valimto. ponha aos olhos em mim ordinando digo mandar a Procurador que mande p. a fazda. aonde elle me tirou pa eu viver com meu marido e batizar minha filha q.

De V.Sa. sua escrava Esperança Garcia”

CARTA TRADUZIDA:

“Eu sou uma escrava de V.S.a administração de Capitão Antônio Vieira de Couto, casada. Desde que o Capitão lá foi administrar, que me tirou da Fazenda dos Algodões, aonde vivia com meu marido, para ser cozinheira de sua casa, onde nela passo tão mal. A primeira é que há grandes trovoadas de pancadas em um filho nem, sendo uma criança que lhe fez extrair sangue pela boca; em mim não poço explicar que sou um colchão de pancadas, tanto que caí uma vez do sobrado abaixo, peada, por misericórdia de Deus escapei. A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confessar a três anos. E uma criança minha e duas mais por batizar. Pelo que peço a V.S. pelo amor de Deus e do seu valimento, ponha aos olhos em mim, ordenando ao Procurador que mande para a fazenda aonde ele me tirou para eu viver com meu marido e batizar minha filha.

 De V.Sa. sua escrava, Esperança Garcia”

(Publicado na Revestrés#26 – Agosto/Setembro de 2016)