Gabi* me abraça apertado ao entrar no carro, logo depois que sua mãe pede para que ela e a irmã me cumprimentem. As duas crianças estão entretidas, conversando sobre uma situação que ocorreu naquela tarde na escola. “Mãe, o que é mother fu****?”, questiona no trajeto para casa, ao entardecer. A explicação vem de forma simples e direta: “Filha, isso é um palavrão. Mas você não pode ficar falando porque é errado”.
A questão começou ainda mais cedo, quando um coleguinha usou a expressão dentro da sala de aula naquela tarde. “A professora ficou sem reação, mãe”, Gabi deixa escapar uma gargalhada. “Ela não explicou o significado para a gente”, garante, com convicção. Em segundos, mudam de assunto, dessa vez, falando das tarefas de classe.
Em casa, a mãe reclama das mochilas espalhadas pela sala. Gabi entra em direção ao quarto, tira a farda e permanece com o vestido preto de desenhos de unicórnios e estrelinhas, que usava por cima do uniforme naquele dia para amenizar o frio na sala de aula. Enquanto eu e a mãe conversamos no sofá, Gabi corre como um foguete pelos cômodos, dança animada e apenas diminui o ritmo quando se distrai com as irmãs assistindo vídeos pelo telefone. A agitação é retomada na hora do jantar, em que ela pega na cestinha em cima da mesa seu pão massa fina e o achocolatado em um copo, o lanche preferido, e sai comendo pela casa, pulando e conversando.
Após o jantar, as duas pequenas sentam ao redor da mesa e cumprem o de costume: fazer a tarefa de casa. A mãe, sentada do outro lado, me mostra o documento que serviria para o embarque da viagem do dia seguinte. A luz na mesa evidencia o risco do amor – três tatuagens no seu braço esquerdo, que representam as filhas: dois símbolos de vênus do sexo feminino, e o terceiro símbolo do transgênero. Ela está aflita, porque ainda não tem todas as informações necessárias para a viagem. “Todo mês é o mesmo estresse. Olha aqui, o do Gabriel não tem o localizador da passagem!”, fala com preocupação e recebe de volta um olhar reprovativo da filha. “Ela sabe que falei sem querer”, me confidencia segundos depois.
No outro dia, uma quinta-feira no mês de março, a mãe deixaria as duas filhas mais velhas e embarcaria para São Paulo, para a consulta mensal da Gabi, no Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual, no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas. Durante o grupo de conversa com outros pais, ela presenciou a encenação de uma situação familiar em que os parentes questionam os sinais que surgem em uma criança trans. Emocionada, depois de quase um ano de reuniões, essa foi a primeira vez que deu seu depoimento na roda. Compartilhar a luta solitária com quem passa pelas mesmas situações é valioso.
Apesar disso, foram dias difíceis. A pequena, de sete anos, estava inquieta e um pouco desconfortável. “Eu acho que ela fica muito nervosa. Antes da consulta com o psiquiatra, ela estava bem agitada”, confidenciou após a viagem.
Em uma conversa de domingo, enquanto finaliza um trabalho em sua casa, narra de forma leve e tranquila, todo o caminho até ali, que começou quando Gabi tinha apenas três anos de idade. “Ela não queria ir para a escola. Chorava, esperneava, se escondia dentro do quarto. Em alguns dias, chegava até a se machucar na tentativa de me convencer de que não deveria ir”, conta a mãe. Poucas vezes os esforços da pequena valiam a pena. Em outras, concordava em ir, mas com uma condição: queria usar a camisa do colégio como um vestido. A mãe, então, guardava o short na mochila para que a criança não fosse barrada na entrada. Nesses dias, ela saía feliz de vestidinho, com um tênis que não combinava muito com o look e a bolsa do McQueen, personagem do filme Carros.
A mãe notava a diferença, em comparação com a irmã do meio, um ano mais velha, e a maior, com dez anos à frente. “Ela era mais manhosa e sensível que as outras”, relembra. Em casa, não dormia direito durante a noite. Na escola, se comportava diferente e preferia brincar com a boneca que ficava na caixinha das meninas. O que também chamava atenção era o fato dela ser um tanto agressiva e agitada, sempre passando a sensação de que algo estava incomodando. A mãe não entendia o motivo e seguia. Aflita.
Com a família reunida, Gabi virou e soltou: “Eu era uma menina, aí veio uma fadinha e me transformou em um menino”.
Foi preciso a própria criança explicar o que estava acontecendo. Com a família reunida, Gabi virou e soltou: “Eu era uma menina, aí veio uma fadinha e me transformou em um menino”. Em outro momento, voltou a dizer, de forma irritada porque tinha que explicar o óbvio: “Vocês não estão vendo? Não estão enxergando? Vocês estão todos errados! Eu sou uma menina!”. Mas, por mais que tentasse, não conseguia convencer todos por completo.
Certa vez, entrou no quarto vestida de princesa, decidida em mostrar o quanto estava bonita. A mãe concordou! Mas foi rechaçada pelos outros familiares presentes que afirmavam que ela estava incentivando a criança a ser gay. A mãe saiu dali acuada e pôs-se a chorar, um choro que durou anos e poderia encher um campo de futebol. A filha mais velha questionava as lágrimas e pedia que aquilo fosse revidado – não queria que deixassem falar da sua irmã daquela forma. Hoje a mãe lembra com menos culpa e fala para mim como se estivesse contando uma história que ficou no passado. Mas, quando a situação estava se passando, ela não sabia o que fazer e vivia estressada.
Na época, em um dia qualquer após colocar as crias para dormir, sentou-se no sofá com a avó para descansar assistindo televisão. Até que viu a filha mais nova na personagem da matéria que estava sendo exibida: uma criança transgênero, em que seu comportamento se distanciava das regras estabelecidas para o gênero em que nasceu. “Sua identidade de gênero não correspondia ao seu sexo biológico”, ouviu atenta.
“Eu sabia que existia lésbica, gay, bi e travesti. Depois de tudo, a minha vida zerou, aí eu tive que ir aprendendo”, confessa. Desde esse dia, passou a pesquisar insistentemente sobre o assunto – as buscas na internet por matérias, artigos científicos e documentários se tornaram poucas, tamanha era a curiosidade. Até conseguir entender o que Gabi estava lhe dizendo: ela era uma menina que nasceu no corpo de um menino e tinha que resolver isso o mais rápido possível para seguir feliz. E não precisava de ninguém para diagnosticar. A mãe passou a entender a filha e isso bastava.
Mas o impasse não terminava aí. Era preciso muitas fases serem ultrapassadas. Era preciso entender que Gabi, na verdade nasceu Gabriel. Desde que estava na barriga, até seus dois meses de idade, seu nome nunca tinha sido escolhido. “Mas a criança precisa de um nome para ser gente aos olhos do mundo!”, todos berravam, aflitos. “Escolhe qualquer um, eu quero é resolver o plano de saúde do bebê”, disse a mãe quando foram ao cartório fazer o registro. O contratempo já previa o futuro porque, no final das contas, foi a criança que escolheu o próprio nome.
Aos quatro anos de idade, com a primeira boneca que ganhou de aniversário, Gabi nunca mais deixou de ser quem sempre foi. E nos primeiros momentos, já avisou para a família: no meu cabelo ninguém toca, quero que ele fique grande para sempre. Suas amiguinhas ficaram confusas quando a viram pela primeira vez de vestido. Mas a mãe explicou e logo entenderam. Com a família, foi preciso reunir todos para que a psicóloga explicasse. “Minha avó entendeu e falou para todos que queria que a Gabi fosse respeitada e que não queria mais falar nesse assunto”, relembra a mãe. “Não houve mais repressão direta. Aqueles falatórios da família às vezes ainda têm, mas não atingem diretamente”.
Nem tudo acontecia sem dor. Certa vez, os adultos quando viram Gabi de vestido pela primeira vez, interromperam a diversão no condomínio para dizer que aquilo estava errado. Onde já se viu adulto se meter em brincadeira de criança?! Outros não queriam entender a situação e fizeram-na ter que mudar mais de três vezes de escola porque não aceitavam o nome social da criança e o fato dela querer usar o banheiro feminino. “Mas a menina era afrontosa, usava mesmo assim!”, conta a mãe, às gargalhadas. Apesar disso, mudou de colégio e hoje estuda na sua segunda escola pública, espaço que lhe acolhe e aceita.
Para a mãe, a sensação durante o período de transição foi de luto pelo filho que tinha morrido. A constatação ainda é sentida no dia-a-dia. “Mas não tem uma relação de culpa de que um matou o outro”, revela. “É um luto, mas ao mesmo tempo, é um lindo nascimento porque nasceu uma criança do jeito que era para ser: uma criança feliz”, ela diz para si mesma, mantendo-se forte e sempre defendendo a felicidade dos seus. A mãe também tinha receio do que os outros poderiam achar e, quem sabe, fazer mal para sua filha. Mas mesmo assim, não queria, de forma alguma, impedir os bons momentos que viriam dali em diante.
Gabi sempre teve uma personalidade forte. Uma criança ligada no 220volts, de um coração enorme e que adora desenhar sereias. “Ela se defende e eu confio muito nela. Ela veio para o mundo já sabendo o que fazer, eu tenho é certeza. Porque não pode uma pessoa ser bem resolvida desse jeito”, afirma a mãe, enfática. E relembra, emocionada, da primeira vez que receberam os cadernos e a carteirinha da escola identificados com o nome social, da forma como deveria ser: Gabi.
O próximo passo é conseguir o direito de trocar o nome de registro pelo seu nome social. Questionada sobre esses processos burocráticos, Gabi não quer saber muito: continua assistindo os vídeos dos jogos de Minecraft, depois de uma tarde inteira brincando com a irmã e a vizinha. Quando olha para fotos de antigamente, sorri: “Nossa, como eu era um bebê feio e bochechudo”.
* Nome fictício utilizado para preservar a identidade da criança.
[texto produzido após a repórter acompanhar a rotina de Gabi e sua família]
Publicado na Revestrés#36 – maio-junho de 2018.