Patrimônio cultural imaterial do Brasil reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a literatura de cordel tem raízes no nordeste, mas há muito espalha seus galhos com versos e cantorias por todo o país. E como arte das mais refinadas. Muita gente desconhece que, desde 1988, ela conta com uma instituição para dar apoio aos cordelistas – a Academia Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC), com sede no charmoso bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro. Para contar melhor essa história, contudo, é necessário falar sobre a maior feira nordestina fora do nordeste: a Feira de São Cristóvão, também no Rio de Janeiro. 

Gonçalo Ferreira da Silva: Fundador da Academia Brasileira do Cordel

Importante local de divulgação da literatura de cordel no país, a atual Feira de São Cristóvão nasceu espontaneamente em meados da década de 1940, quando nordestinos chegaram no Rio de Janeiro para trabalhar na construção da rodovia Rio/Bahia, a BR-116. Naquele tempo, no Campo de São Cristóvão, funcionava uma espécie de terminal rodoviário precário onde chegavam pernambucanos, baianos, cearenses, paraibanos e outros, trazendo produtos do Nordeste que começavam a ser comercializados entre os moradores do Rio. 

Naquela época, sem qualquer apoio da prefeitura do Rio de Janeiro e com barracas e trabalhadores em condições insalubres de sobrevivência, a Feira de São Cristóvão do século 20 provava todos os dias a afirmação de Euclides da Cunha, em Os Sertões, de que “o sertanejo é, antes de tudo, um forte”. Mas como uma boa ideia pode nascer mesmo no campo mais imperfeito, foi a atmosfera de descaso aos cordelistas que inspirou o idealizador e atual presidente da Academia Brasileira de Cordel, o cearense Gonçalo Ferreira da Silva, a fundar a instituição. “Em 1978, passeando pela Feira de São Cristóvão, encontrei os cordelistas em condições subumanas de sobrevivência, cantando em condições inclementes. Somente a persistência fazia o pessoal ficar ali. Quando voltei para casa, pensei em fundar uma casa para a literatura de cordel que pudesse dar sustentação institucional àqueles repentistas, cordelistas, e assim começou o trabalho”, relembra Gonçalo. 

Foram dez anos de luta e planos até a fundação da Academia em 1988. Neste período, o principal apoio de Gonçalo foi a própria esposa, Maria do Livramento Lima da Silva, ou madrinha Mena, como é chamada. Enquanto ele buscava outras pessoas para auxiliar na fundação da academia, madrinha Mena mantinha uma banca na Feira de São Cristóvão que atraía professores, pesquisadores e interessados na literatura de cordel. “Saía de casa quatro horas da madrugada, pegava ônibus e andava um pedaço a pé com bolsa pesada, mas com felicidade porque ia vender cordel. Vendia bem e com esse dinheiro ia fazer mais, comprava cordel colorido de São Paulo e espalhava na banca”. A barraca ia prosperando e madrinha Mena começou a percorrer outras praças da cidade, o que atraía novos cordelistas. “Comecei a vender pela Praça de São Francisco, pela Carioca, Cinelândia, e por onde eu ia, aparecia gente querendo escrever cordel, mas eu não sabia como dizer, por isso eu passava tudo para o Gonçalo.” 

Pouco antes da fundação da Academia, Gonçalo também procurou apoio na Casa Rui Barbosa e na Academia Brasileira de Letras (ABL). Em busca de apoio institucional, ele conta que chegou a ser desencorajado pelo imortal Orígenes Lessa. O temor não foi levado em conta e a ABLC foi fundada em 7 de setembro de 1988 também por conta do sucesso da banca de madrinha Mena. “Embora o desestímulo do mestre Orígenes Lessa, a banca em São Cristóvão se tornou um local de convergência para alunos, professores e pesquisadores da literatura de cordel. Por isso, a Academia nasceu sobre esse signo de talento, força de vontade, aliado ao conhecimento muito grande.” 

Atualmente a ABLC (ablc.com.br) conta com 40 acadêmicos e todas as cadeiras estão ocupadas. Tanto os acadêmicos quanto os funcionários não recebem qualquer remuneração. A sede da instituição, em Santa Teresa, é pequena para abrigar o acervo de mais de 13 mil cordéis e, como também não possui auditório, as plenárias são realizadas no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), no centro do Rio de Janeiro. Cordéis variados podem ser adquiridos na sede da ABLC, que orça e produz livretos de cordelistas de dentro e fora da instituição, bem como compra e adquire por meio de troca folhetos de diversos autores. Até o momento, segundo o presidente Gonçalo, a instituição distribuiu mais de 300 mil cordéis no Brasil e no mundo. 

 

Cordelista Rosário Pinto

Literatura Feminina de Cordel  

A Academia Brasileira de Literatura de Cordel também é um espaço para se discutir a produção contemporânea de cordelistas mulheres. Rosário Pinto, uma entre as cinco cordelistas que compõem as quarenta cadeiras da instituição, concorda que o número de mulheres na Academia ainda é pouco, mas há um processo de mudança desse quadro. “Há muitas poetisas de cordel que ainda não publicam seus folhetos. Os tempos passam, mas os valores precisam ser reafirmados a cada dia porque, mesmo atualmente, a mulher ainda sofre preconceitos e discriminação pelo simples fato de ser mulher. O seu saber é, muitas vezes, visto como especial, e não natural.” A afirmação da acadêmica resgata a condição das cordelistas até a década de 1970 – até aquela época, o comum era que as mulheres não escrevessem cordel, ou, quando o faziam, assinavam com nomes masculinos. 

Para ilustrar o uso de nomes de homens na produção das cordelistas, a pesquisadora Doralice Alves de Queiroz conta o caso da histórica poetisa Maria das Neves Batista Pimentel. “Em 1938 ela publica, sob o pseudônimo de Altino Alagoano, um cordel com o título O violino do diabo ou o valor da honestidade. Esse folheto pode ser o primeiro cordel feminino publicado no Brasil e o uso do pseudônimo foi a solução encontrada pela poetisa para vender seus folhetos. Em adicional, a cordelista utiliza um disfarce, uma máscara para obter a aceitação popular numa sociedade patriarcal.” Fortuitamente, as épocas mudaram, e como destaca a também acadêmica da ABLC Erinalda Villenave, breve aquele passado será substituído. “Há poucas mulheres no cordel em função desse passado, afinal, antes elas não podiam nem usar o nome próprio porque ninguém ia comprar. Mas como hoje ganhamos mais espaço, nós podemos falar mais, divulgar mais. Estamos chegando.” Neste progresso, a poeta Rosário Pinto destaca o peso das instituições para cordelistas com igualdade entre homens e mulheres. “A literatura de cordel desde seus primórdios é um reduto masculino. Mas este quadro está mudando com a criação de novas academias, associações, sociedades que têm em seus quadros uma paridade de homens e mulheres, como é o caso da Associação de Cordelistas de Crato [Ceará] e da Sociedade dos Poetas de Barbalha [Ceará], cuja presidenta é a poetisa de cordel Lindicássia Nascimento, e da Academia de Cordel de Alagoas, também com grande número de mulheres.” 

 

Beto Brito: compositor e cordelista

Cordel é música e educação 

Historicamente, antes de os versos ganharem os folhetinhos de cordel, eles eram declamados pelos cantadores, repentistas ou trovadores, para divertimento popular. Essa herança musical ainda se faz presente nos versos atuais de cordel e ganham também produção de artistas renomados, como é o caso do compositor e cordelista piauiense radicado na Paraíba, Beto Brito, também membro da ABLC. Quando perguntado sobre como o cordel transforma a música e vice-versa, o compositor explica que ambos são inseparáveis. “O cordel e a música se abraçam e se entrelaçam, como no verso, portanto não dá para dizer quem chega primeiro. Cordel não é música, mas já nasce pedindo pra ser, música não é cordel, mas morre pedindo pra ser.” Nos álbuns Banzófias (2013), e Imbolê (2014), o músico mistura o cordel com outros gêneros tradicionais como coco, ciranda, baião e xotes. 

Popular, musical e atraente, a literatura de cordel está cada vez mais presente também na educação de jovens e adultos. Para o presidente da ABLC, Gonçalo Ferreira da Silva, o principal atrativo do gênero como instrumento de aprendizado é a própria música dos versos. “A musicalidade do cordel atrai a criança, facilita a aprendizagem, além de embevecer a própria localidade. É uma ferramenta mais fácil de se trabalhar, a união do útil ao agradável: a vontade de ler com a função pedagógica.” Para Beto Brito, essa facilidade de os alunos receberem a musicalidade do cordel pode ser explicada por dois motivos. “Em primeiro lugar, todo mundo gosta de rimar, de recitar um verso ou uma poesia, quem não o fez, com certeza já ouviu alguém fazê-lo e isso por si só provoca uma espécie de desejo insistente de fazê-lo também; em segundo lugar, a música brasileira e a nossa literatura estão recheadas de versos rimados – quer que sejam na estrutura do cordel ou não – então a rima já não é estranha para ninguém, a estrutura do cordel sim, essa ainda precisa ser aprendida.” Uma vez que o aluno passe a exercitar as características do cordel, o compositor destaca que as possibilidades de texto mantêm a atração pelo gênero. “O que atrai os jovens para escrever o seu próprio cordel é que não há um único tema que não possa ser desenvolvido com a sua estrutura, do futebol à política, do humor à história, da natureza às metáforas, do amor à rebeldia, das mentiras às verdades, dos fatos atuais ao passado, da matemática à linguística e por aí vai.” 

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Esta matéria  faz parte da Revestrés#45, que pode ser baixada ou lida gratuitamente
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