A primeira viagem

É possível ir de carro. Mas confesso que eu, mineiro, carregando dentro de mim a saudade das curvas das montanhas de Minas, achei o ônibus a melhor escolha. Partimos da rodoviária de Belo Horizonte em um ônibus da Saritur, depois de comer pão de queijo em um dos bares da rodoviária. Pouco mais de 9 da manhã de uma quinta-feira, o ônibus partiu lotado. Ouvimos sotaques diferentes: inglês, francês, português, mineirês. O ônibus corta o centro de BH, logo está na periferia, e mais uns minutos estamos a caminho de Brumadinho, cidade com 35 mil habitantes a pouco mais de 60 quilômetros da capital e onde se localiza o maior museu de arte a céu aberto do mundo. Boa a sensação de ir me afastando do burburinho da metrópole tendo como únicas “obrigações” relaxar, observar a paisagem e me permitir novas e antigas sensações. De alguma maneira, a viagem já é um preparativo para o que acontece em Inhotim. Uma hora depois estamos em Brumadinho, e uma breve parada na praça que faz as vezes de rodoviária mostra  que, sim, estamos em Minas. Mais 5 minutos por dentro da cidade e chegamos. O ônibus para no estacionamento do Inhotim.

No Inhotim

Ao chegar você percebe que Inhotim é maior do que pensou. Muito maior. São 786 hectares de área, onde fragmentos de Mata Atlântica se misturam a galerias, obras a céu aberto, jardins e lagos. Mesmo que já saiba disso, acredite, vai achar imenso. Uma área tão grande e com tantas possibilidades (só a área de visitação ocupa mais de 96 hectares) exige fôlego e tempo para ser explorada. Você tem a opção de comprar logo na entrada um passe para usar o sistema de transportes interno, carrinhos elétricos que percorrem todo o parque. Você pode alugar um carrinho exclusivo com motorista, que fica à sua disposição. Ou fazer como nós: ficar a pé, mesmo. Se essa for sua opção, prepare-se. Você vai andar muito. Muito mesmo. Vá de tênis.

Você é livre para circular pelo Inhotim da forma que quiser. Tudo bem sinalizado, e é fácil se localizar com os mapas espalhados por toda parte. Mas a escala engana. Você pensa “é logo ali”, e “logo ali” pode significar grandes distâncias e ladeiras. Mas existem visitas temáticas e visitas panorâmicas, gratuitas, de uma hora e meia, que realmente ajudam você a ter elementos para tentar (veja bem: tentar) compreender o que é Inhotim e informações gerais sobre o que existe lá. Optamos pela visita panorâmica e logo saímos com um grupo que se formou ali, de forma improvisada. Duas moças, duas dos 100 estudantes universitários que trabalham em Inhotim como guias, acompanharam o grupo.

A segunda viagem

As guias nos levaram por uma trilha. Cerca de 10 pessoas, entre eles dois ou três portugueses. Metade aparenta uns 40 anos, metade é claramente acima dos 50. A trilha é leve. Entre explicações sobre botânica, um pouco da história de como surgiu Inhotim e pedidos para se liberar as amarras da percepção. Chegamos à primeira obra. À beira de um lago, em meio a um verde exuberante e milhares de cores da natureza, uma estrutura de vidro e aço, lembrando uma seta. É Triângulo Seccionado, do americano Dan Graham. Uma das guias pede que entremos: a estrutura é de vidros espelhados, côncavos e convexos. Um dos companheiros, alto e muito magro, grita: “Amor, estou achatado!”. Talvez essa seja uma das possíveis definições para Inhotim: um grande parque de diversões para adultos. Depois de todos se verem mais altos, mais magros, mais gordos e rirem bastante, retomamos a trilha. Ficamos sabendo que Burle Marx projetou grande parte dos jardins. De repente, uma gigantesca estrutura de aço, cor de ferrugem, uma mesa gigante sustentada por outras mesas e pequenas cadeiras. “O que significa isso?”, pergunta uma das guias, recebendo respostas com variações sobre o mesmo tema: são cadeiras e mesas. “Para entender Inhotim é preciso estar pronto para sair do real”, responde a guia, completando que aquela é a obra Inmensa, do carioca Cildo Meireles. “A obra de Cildo é política, vejam que são as cadeiras pequenas que sustentam as cadeiras grandes e a grande mesa”. Estar em Inhotim, percebe-se, é ver mais do que o que se enxerga.

 

 

Voltamos à trilha. Talvez animado com a possibilidade de ver mais do que o que se enxerga, o senhor português para de repente e diz: “Vejam, descobri uma coisa”, apontando para um arbusto. “É a cara de um velho nas folhagens, percebem?”. Alguns tentaram perceber, outros preferiram nem tentar. Ver, ver mesmo, só o senhor português viu. Mas é Inhotim. Continuamos, e no meio da mata surge um iglu branco, de fibra de vidro. É By Means of a Sudden Intuitive Realization (algo como “por meio de uma realização intuitiva repentina”), do dinamarquês Olafur Eliasson. Dentro, em grupos de quatro pessoas, muito frio, uma pequena fonte jorrando água e uma luz estroboscópica. O efeito: a cada piscada da luz a água forma uma escultura, efêmera, única, irrepetível. Estar em Inhotim é realizar conexões, e ali entendi o que Bachelard queria dizer ao afirmar que não existe “o” instante, e sim a “intuição do instante”.


Seguimos, e passamos a entrar em algumas das muitas galerias, com obras de todo o mundo. Em uma sala, os espelhos de Edward Krasinski gerando ilusões de ótica. Em outra, o argentino León Ferrari e heliografias. Mais uma, e Renata Lucas e suas Falhasfazem, de novo, que voltemos a ser crianças, levantando e abaixando placas de madeira e alterando a disposição da obra. Entre uma galeria e outra, lagos, jardins, pássaros, esculturas espalhadas pelos gramados, enormes bancos de madeira. A esta altura, uma hora e meia depois, estamos totalmente encantados por Inhotim. Quer dizer: uma das faces de Inhotim é encantamento. Nos despedimos das guias e do grupo, que agora parecia formado por dez crianças de 12 anos, coradas e sorridentes, que se dividem em duplas e trios. Aha, uhu! Inhotim agora é nosso!

A terceira viagem

Ou, talvez, nós sejamos do Inhotim. Estamos livres, e sem saber bem o que fazer com tanta liberdade. Decidimos andar a esmo e deixar que Inhotim nos mostrasse o que tivesse vontade de mostrar. A resposta veio aos poucos. E chegou com uma casinha branca, singela, típica das montanhas de Minas. Sem saber exatamente o que aquela casinha fazia ali, entramos. Branca,  vazia. O teto, transparente, tem por cima milhares de bolinhas de isopor, movimentadas por ventiladores e que, nesse movimento, formam nuvens, mapas, continentes inteiros. A casinha branca, de 1874, serviu para a instalação Continente/nuvem, de Rivane Neuenschwander.

Suave, simples, leve. O encantamento continua, e lá se vão duas horas caminhando, mas as pernas querem seguir em frente. Em meio à imensidão do verde, várias paradas de ônibus um tanto enterradas na areia. A piada foi inevitável: tantas ali no meio da areia e tão poucas nas ruas de Teresina. Inhotim é um pouco isso, também: ironia e crítica. Um dos muitos papéis da arte. Descobrimos que Desert Park, o nome da obra, foi realizada por Dominique Gonzalez-Foerster, francesa, radicada no Rio de Janeiro. Queriamos mais, e tínhamos logo que chegar à  imperdível galeria de Adriana Varejão. Chegamos. O próprio pavilhão, mesmo que não tivesse nada dentro, é uma obra de arte arquitetônica. Criado pelo paulista Rodrigo Cerviño Lopez, tem 477m2 e é uma das estrelas de Inhotim. É possível ter dúvidas entre entrar para ver o trabalho de Adriana e ficar andando em volta do pavilhão, para ver o trabalho de Cerviño. Entramos.

Logo de cara, Linda do Rosário, obra que talvez contenha as maiores referências da arte de Adriana: uma “ruína” de parede de azulejos, com cortes onde se percebe que, como sustentação da parede, existe carne. Linda do Rosário faz referência ao desabamento, no Rio de Janeiro, do hotel Linda do Rosário, em 2002, onde morreu um casal. Ao lado, uma grande parede pintada como uma sauna, propondo a continuidade do espaço da sala. É O Colecionador, a maior obra da sérieSaunas. É impressionante o efeito das obras no espaço. Subindo para o segundo andar,Celacanto Provoca Maremoto, que faz referência à história colonial do Brasil. Mais um andar e estamos no topo, um terraço com vista de 360 graus para o entorno e um grande banco de azulejos com imagens de pássaros da região. Dois minutos ali e você entende a intenção de Adriana: ouve-se o canto dos pássaros, provavelmente muitos deles ali desenhados. Lindo.

(Uma breve pausa: não dá para contar tudo o que foi visto em Inhotim nessa matéria. Isso só seria possível em um ou mais livros. Então, a opção aqui é contar um pouco e deixar para você descobrir o resto. Em frente.)

Fuscas na grama e Oiticica

Você já deve ter visto na internet, em fotos, de alguma maneira: três fuscas coloridos, um ao lado do outro, em um grande gramado. É Troca-troca, obra do carioca Jarbas Lopes e que, para alguns, é símbolo de Inhotim. E é uma obra que volta e meia pode ser vista dando uma voltinha nos arredores. Sim, eles funcionam e, de vez em quando, mudam de lugar. Uma dica importante: ao lado de Troca-Trocatem um bebedouro, e o gramado é excelente para deitar e descansar as pernas. Fica a dica.

 

Bem ao lado dos fuscas de Jarbas Lopes, mais uma pérola de Inhotim: um grande pavilhão de granito parece pousar no gramado verde. É a galeria Cosmococa, onde estão 5 das Cosmococasde Helio Oiticica e Neville D’ Almeida. É preciso tirar os sapatos antes de percorrer as cinco salas que surpreendem todos os sentidos. Um formato labiríntico, onde não há hierarquia de visitação: é você quem decide o caminho a seguir. Em cada sala, experiências diversas: projeções de slides, redes para se deitar ouvindo Jimmy Hendrix, imagens de Marylin Monroe, piscina. Tudo relacionado ao Quasi-Cinema de Oiticica e D’Almeida, uma tentatva de investigar e explorar a relação do público com a imagem-espetáculo. A vontade é de passar horas lá dentro. Mas lembramos que Inhotim fecha às quatro e meia da tarde. Ou seja: vimos um mundo de coisas. Mas não chegamos nem perto do que é possível ver. O jeito é tentar ver o que ainda der. E vamos atrás do “som da terra”.

A terra sussurra

No mapa, parecia perto. Era longe. E no fim de uma ladeira de mais de 700 metros de extensão. Heroicamente, enfrentamos a “super ladeira” em busca do som da terra. Meio arrependidos por não termos comprado os passes para os carrinhos elétricos, que passavam por nós e cujos passageiros nos olhavam com misto de pena e admiração. Mas subimos. O cansaço, ou a inveja dos com-carro, gerou uma epifania: Inhotim tem de ser percorrido a pé. É um jogo entre o ver e o sentir. Um jogo que precisa de tempo, de sedimentação do percebido, de reflexões entre uma obra e outra. Veja, já estávamos delirando. Passamos direto pelo impressionante pavilhão de Miguel Rio Branco, tristes por deixá-lo para trás, mas felizes com uma promessa de retorno para breve.

 

Finalmente, lá estava ele: Sonic Pavillion, do norte-americano Doug Aitken. Um impressionante pavilhão circular de vidro e aço, no ponto mais alto de Inhotim. Imponente, parece um disco-voador pousado no meio da floresta. Passamos um bom tempo observando, de fora. É uma obra pra ser observada por fora e depois sentida, quando se entra. Dentro, totalmente vazio. Apenas um som ocupa o espaço. Dizem que cada pessoa sente uma coisa diferente. Algo místico, conexões com a terra, coisas do gênero. Cético que sou, senti duas coisas: um enorme conforto para meu cansaço e vontade de morar ali. Um casal, a mulher com as pernas tatuadas e o homem de bermuda de caçador africano, e seus dois filhos adolescentes também estavam lá: todos sentados no chão, em silêncio, ouvindo o som da terra. No centro da galeria, um tubo, vedado por um vidro. Claro, todos tentam olhar para o fundo do tubo. Com mais de 200 metros de profundidade e equipado com microfones ultramegasensíveis, ele traz para o ambiente, através de caixas de som e amplificadores escondidos, o leve ronco que vem do fundo da montanha. Na verdade, um sussuro suave, contínuo. Quase um ressonar. Parece que a terra, naquela hora, dormia profundamente.

Indo embora de Inhotim, mas levando Inhotim junto

Foram sete horas de caminhadas, surpresas e emoções. E uma certeza: uma visita não é suficiente. Nem duas, nem três. Talvez, quantas visitas forem, serão insuficientes. Totalmente livres para circular, é possível descobrir coisas novas o tempo todo. Novas combinações. Novos modos de se ver além do que se enxerga. Não deu para falar aqui sobre a True Rouge, nem de Steve McQueen, nem de centenas de coisas vistas por lá. Mais ainda, das outras tantas coisas sentidas. Talvez fosse preciso várias edições da revista. Fica pra próxima.

Outra certeza é de que a arte pode, sim, mudar a vida das pessoas. Foi possível ver isso nos olhares de crianças que visitavam Inhotim em excursões de escolas públicas da região. Nos sorriso daquelas crianças-adultas que formavam o grupo no começo da visita. No orgulho visível de quem trabalha lá. E em nós mesmos. Porque saímos diferentes de Inhotim. Tenho certeza que não importa se você é especialista em arte ou não. Se é jovem ou velho. Se é piauiense ou holandês ou chinês. Alguma coisa acontece ali. Mesmo que você não queira ou não perceba.

(Texto originalmente publicado na Revestrés#08, em maio/junho de 2013).