O JUNTA Festival – Dança e Contemporaneidade – realizou a sua décima edição: o JUNTA X (15 a 20 de outubro de 2024). São 10 anos realizando, em Teresina, Piauí, um acontecimento difícil de definir, já que é muito mais que dança: talvez esteja melhor representado na palavra – também fugidia – contemporaneidade. Em todas as edições, Revestrés esteve acompanhando a programação. No JUNTA X, discutimos entre nós alguns dos espetáculos e, agora, partilhamos nossas impressões, sensações e sentimentos, em textos assinados por Samária Andrade e André Gonçalves. São textos movidos muito menos pela ideia de uma crítica formal, e muito mais pelo que as atividades aqui elencadas provocaram – e continuam reverberando. A cada semana, partilhamos um texto novo. Acompanhe.
Por Samária Andrade e André Gonçalves | Fotos: Victor Martins
No centro do salão, uma figura enigmática: futurista e ancestral. É Hevah, personagem que simboliza a origem e fim da humanidade, ali interpretado por Djam Neguin, criativo artista multidisciplinar, que mescla artes cênicas (dança, teatro, música, performances) e artes visuais (cinema, videoarte, fotoperformance). É ainda produtor, curador e artivista. Apresenta-se em festivais pelo mundo (Nova York, Los Angeles, Paris, Madri, Barcelona, Brasil, Portugal, Holanda). A imprensa o coloca como “afrofuturista e pós-identitário”. O Junta X anunciou sua performance como “experiência imersiva e sensorial”. Ele propôs falar de cultura, ancestralidade e de suas origens. É de Cabo Verde, país formado por um arquipélago de 10 ilhas no oceano Atlântico, costa da África. Pode ser tão longe, pode ser tão perto de nós.

Hevah e “Batuku”, ancestral e futuro: a arte não precisa se explicar ou levar a uma compreensão conciliadora. | Foto: Victor Martins
O público é orientado a esperar enquanto a sala é preparada para o espetáculo TX [@ ]BE/T_A I I = * (ou Txabeta). A produção pede que 10 mulheres do público se voluntariem. Entre curiosas e desconfiadas, elas são postas em fila, recebem vendas nos olhos e entram no salão antes de todos. Somente depois, os demais são autorizados a ocupar o espaço. Recebem a instrução de sentar-se em cadeiras em círculo, separados de quem se acompanhavam àquela noite. Tudo em torno do espetáculo vai aumentando a expectativa.
Hevah conduz a cerimônia do “Batuku”. A parte central do Batuku é a “Txabeta” – um dos instrumentos de percussão utilizados no ritual original e que dá nome ao espetáculo. O Batuku é baseado em percussão e voz, com batidas de mãos no corpo para produzir sons. A “Txabeta” deve ser o clímax desse espetáculo, com todos os participantes respondendo em uníssono as palavras do ritual, como num refrão.
O público, que desconhecia Batuku e Txabeta, recebe a ordem de descobrir, sob suas cadeiras, bilhetes com palavras escritas: ancestral, saúde, futuro. Depois a ordem é que se repita “Batuku é ancestral”, “Batuku é futuro”, de acordo com as palavras encontradas. Um dente de alho é entregue a cada um com a recomendação de que seja mantido entre as mãos. Por fim, Hevah ordena que os participantes batam o pé no chão e as mãos no próprio corpo, de forma ritmada.
São muitas e sucessivas ordens, e parte do público parece não aderir ao ritual proposto. Porém, quem se mostra pouco animado pode ser encarado de perto por Hevah. Ou seja: é melhor obedecer, mesmo que não se saiba bem o porquê. Alguns deixam a sala de espetáculo.

Se o que o público viu lhe pareceu exótico, vale voltar a origem da palavra: ex-ótico: fora da visão, algo para o qual nunca olhamos. | Foto: Victor Martins
Talvez por alguma demora na espera, ou pelo título enigmático (TX [@ ]BE/T_A I I = *), ou pela dificuldade de se compreender o que era solicitado com sons distorcidos – que deixou muitas orientações inaudíveis-, ou talvez porque o público ignorava muito daquilo que via; o espetáculo, que se pretendia interativo, terminou por não estabelecer a buscada conexão entre artista e público.
E não é que a arte precise se explicar, ser funcionalista ou levar a alguma compreensão conciliadora, mas quem sabe se se soubesse ou lembrasse alguns desses pontos de antemão: a) que o Batuku é, provavelmente, o gênero de música e dança mais antigo de Cabo Verde; b) que Cabo Verde foi colonizado de modo cruel por Portugal (deveríamos lembrar como é isso); c) que, tentando exterminar a identidade africana no país, Portugal e Igreja católica perseguiram os rituais dos povos negros, conseguindo quase extinguir essa tradição (olha aí outro ponto que não deveríamos esquecer. Abdias Nascimento, ator, escritor, ativista dos direitos das populações negras, disse que o culto à branquitude no Brasil sempre tentou negar os valores da cultura africana). Se também se soubesse: d) que os portugueses utilizaram a posição estratégica de Cabo Verde para a captura de pessoas no continente africano, sua escravização e tráfico para vários locais, inclusive o Brasil; e) que, espantosamente, Cabo Verde somente ficou independente de Portugal em 1975; f) que com essa recente independência, Cabo Verde tem promovido um movimento político e artístico de recuperação das expressões africanas, reconhecendo o valor cultural, histórico e identitário de tradições como o Batuku, antes apresentado em ocasiões especiais como dias de santos, casamentos e outras festas. E ainda, se conhecêssemos como é viver em países com experiências próximas às nossas, poderíamos saber: g) que em Cabo Verde as mulheres são a maioria da população; h) que muitas famílias são chefiadas por mulheres e muitos homens jamais assumem a paternidade; i) que as desigualdades de gênero por lá são gritantes; j) que o Batuku trata de temas da vida das mulheres, tornando-se uma experiência de resistência e quebra de silenciamentos; l) que a “Txabeta” diz respeito ao momento em que as mulheres respondem juntas ao ritual, batendo os pés no chão ou batucando o próprio corpo, numa vibração que busca ser libertadora; m) que os colonizadores portugueses condenaram o Batuku por ser “africano demais”, com o uso do corpo sendo considerado sensual e subversivo – uma provocação.

Não fomos sensuais, nem subversivos: poderíamos ter sido um público melhor. | Foto: Victor Martins
Em Cabo Verde, são todos esses significados que o espetáculo incorpora.
Em Teresina, talvez tenham nos faltado os elementos de interpretação que facilitassem a ligação com o público. Ao estabelecer vários protocolos – vendas nos olhos, dente de alho a ser guardado, mensagem em cartão, repetição de palavras e gestos – a um público que desconhecia aquilo tudo, o espetáculo terminou por criar uma série de expectativas que, para a maioria do público, não se cumpriu.
Por outro lado, um espetáculo deve ser isso – um espetáculo! – e não uma enciclopédia ou catálogo de explicações.
Talvez não era sobre o espetáculo que precisávamos conhecer mais. O que ele expôs foi o nosso desconhecimento histórico, cultural e social sobre um país com tantos pontos em comum com o nosso, além da língua.
Se o que o público viu lhe pareceu infamiliar e exótico, vale a pena voltar a Abdias Nascimento que nos lembra a origem da palavra: ex-ótico: fora da visão. Ou seja: algo para o qual nunca olhamos.
Os elementos da cultura portuguesa e de outros países dominantes certamente não padecem dessa estranheza, nunca nos parecem tão ex-óticos quanto o Batuku de Cabo Verde.
Nós poderíamos ter sido um público melhor.
Não fomos sensuais nem subversivos. Mas os portugueses tinham razão (ao menos) em um ponto: o Batuku é uma provocação.
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Samária Andrade é Jornalista, Professora de Jornalismo da UESPI (Universidade Estadual do Piauí) e Doutora em Comunicação pela UnB (Universidade de Brasília).
André Gonçalves é artista, escritor, publicitário, Mestre em Comunicação e Doutorando em Filosofia pela UFPI (Universidade Federal do Piauí).
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FICHA TÉCNICA DO JUNTA X:
Direção Geral: Datan Izaká, Janaína Lobo e Jacob Alves
Curadoria: Datan Izaká, Janaína Lobo, Jacob Alves e Mariana Pimentel
Curadoria INCUBADORA: Mariana Pimentel
Direção de arte e design gráfico: Sérgio Donato
Produção JUNTA X: Wilena Weronez
Produção Circulação JUNTA EXPANDIDO: Datan Izaká e Tulipa Braga
Produção INCUBADORA: Hellen Mesquita
Assistente de Produção: Paulim Beltrão Marathaoã
Receptivo: Tulipa Braga
Fotógrafo: Victor Martins
Storymaker: Cristian Sousa
Vídeo: Victor Martins, Cristian Sousa e Joseph Oliveira
Assistente de direção técnica: Kassyo Leal
Iluminação: Ulisses Pimentel
Montagem geral: Javé Montuchô e Philipe Marinho
Apoio: Anna Raquel, Savana Victória e Larissa Sousa
Bilheteria: Abner Oliveira e Laysa
Lojinha: Laysa Bruna
Textos/legendas: Joseph Oliveira
Libras: Wesley Cardoso, Deuselania Ferreira, Mario Sousa, Josenilda Xavier de jesus e Agatha WAchholz
Social Media JUNTA EXPANDIDO: Mozart Meneses
Social Media: Joseph Oliveira
Assessoria de Imprensa: Tertuliano Vicente e Joseph Oliveira
Edição de vídeos/fotos: Joseph Oliveira
Gerenciamento de anúncios e Tráfego Pago: Abner Oliveira
Apoio: Casa Redemoinho de Dança / Corpo Rastreado / Escola Estadual de Dança Lenir Argento / SESC PI / Biblioteca Cromwell de Carvalho / Complexo Cultural Theatro 4 de Setembro / Pappardelle / Mercado do Pão / Consulado Geral da França em Recife
Produção Executiva: Equipe PROMULTI
Supervisão Administrativa: Alba Roque e Tamara Andrade – Corpo Rastreado
Realização: JUNTA e PROMULTI