NRevestrés#38 tentamos explicar a crise atual do mercado literário brasileiro com entrevistas de diversos editores, de norte a sul, sobre como superar essa fase. Para recapitular a informação, entre 2006 e 2017, o Brasil perdeu 21% em volume de consumo de livros. Um total de R$ 1,4 bilhão, segundo pesquisa divulgada no meio do ano passado pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe). Em se tratando da recuperação desse cenário de perda, as editoras independentes não trabalham sozinhas e, hoje, vamos acender os holofotes para outro importantíssimo agente no mercado literário nacional: o(a) autor(a) independente.  

Para Júlio Ludemir, um dos primeiros jornalistas a escrever sobre as favelas cariocas, as comunidades mudam continuadamente – e ele aprendeu a entender isso. Na década de 1980, quando subia o morro para comprar maconha e cocaína, já viciado e sem o emprego no Jornal do Brasil, ele conta que o modelo de bandido era inspirado em “O poderoso chefão”. “Quando eu subia a favela na década de 80 para cheirar pó, havia o bandido padrinho, o bandido Godfather. Era um único cara que tinha dinheiro na favela por conta de um tipo diferente de tráfico de drogas, algo que é absolutamente diferente da mesma comunidade que eu encontro na virada dos anos 2000.” Nesse segundo reencontro, próximo do séc. XXI, Júlio Ludemir, quarenta anos e uma filha de seis, volta novamente às favelas, mas para escrever sobre elas. Ele começa uma série de reportagens sobre dependência química para a revista eletrônica “No.”. As matérias são muito bem recebidas, e, em sequência, ele vai investigar o sistema prisional no Rio de Janeiro para a editora Record. Na apuração, o jornalista encontra o casal Valéria e Marquinho – o “Romeu e Julieta” dos presídios cariocas. Ele, integrante do Comando Vermelho, e ela, sobrinha de um chefão do Terceiro Comando – facções rivais – ambos presos no Complexo Penitenciário Frei Caneca (penitenciária implodida em 2010). A história de amor entre os dois dura três anos e Ludemir ficcionaliza a vida deles enquanto esmiúça o funcionamento de uma cadeia dominada pelo Comando Vermelho. Esse é o enredo do seu livro de estreia “No coração do Comando” (Record). Era o ano de 2002, o mesmo em que o jornalista Tim Lopes foi morto enquanto realizava uma reportagem sobre abuso sexual de menores e tráfico de drogas na favela da Vila Cruzeiro, no bairro da Penha. Apesar do crime recente, na virada para 2003, Júlio Ludemir vai morar no morro da Babilônia e começa a se tornar referência para revistas e jornais sobre as favelas cariocas.  

Júlio Ludemir: um dos primeiros jornalistas a escrever sobre as favelas cariocas | Foto: FlupRJ

Nascido no Rio de Janeiro, mas filho de migrantes que voltaram a Pernambuco quando ainda era menino, Júlio Ludemir credita ao DNA nordestino a vocação de escrever sobre a favela quando ninguém fazia isso. “O sangue pernambucano me dá uma disposição de conseguir as coisas inclusive na base da porrada, do tapa. De tratar o corpo como um instrumento de trabalho, de uma forma apolínea, de uma forma que a gente esteja indo para o sacrifício literal, físico, real. Pouco importa se eu vou sair daqui vivo ou morto.” A afirmação do jornalista não é por acaso. Quando escrevia seu segundo livro, “Sorria, você está na Rocinha” (Record, 2004), que esmiuçava a “indústria da miséria” da mais famosa comunidade carente brasileira e maior favela da América Latina, o jornalista publicou um artigo chamado “Rocinha, uma favela sem dono”, que o levou a ser julgado em um tribunal do tráfico improvisado no principal ponto de venda de drogas da favela. Ludemir, contudo, esclarece que foi mal interpretado. “No artigo, eu tecia elogio ao dono do morro porque, quando você andava na Rocinha, não havia impressão de ser sufocado pelo tráfico de drogas ou Polícia. Você podia ir e vir e não era abordado. Mas em algum momento fui visto como um Tim Lopes e, por isso, fui julgado, como alguém que escreveria alguma coisa sem autorização do chefe da boca.” Absolvido pelo chefe do tráfico da época, Ludemir quis mostrar diariamente que era mais um morador que poderia dar coisas para a favela. Isso o impulsionou a criar a “Batalha do Passinho” – outro grande sinal de mudança nas comunidades. 

Nos diziam que não conseguiríamos captar investimentos e não realizaríamos o festival porque não haveria leitor na favela. – Júlio Ludemir

O “Passinho” é uma forma mais ágil e elástica de dançar Funk. A “Batalha do Passinho”, organizada desde 2011, é um espetáculo em forma de competição pública onde os dançarinos, com movimentos improvisados e novos passos de dança, têm o objetivo de superar o oponente. O evento foi tão bem recebido que se apresentou no Lincoln Center de Nova York, no Ted Global do Rio de Janeiro, no encerramento das Olimpíadas de Londres e no Teatro Municipal do Rio de Janeiro.  

No ano seguinte, quando Ludemir publicava seu nono livro sobre periferia no RJ, inspirado pela Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), ele começa a organizar a Flup, a Festa Literária das Periferias, em parceria com Ecio Salles. “Fomos motivo de galhofa quando lançamos a ideia. Nos diziam que não conseguiríamos captar investimentos e, se captássemos, não realizaríamos o festival porque não haveria leitor na favela. Nós provamos que esse preconceito, baseado na ignorância, era um desconhecimento da realidade da favela, que está sempre mudando.” As palavras do jornalista são certeiras – as favelas mudaram e a Flup é o grande evento literário delas. De regularidade anual e já organizada em 70 comunidades cariocas, a Flup já ganhou os prêmios Faz diferença, do jornal “O Globo” e o International Excellence Awards 2016, na categoria “Festival literário”, organizado pela Feira do Livro de Londres. Para o idealizador, a vitalidade e expansão do projeto tornaram o evento influente, sobretudo, no mercado literário nacional. “Acho que temos uma responsabilidade muito grande pelo surgimento de escritores da favela carioca, como Ana Paula Lisboa, Jessé Andarilho, Geovani Martins, Raquel de Oliveira, e outros autores que se sentem estimulados a escrever porque existe uma plataforma para acolher e potencializar. Também temos responsabilidade pela emergência de autores negros. Esses leitores do Lázaro Ramos, da Djamila Ribeiro, quem primeiro falou da existência desses autores no Brasil fomos nós, da FLUP.” Segundo Ludemir, o evento também atinge o meio audiovisual e uma nova forma de fazer e ouvir poesia – os Slams. “A Flup também é responsável pela contratação dos primeiros roteiristas negros da TV Globo, com o nosso Laboratório de Narrativas Negras para o audiovisual. Tivemos também muita importância para a poesia preta, a poesia do slam. O slam ganhou outra dimensão a partir do surgimento do Rio Poetry Slam, evento que criamos com potência internacional ao reunir poetas de 16 países. Isso mostrou o slam como uma plataforma de renovação da poesia, tanto no sentido de quem a produz, como de um novo público.”  

Flup: Festa Literária das Periferias, já organizada em 70 comunidades do Rio de Janeiro | Foto: FlupRJ

Por fim, a percepção de contínua e rápida mudança nas comunidades, expressa por Júlio Ludemir funciona como antídoto contra a desinformação e o medo que cerca o imaginário sobre as favelas. “A base do preconceito é a ignorância. Neste sentido, o que falta é produzir conhecimento sobre a favela, não fake news, que é o que acontece no jornalismo carioca.” 

Publicada em Revestrés#40 – março-abril de 2019.