Isolados em casa, distanciados socialmente. A pandemia do novo coronavírus trouxe para a rotina uma das poucas maneiras de estar perto: através da internet. A longa quarentena fez com que pessoas que já produziam conteúdo nas redes sociais conquistassem muito mais seguidores, como foi o caso da atriz Lívia La Gatto, 34 anos, e do influenciador digital Kaíque Brito,15 anos. Eles se dedicam a deixar os dias de confinamento menos pesados e mais engraçados. 

Com perfis criados em 2016, no Youtube e Facebook, Lívia La Gatto, de São Paulo, dá dicas de tutoriais com temas como “Como ser uma blogueira de sucesso?”, “Como ter a autoestima de macho hétero?”. “Nós estamos nessa época em que a gente busca no outro o que quer ser, e na internet tem muito de como ser isso, como ser aquilo” – ela comenta. Lívia diz que fez o reverso dos blogueiros famosos. Os temas que estão em seus canais são assuntos que a incomodam e provocam debates acalorados, como machismo, legalização do aborto, direitos da mulher e política, entre outros. 

Para falar dessas temáticas, ela criou uma personagem: a argentina Consuelo, no canal Consuelo DicaBoa. “A Consuelo é meu grito para todos esses assuntos”, afirma. Para Lívia, foi muito mais interessante ter voz através da personagem, que nasceu inspirada em sua família argentina e que tem, no jeito de falar, uma homenagem ao sotaque do seu pai. “A Consuelo é muito mais direta, mais sincerona, ela não tem filtros”, conta, sobre o perfil que criou. 

Os temas de Lívia La Gatto são assuntos que a incomodam: machismo, direitos da mulher e política. Parte dos seus seguidores são haters e estão em suas redes para atacar.

Kaíque Brito é baiano de Salvador e chamou atenção dos usuários na internet ao fazer dublagens de personalidades brasileiras. Antes mesmo da pandemia, já possuía muitos seguidores por ter feito, em 2019, um vídeo sobre o chamado “racismo reverso”, utilizando um áudio já existente na internet. O vídeo em questão deu a Kaíque uma visibilidade que ele nem imaginava. “Fui dormir com 10 likes no Twitter e acordei com 10 mil”, conta rindo. 

Até o fechamento dessa matéria, Kaíque já somava 209 mil seguidores no Twitter e 120 mil no Instagram. Ele começou sua criação na internet nos aplicativos de dublagem de música, como o Musica.ly, que depois virou o Tik Tok – um dos aplicativos mais usados mundo afora durante a pandemia. 

Humor com pitadas de ironia 

Entre os dois produtores de conteúdo há grandes semelhanças. Humor e ironia fazem parte de suas produções, principalmente quando remetem à política brasileira. Kaíque é conhecido pelas dublagens dos discursos e falas do atual presidente da República. Ele torna as situações mais polêmicas em algo engraçado, como no vídeo “a triste história de amor do biroliro”, sobre o discurso do presidente após a saída de seu ex-ministro da Segurança, Sérgio Moro. 

Sobre esse mesmo tema, Lívia La Gatto fez “tutoriais falidos”, a exemplo de: “Como ser um presidente e fazer interpretação de texto?”. Nos últimos meses, ela interpretou a ex-secretária da Cultura, Regina Duarte, em lives e vídeos. Também refez o vídeo de despedida de Regina, com críticas ao curto mandato da atriz no governo. 

“Fui dormir com 10 likes no Twitter e acordei com 10 mil” – Kaíque Brito

“Eu me senti autorizada a tirar sarro de uma pessoa que se alinhou a um presidente genocida, misógino. No momento que ela minimizou as mortes da pandemia, a ditadura, aí não teve mais sororidade, né?”, enfatiza a atriz, que é formada em Artes Cênicas pela USP, Universidade de São Paulo. 

Muitos perfis voltados para o humor nas redes sociais têm seguido a linha crítico-social. Juca Filho, roteirista de programas de humor da TV Globo, aponta que o Brasil, além de viver um momento conturbado com a pandemia, vive questões políticas que dão abertura aos brasileiros para ridicularizarem a situação. “O brasileiro tem esse espírito de rir de si mesmo, rir da própria desgraça”, diz. Para ele, fazer humor neste momento tem o sentido de ironizar a si mesmo e “as maluquices desse governo”, funcionando, assim, como uma anestesia para a dor. 

Juca Filho participou da criação da última versão do Zorra, quando a política passou a ser pauta constante no programa. Para ele, não existe humor chapa branca, toda narrativa vem para entreter e causar reflexões. “O humor é uma arma poderosíssima para quebrar o autoritarismo”, diz o roteirista, que tem mais de 20 anos de TV Globo e trabalhou com programas como Grande Família, Sai de Baixo, Os caras de pau e Toma lá, da cá. Ele afirma que mesmo quando pesavam na crítica ao governo, no Zorra, nunca sofreram censura na emissora. 

 

Assuntos polêmicos, críticas sociais e haters 

“Meus vídeos são totalmente eu. Não tento agradar meu público, só gravo o que gosto, mesmo”, diz Kaíque, que aposta em conteúdo que reflita o que ele pensa sobre política, racismo e educação. 

Mesmo jovem, diz que os debates sobre temas tão necessários no país fazem parte do seu cotidiano há algum tempo, seja na escola ou em casa. A internet lhe deu a oportunidade para dialogar com pessoas da sua idade sobre política, por exemplo, e com pessoas de outras faixas etárias. 

O humor é uma arma poderosíssima para quebrar o autoritarismo” – Juca Filho

Lívia destaca que, para falar de questões que geram muitos debates na sociedade, passa por um período de estudos, conversa com amigos e observa o que as pessoas estão falando sobre o tema. “Eu escrevo, faço um pequeno roteiro e monto o vídeo”, relata. Além de Consuelo, há um ano ela faz o Bernardinho, uma interpretação do perfil de “macho escroto”. Nesse personagem, Lívia tentar representar o que um homem não deve ser. 

Mas o posicionamento político de um influenciador digital, além dos seguidores, atrai os haters, que causam desconforto. Lívia afirma que 20% das pessoas que lhe seguem são haters e estão presentes em suas redes para atacar, com mensagens como “volta para seu país”– em referência à Argentina. 

Para Kaíque, haters devem ser ignorados. Bloqueado no Twitter pelo perfil do presidente, fez vídeo comemorativo e escreveu na legenda: “Os dias de glória chegaram”. Kaíque também sofreu xenofobia e escreveu no Twitter: “Acho o auge umas pessoas achando que me ofendem me chamando de baiano. Véi, se quiser me ofender mesmo me chama de, sei lá, strogonoff sem batata palha”. 

“Fazer conteúdos tristes para vidas desgraçadas”. Essa frase está escrita na biografia do Instagram de Lívia. Ela explica que, na pandemia, a maioria das pessoas está triste ou “desgraçada”. “Então tem aquele sentimento de união” – diz, rindo, sobre a situação caótica mas que, para ela, pode ser compartilhada com mais leveza através do humor. “Na televisão as pessoas estão vendo mais tragédias. Elas vão ao Instagram e ao Youtube para rir. Eu consumo muito meme, gosto muito. É uma forma do brasileiro rir de si mesmo”, comenta. 

A internet trouxe transformações para o humor, e está modificando a faixa etária de quem está produzindo esse humor no meio digital. “Quem já nasceu com a internet tem mais facilidade de se mover na rede”, considera o roteirista Juca Filho, citando Marcelo Adnet, Gregório Duvivier e o Porta dos Fundos. 

Juca afirma ainda que a situação política e social do Brasil resulta em roteiros para diversos produtos humorísticos. “A gente tinha um lema no Zorra Total, que se mantém: é muito difícil competir com a realidade”. 

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Matéria publicada da Revestrés#46 (agosto/setembro de 2020) que, devido a pandemia, circula online e gratuita.

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