UTF-8bVmlja3RvciBBdHRpbGEgRmxhdmlhIFRvbnkgQWxs-UTF-8bZW4tY3JlAWRpdCBZb3VyaSAgTGVucXVldHRlLmpwZw_660x285_acf_croppedPor influência da mãe, os ouvidos já se haviam acostumado ao reggae. Mas era novidade a imagem dos mega sound systems sendo retirados dos ônibus – enormes, na perspectiva da menina de oito anos – para a montagem da “guerra das radiolas”. Cena comum nos arredores de São Luís, no final dos anos 1980, os embates do reggae impressionaram uma Flavia Coelho recém-chegada do Rio de Janeiro. Não à toa, a hoje cantora e compositora radicada em Paris, referência da música brasileira na França, empresta do ritmo jamaicano a batida de boa parte de seu trabalho.

Coelho nasceu “no Nordeste do Rio”. Feita pela própria carioca de São Cristóvão, a precisão reivindica a origem, nordestina de pai e mãe. Quando pequena, os laços com o Nordeste renovavam-se nas férias, na visita à família do pai, cearense de Varjota, a 263 km de Fortaleza. Guarda, dessa fase, as lembranças de noites embaladas pelo forró, xote e baião. Mas foi com a mudança para São Luís, onde viveu dos oito aos 11 anos, que as raízes se sedimentaram.

Motivada pela doença da mãe, que se apressara para transmitir aos filhos o legado cultural que lhes cabia, a mudança pôs em parêntese a infância do subúrbio carioca. Aquela rotina que alternava escola e observação ativa do ofício de maquiadora da mãe, em cuja clientela prevaleciam os travestis, foi suspensa. Plumas, esmaltes e paetês deram lugar a um cenário no qual a nação rasta, conjugada ao Bumba-meu-boi, é que tinham predomínio.

Mas o reggae do Maranhão e o forró não são as únicas inspirações nordestinas no trabalho de Coelho. Tanto quanto os ritmos regionais e o folclore, os deslocamentos constantes, também aparecem como marca desses anos formadores. A antológica travessia entre o Rio e o Nordeste, aquela inesquecível viagem de “três dias e três noites”, despertou o gosto pela partida. “Éramos nômades ”, lembra a artista.

Sou 26 personalidades, correspondendo a 26 estados do Brasil, com suas 26 culturas diferentes vindas de fora

Ao recordar que, no Rio, sofrera bullying na escola por ser filha de nordestinos – condição que só hoje percebe claramente –, atenta para o sotaque, mantido como se fosse um outro idioma, paralelo ao “carioquês”. Ao que constata: “No Brasil, se você é negro, é negro, se é nordestino, é nordestino, se nasceu no Rio, mas é filho de nordestinos, é nordestino! Se ocorre esse tipo de ‘ditadura’, então sou 26 personalidades, correspondendo a 26 estados do Brasil, com suas 26 culturas diferentes vindas de fora”.

Converteu sua trajetória “paratodos ” em estilo musical. Despontou em Paris, cantando em bares de jazz dos bares do quartier latin ou em meio à efervescência das redes afrobeats, do reggae ao rap, do hip hop ao soul, do funk, da periferia do norte de Paris. Foi ostentando essa diversidade que acabou atraindo parceiros de peso: do papa do afrobeat, o nigeriano Tony Allen, ao guitarista camaronense Bika Bika Pierre, do músico Vicktor-Attila Vagh, que se tornou seu produtor, ao rappeur franco-ruandês, Gaël Faye.

 

Mas não foi sempre assim. Começou a cantar aos 14 anos, quando já morava novamente no Rio, com o pai, estivador. Em dias que nem de longe lembravam a animada vida ao lado da mãe, entrou em um esquema “casa-escola ”. Com o olho na maioridade que já se avizinhava, deu-se um prazo de quatro anos para investir num trabalho que lhe trouxesse a independência necessária e, ao mesmo tempo, lhe permitisse viajar. Seus 1,62 centímetros, fatalmente proibitivos para a carreira de aeromoça à época, levou-a a abandonar esse projeto.

Teria sido entre uma lição de inglês e outra de espanhol, num autodidatismo afoito praticado no canto da cozinha, que vira o anúncio : “Procura-se cantora de pagode”. Parada: Engenho de Dentro. Em dia e hora marcados, a adolescente de São Gonçalo compareceu. “Não cantei bem mas eu tinha tanta vontade de aprender que eles acabaram me dando uma força ”, relembra do teste. Estreia Coelho às escondidas, menor de idade, sem o apoio da família. Impensável, talvez, para os dias de hoje.

Depois dessa primeira experiência, ela acabaria migrando para o forró. Virou vocalista do Delay Duarte e Seus Cabras. Por sorte, foi nessa configuração que o pai a surpreendeu cantando. Adepto ao forró, ele acabou cedendo aos encantos do inusitado nome da banda. Sua carreira tinha, enfim, a benção paterna.

Rio, Paris e outras bossas

A diversidade musical parisiense. Foi essa “miscelânea” que arrebatou Flavia Coelho, quando passava por Paris, em 2002. À ocasião, enquanto integrava programação de evento carnavalesco na cidade, foi percebendo “todo mundo fazendo música do caribe, afro, eslava … e eu reconhecendo nisso minhas sonoridades”, relembra. Selou-se aí o destino. “Se um dia eu gravar, será aqui ”, vaticinou.

Alguns anos se passaram. Em 2006, houve empréstimo em agiota, passagem comprada à prestação, e convite do primo já estabelecido em Paris. Aceitou. Houve morar em 12 metros quadrados, no sétimo andar, sem elevador. Houve descobrir caminho das pedras, esquema dos músicos do metrô, dar “palhinha” num bar aqui, noutro acolá. Houve 10 euros como remuneração. Houve, principalmente, a recusa em limitar-se ao tradicionalmente consagrado: Bossa Nova, pagode e samba. Quando procurou as gravadoras, não topou a única fórmula que eles aceitavam: Brasileira = samba/MPB.

“Eles nao sabem que tivemos Cazuza, Titãs, Barão Vermelho, Edson Gomes, Fagner, Maria Bethania, Metal, Geraldo Vandré ”, diz lembrando que, em termos musicais, a Europa desconhece o que aconteceu no Brasil dos últimos trinta anos. Enfatiza a gratidão a Gilberto Gil, a quem rende loas por ter aberto, no exterior, o caminho para músicos brasileiros das gerações subsequentes. “Se estou aqui, fazendo meu caminho, é graças a ele”, reconhece a cantora, para quem o artista baiano seria a “base da música brasileira internacional”.

Ela explica que, em se tratando de Gil, não se fala de estilo. “Ninguém nunca perguntou que tipo de música ele faz”, afirma com admiração. E assume aí a inspiração: “Minhas músicas sou eu; 100% sou eu e o que vejo, o que vivo, e as histórias do outro. Mas o outro também sou eu”. É isso que busca mostrar quando compõe, conclui.

O fato é que, dez anos depois de ter chegado à França com visto de turista, acumula turnês de 400 shows e três álbuns bem sucedidos: Bossa Muffin (2011), Mundo Meu (2014) e Sonho Real (2016). Relata ainda um histórico de turnês no qual se incluem pautas no Olympia, a mais tradicional casa de show de Paris, e em La Cigalle, a meca da cena musical contemporânea. O sucesso da menina de São Cristóvão não se restringe, porém, à França. Tem feito shows por toda a Europa, chegando a lotar o Queen Elizabeth Hall em Southbank, durante o Festival anual de Jazz, em Londres.

Na suas composições, prosódia e métrica confirmam as origens herdadas do Brasil “de cima”. Quantos ao versos, evocam a mulher apaixonada, do lar, bela o quanto pode e com recato em vias de correção (Pulo por cima). “Quis homenagear esse tipo de mulher, diferente de mim, com um ‘bolerão’ à la Elizeth Cardoso”, explica. Mandam um recado para a colunista Danuza Leão, em seu incômodo de dividir avião com porteiro (Se Ligue). Retratam o sistema carcerário brasileiro (Sunshine) ou ainda reivindicam a igualdade profissional de gênero. Detalhe: fluente, hoje, no francês, ela canta quase exclusivamente em português. E se ocorre de esquecer a letra, conta, o público está lá, a postos, para corrigi-la.

E, sobre tudo, há o sorriso, sempre carmim. Resistente aos 7° graus que agravavam o deserto das ruas lá fora, o sorriso de Flavia Coelho exubera na cave sombria do 5ème arrondissement, estúdio musical onde é aguardada para a entrevista. Como quem entrega as armas, ela oferece sua história, num feriado de Armistício.

(Matéria publicada na Revestrés#28 – dezembro de 2016 / janeiro de 2017)