Quatro irmãs, baianas, nascidas na cidade de Ibirataia e compartilhando o mesmo dom: cantar. Cyva, Cybele, Cinara e Cilene formaram um grupo vocal, primeiramente conhecido como “As baianinhas”. Da Bahia para o Rio de Janeiro foi um pulo, e lá conheceram aquele que viria a ser “a pedra fundamental” em suas carreiras, Vinícius de Moraes. Foi o compositor, junto com o amigo Carlos Lyra, que rebatizou o grupo no início dos anos 1960. Surgia então, o Quarteto em Cy.
Cyva foi a primeira das irmãs a ir para o Rio de Janeiro, para onde todas iriam no início da carreira na década de 60. Foi lá que conheceram Vinícius, que se tornou amigo e padrinho do quarteto ali formado. O ‘saravá’ de Vinícius foi, sem dúvida, o trampolim da carreira das meninas em Cy. Mas foi um piauiense de Parnaíba que viveu com elas um dos momentos mais representativos de sua carreira: o show Resistindo, de 1976. Pela primeira vez as cantoras estavam sozinhas no palco, desinibidas, seguras, e cantando com um fundamental domínio de palco. Que nos desculpem o poeta, mas ali, durante os meses de exaustivos ensaios que antecederam a temporada de shows, as baianinhas de Vinícius viraram as “minhas em cy”, de Benjamim Santos.
Morando no Rio de Janeiro, Benjamim foi convidado para dirigir o espetáculo. Ele relembra o primeiro encontro, na casa de Cynara onde viu de perto o troféu que a dupla Cynara e Cybele ganharam no III Festival Internacional da Canção, em 1968, cantando Sabiá de Chico Buarque e Tom Jobim e enfrentando uma chuva de vaias de uma juventude politizada que vibrava por Geraldo Vandré e sua “Pra não dizer que não falei de flores”. As baianas levaram o prêmio. “Mal me sentei, vi na estante o Galo de Ouro, aquele troféu do Festival da Canção. Ali deu-se o marco inicial do show Resistindo”, conta Benjamim.
Numa época em que era comum os shows musicais serem divididos em atos, como nos espetáculos teatrais, Benjamim elaborou um cuidadoso roteiro. “Era o meu primeiro show no Rio, mas acreditaram em mim e começamos a trabalhar e foi trabalho pesado, quer dizer, era leve-leve mas praquelas quatro menininhas era pesadíssimo”, relembra Benjamim em carta atual ao Quarteto.
A direção de Benjamim Santos levou as quatro a terem uma importante experiência com performances. Os jornais divulgavam “um show do Quarteto em Cy andando pelo palco e falando”. O roteiro incluía também poemas de Cecília Meireles e Carlos Drumonnd de Andrade. A biografia recém-lançada do grupo refere-se ao show como sucesso absoluto de crítica, que teve na plateia a presença de ícones da música nacional e internacional, como o pianista e arranjador francês Michel Legrand, Milton Nascimento, Caetano Veloso, entre vários outros e, como não podia deixar de ser, Vinícius de Moraes. “O show foi considerado pela crítica como um divisor de águas na carreira do Quarteto em Cy, que completava 11 anos. As meninas tinham deixado para trás os quatro banquinhos diante dos pedestrais de microfones, que costumavam deixá-las estáticas no palco, para arriscarem coreografias que levavam os corpos a acompanharem as vozes em movimentos e intenções” (As meninas do Cy – Vida e Memória do Quarteto em Cy, Inahiá Castro – Coleção Aplauso)
Três meses após a estreia no Rio, a censura proibiu que as meninas cantassem “O ronco da cuíca”, música de Bosco e Blanc, que fechava o primeiro ato. A solução encontrada passava o recado tão bem quanto a letra: a música era apresentada apenas instrumentada e, nesse momento, as meninas se viravam de costas para o público enrolando os fios dos microfones nos pulsos, atrás do corpo, como que algemadas. Ideia do diretor Benjamim.
Benjamin Santos foi maravilhoso quando acreditou que tínhamos capacidade para enfrentar um palco. […] Agradecemos demais a ele, por todo o empenho e a sua criatividade. Amamos o Benjamin , para sempre
“Assim como Vinícius foi o nosso lançador, o show Resistindo nos empurrou para o show-business”, reconhece Cynara. “Benjamim Santos foi maravilhoso quando acreditou que tínhamos capacidade para enfrentar um palco. Ele nos deu a régua e o compasso para nos sentirmos bem à vontade nos palcos da vida. Agradecemos demais a ele, por todo o empenho e a sua criatividade. Amamos o Benjamim, para sempre”.
De lá para cá, quase 40 anos se passaram. Com pequenas alternâncias na formação, há 32 anos o Quarteto se mantém com Cyva, Cybele, Cinara (esta, rebatizada de Cynara, para se adequar ao nome definitivo do grupo) e Sonya. “É muito difícil manter um grupo, principalmente se for só de mulheres”, comenta Cynara em entrevista à Revestrés. “As triplas tarefas que as mulheres tem, às vezes impedem que o grupo se mantenha coeso, mas, no nosso caso, enfrentamos tudo, exclusivamente por amor à arte e à música em si. Ou em cy, como preferir.”
Viajando pelo Brasil com o show comemorativo ao centenário de Vinícius de Moraes, as meninas em Cy ainda carregam um quê das quatro baianinhas que ele escolheu – e que escolheram Benjamim. Não podia haver nome mais apropriado para um espetáculo das quatro cantoras que hoje formam o grupo a mais tempo junto na história da MPB. Naquele show histórico, quase profetizando, elas avisaram: “Eu vou resistir, eu vou”.
Rio de Janeiro, setembro de 1976. Na reta final dos ensaios para o show “Resistindo”, o diretor Benjamim Santos escreve uma carta as suas “meninas em cy”, com conselhos tão valiosos quanto emocionados.
Março de 2013. Quase 40 anos depois, Revestrés pede ao diretor que relembre a história do Resistindo em nova carta ao Quarteto em Cy.
E elas respondem.
__________________________
Cartinha pras Em Cy
Minhas queridas:
desde que nos conhecemos, no inverno carioca de 76, vocês se fizeram pra mim as Minhas Em Cy. As antigas Baianinhas do Vinícius tornavam-se as Minhas Em Cy e, na verdade, nem eram mais todas em Cy pois Cilene e Cibele estavam “de licença” e então eram Cinara, Cyva, Dorinha e Soninha: Ci, Cy, Dó, Son, que me soava Si-si-dó-sol, porque tudo de vocês pra mim era melodia embora ficassem horas detalhando harmonias. Lembram que nosso primeiro encontro foi na casa da Cinara? Wellington Luís que me levou. Mal me sentei, vi na estante o Galo de Ouro, aquele troféu do Festival da Canção. Ali deu-se o marco inicial do show Resistindo. Era um show com texto e era texto do já famoso Aldir Blanc e com cenário do Melo, artista plástico. Sobretudo ia ser o primeiro show em que vocês iam falar e cantar dentro de um cenário próprio para o show. E mais: vocês queriam cantar de pé, segurando microfone e até andar pelo palco em meio ao cenário. Jamais tinham feito isso. Por sorte, me dei bem e vocês gostaram de mim logo-logo. Era o meu primeiro show no Rio, mas acreditaram em mim e começamos a trabalhar e foi trabalho pesado, quer dizer, era leve-leve mas praquelas quatro menininhas era pesadíssimo. Trabalho de voz, de fala, de interpretação, de emissão, de postura, de gesto, de ficar-em-pé, de caminhar e, sobretudo (o que era mais difícil) caminhar cantando. Dois meses que pra mim foram moleza e pra vocês, rala-rala. Pra mim, o meu rala-rala foi convencê-las de que o roteiro do Aldir não chegava a ser roteiro; era apenas uma fieira de música-atrás-de-música, sem qualquer dramaticidade. E, mais difícil ainda, fazer que percebessem que o texto do Aldir era muito ruim, quase péssimo. E o cenário do Melo? Não tinha nada a ver. Eu queria um show visceral, como era o repertório que vocês me apresentaram; um show de emoções fortes e que vocês passassem esses sentimentos para o público. Pra isso, ganhei no roteiro, porque apresentei um roteiro meu, com o mesmo repertório do Aldir, mas um roteiro consistente, dramático, dividido em Sete Tempos, cada um referente ao seu contexto de canções. Exemplo: no penúltimo Tempo, chamado Morte, vocês cantavam Funeral de um Lavrador, de pé como se estivessem diante de uma cova e, no bloco final, Renascer, vocês, caminhando brejeiras e alegres, cantavam toda a felicidade de viver. Assim, o roteiro do Resistindo foi todo criado por mim, em cima de um repertório apresentado pelo Aldir. E o texto? Fiz-que-fiz e tanto-que-fiz que vocês aceitaram cortá-lo por mais da metade. Ficou só mesmo o que podia ser falado sem desmerecimento para o autor. Aí veio o cenário. Ganhei também. Deixaram o Melo só com a programação gráfica e eu mesmo criei e executei o cenário, todo de papel crepom lilás e rosa, aquelas luminárias antigas das casas do nosso interior e cortinas de crepom trabalhado a mão. Isso tudo enquanto o Wellington fazia a produção e a gente ensaiava, os jornais divulgavam “um show do Quarteto em Cy andando pelo palco e falando” e vocês vivendo um momento mágico na vida, escolhendo os trajes comigo nas confecções de uma prima da Dorinha, acho que era Alice Tapajós, e o dia da estreia chegando, vocês completamente tomadas pelo clima de estreia, a Dorinha bate com o carro, vinha pensando no show e bateu, e a Cinara quase teve um aborto durante o ensaio geral, enfim: teve de tudo. Té que teve a estreia, o Luís Cláudio dando show no violão, o Luizão Maia no baixo, vocês tirando de letra o canto, a fala, o corpo, o andar, o gesto, a comunicação com a plateia, a maravilhosa estreia, o público de pé, aplausos e gritos. Era o Resistindo no palco, o mínimo palco do Fonte da Saudade que se fez grandioso para as emocionadas apresentações do Quarteto em Cy e era a primavera de 1976. Agora, tra-la-lá de anos depois, eu moro na minha terra de nascimento e vocês estão em Teresina fazendo show, um show que com certeza tem algo de mim como eu tenho em mim algo e mais algo de vocês. Ah, sim, estou doido pra ler o livro sobre o Quarteto em Cy que, eu soube, acaba de ser lançado. É a história de vocês, uma história que está no miolo da música brasileira. E a Revestrés que se encarregue de enviar meus quatro beijos de 2013, um para cada Em Cy.
Benjamim Santos
_____________________________
Rio de Janeiro, 11 de março de 2013.
Oi, Beja, querido
Era assim que eu sempre te chamava, lembra?
Pois bem, aquilo tudo que você escreveu na sua carta é a mais pura verdade. Tenho as mais lindas lembranças dos tempos do Resistindo. Foi um show quase catártico, pois você conseguiu tirar leite da pedra. Éramos quatro garotas sem noção de palco, com muita vontade de mudar a nossa postura de menininhas, e você fez com que mudássemos sem sofrer. Aliás, sofrendo só um pouquinho, pois ali nós descobrimos que, para evoluir, tínhamos de deixar pra trás uma certa ingenuidade e sermos mais mulheres, assumidas, seguras, de personalidades fortes e decididas. Assim foi. E nunca mais esquecemos os seus ensinamentos. Ficou pra nossa história.
Palco lindamente arrumado, iluminado e colorido, com aquelas velas que acendíamos um pouco antes do começo do show, que lindo! E um roteiro elegante, sensível e criativo (apesar dos textos herméticos), banda maravilhosa, músicas divinas. Tinha tudo pra dar certo, né. E deu.
Você foi craque e definiu a nossa maneira de usar o palco, a ribalta, nossos movimentos se concatenaram, nada sem razão de ser. Muito lindo aquele espetáculo, Beja. E até hoje, me falam dele, pessoas que estiveram presentes e nos viram crescer a partir dali.
Bem, foi lançada a nossa biografia “As meninas do Cy”, escrita pela Inahiá Castro, uma jornalista tb muito sensível e que adora o que fazemos. Ela foi outra que vislumbrou uma história bonita de ser contada, de uma outra maneira, agora escrita. Você vai ganhar um livro. Estaremos ai na sua terra dia 18, exatamente dia de aniversário da Cyva (olha que coincidência boa), e faremos uma homenagem àquele que tb foi um desbravador do Quarteto em Cy, a nossa pedra fundamental. Vinicius é a glória!
Esperamos te ver, Beja, pra matar um pouco as saudades.
Bj grande e viva nós! (você e todos da arte).
Cynara (Quarteto em Cy)
—
Benja, meu querido,
que bom ter notícias suas! Que bom saber que você tem boas recordações de nós! É claro que o “Resistindo” foi um divisor de águas para a gente! Você nos ensinou tanto…Mas não se esqueça de que nos dirigiu também em “Canções do Amor em CY”, com as 3 Cys e mais a Glória Calvente, no palco do Rival. Depois você sumiu, nós estivemos sem notícias suas um tempão, mas agora tem a Internet e eu não quero mais perdê-lo de vista! Já não podemos ser chamadas de “menininhas”, são 48 anos de carreira, afinal; mas continuamos suas discípulas, sempre, agradecendo àquele rapaz que nos fez caminhar pelo palco, e lembrando tudo o que nos ensinou naquele tempo, em que se fazia um mês inteiro de shows, com casa cheia. Com a maior gratidão e você em meu coração, aguardo o nosso encontro, em Teresina.
Carinho,
Cyva.
(Matéria publicada na Revestrés#07 – Março/Abril 2013)