Quando se casou pela segunda vez, Célia largou a prostituição. Conheceu Genivaldo Alves num bar e boate criados por ela em Cajazeiras, interior do Pará, onde recebia garotas que viviam na prostituição. Genivaldo adoeceu dos rins e a família se mudou para Teresina. Foi então que Célia Gomes, hoje com 54 anos, se reinventou: participou da fundação da Vila Irmã Dulce, no final dos anos 1990, considerada hoje a segunda maior ocupação da América Latina, onde ainda mora. E se reconectou às prostitutas. Conhecedora das dificuldades da categoria, criou uma associação militante incomum: a Aprospi – Associação das Prostitutas do Piauí – que preside até hoje. Viu as ruas de barro da Vila Irmã Dulce ganhando asfalto, o céu disputando espaços com prédios e pessoas “invisíveis” ganhando cara, nome e militância. “Quando cheguei tinha umas cem casas, de barro e palha, muita gente, tipo formiguinha. Comecei a aprender a fazer militância aqui, me politizar e saber que a gente podia reivindicar nossos direitos”. Enquanto o bairro crescia, Célia levantava uma bandeira: “Prostituta é comunidade. Tem que andar de mão dada, ninguém solta a mão de ninguém”.

Célia Gomes | Foto: Maurício Pokemon

Mas a história de Célia começa em São Luís, no Maranhão, onde nasceu e viveu os primeiros anos, conheceu o primeiro marido e teve duas filhas. Após o divórcio, fugiu para Tucuruí, no Pará, onde “não tinha parente nem aderente”, conta. “Fiquei desnorteada e parei num prostíbulo”. O passo seguinte foi migrar para bordéis nas áreas de garimpo, com pouco mais de vinte anos, pouca teoria – “Não havia debates sobre violência sexual e física” – e muito conhecimento prático em violência. “Lá ou você baixava a cabeça pra não morrer ou fugia sem deixar pistas. Dono de bordel e garimpeiro era gente bruta”, lembra Célia, que juntou pepitas de ouro, fugiu e chegou em Cajazeiras, onde montou negócio recebendo jovens prostitutas e conheceu o segundo marido, que visitava o local.

Quando chegou em Teresina e precisou vender bolo frito de porta em porta nas primeiras horas da manhã, sempre encontrava meninas se prostituindo. Viveu os primeiros tempos na pensão de Gonçala, onde conheceu muitas delas no Morro do Querosene, antiga zona de prostituição no bairro Piçarra. Em 2009, quando foi criada a Associação de Moradores da Vila Irmã Dulce, ela já fazia ações pontuais de entrega de preservativos nos bordéis da região. Junto com a companheira Francisca, criou a Aprospi. É conhecida no meio e toma para si o papel de representar prostitutas que têm medo de mostrar o rosto e enfrentar preconceitos.

CABEÇA A PRÊMIO E CONQUISTAS

É no papel de militante à frente das prostitutas que, sem terminar o iniciado curso técnico em Contabilidade, Célia dá palestras, viaja pelo Brasil e diz que fez amigas na Europa e América Latina. “Hoje ‘dou lives’ para todo o país. Fiquei muito tempo só observando. As pessoas pediam pra eu falar, mas ficava na minha. Fui incentivada por uma amiga francesa. Nas lives passo mais de uma hora conversando sobre ativismo, feminismo, direitos humanos”, diz.

“Hoje ‘dou lives’ para todo o país. Passo mais de uma hora conversando sobre ativismo, feminismo, direitos humanos.

Tudo começou em uma palestra em Florianópolis, onde pediu para falar pela primeira vez e não parou mais. “Era pra ser cinco minutos, mas me deram mais três”. E avalia a que se deve o sucesso de seu discurso: “Eu falo sem frescura, sem linguajar enrolado. Teve uma oficina que um médico falou ‘cefaleia’ e o povo não sabia o que era. Tem que ter metodologia do povo. Tem meio mundo de gente que não sabe falar com vulnerável”.

Célia diz que conhece quase todos os bordéis de Teresina e garante que tem passe livre para realizar projetos, doações e orientações de saúde e direitos humanos. Durante a pandemia da Covid-19 sentiu falta de mulheres em diversos pontos de prostituição da cidade e, em abril de 2021, fez rondas dia e noite e criou seu método para construir um mapa de mulheres que não estavam mais nas paradas de costume. “Elas estavam deixando a prostituição e virando moradoras de rua e usuárias de drogas”.

Célia descobriu que, exceto às sextas-feiras, não havia ações sociais de atendimento a essas mulheres e decidiu distribuir quentinhas para moradores de rua e profissionais do sexo. A ação é mantida por campanhas de doações de alimentos e as quentinhas são preparadas por Célia e outras integrantes da Aprospi. São distribuídas no turno da noite, com a ajuda de um carro disponibilizado pela Fundação Municipal de Saúde de Teresina, órgão da Prefeitura Municipal. “Não conhecemos quem são as pessoas que recebem as quentinhas, mas percebemos que, de pouquinho, estamos alcançando essas mulheres que estavam sumindo”, frisou.

 “Eu falo sem linguajar enrolado. Um médico falou ‘cefaleia’ e o povo não sabia o que era. Tem que ter a metodologia do povo. Tem meio mundo de gente que não sabe falar com vulnerável”.

Uma das conquistas da Aprospi foi a introdução da camisinha feminina no dia a dia das mulheres. Antes, o preservativo era visto como desconforto. “Criei minha metodologia com elas: falei que segurava o fluxo da menstruação na hora da relação e que ela se protegia e protegia o cliente. Menina, hoje tem gente morrendo de desinformação”, pontua.

Célia se afirma feminista. “Ser feminista é colocar a cabeça a prêmio. A gente tá dentro de uma sociedade guiada por um governo cafona, careta, ultrapassado, é desgoverno”. Com a perspectiva de ser chave de mudança e com o slogan “mulher fazendo a diferença”, Célia tentou o cargo de deputada estadual em 2018. Não se elegeu, obtendo apenas 325 votos. Percebeu que não tinha paciência para os trâmites da política partidária e seguiu no ativismo.

DE BELEZA E FÉ

Viúva em 2017, perdeu ainda uma filha. Católica, é devota de Nossa Senhora de Fátima, faz promessas e diz que é atendida. Por conta de uma bênção para o neto, todo mês de maio usa azul e branco. Se apegou a São Francisco por sua própria saúde e, em troca, se veste de marrom todos os anos, de 1° de setembro a 5 de outubro. “Tudo na minha vida é sustentado na fé”.

Célia Gomes | Foto: Maurício Pokemon

 

É vaidosa, gosta de maquiagem, perfume e estar bem vestida. As unhas sempre pintadas, as mãos balançando pulseiras e anéis. Ao andar com as filhas, são confundidas com irmãs: “Elas não gostam, mas eu adoro”. Durante muitos anos alisou os cabelos crespos, mas teve contato com mulheres que lutavam pela valorização da beleza afro e adotou cabelos cacheados artificiais na cor rubi. Detesta usar óculos e seus olhos sempre estão ressaltados, com lápis e cores nas pálpebras. “Nunca vou simples para um lugar, só se for emergência. Não sei quando vou encontrar meu príncipe de novo”, fala sorrindo.

 

Apesar de brincar com a beleza, diz que não pensa mais em casar. Agora se dedica à família e à militância. Tem prazer em ver a casa cheia de netos, com as crianças brigando para ver quem vai deitar em sua cama. Gosta de histórias, de cinema, cerveja gelada, música romântica, receber visitas e festas surpresa. “Tenho necessidade de amar e ser amada. Tenho medo é de ser covarde com as pessoas”.

“Tenho necessidade de amar e ser amada. Tenho medo é de ser covarde com as pessoas”.

Em sua casa andam poucos homens. Só os que ela confia.“Minha casa é feminina e feminista”. Gosta de agradar quem simpatiza. Quando soube que Revestrés a visitaria, fez uma das coisas que mais ama: cozinhar. Na mesa havia baião de dois, feito com feijão verde, macarrão no alho e óleo, frango frito – bem crocante –, carne moída com batatas em cubos e salada verde. O banquete foi servido em louças Duralex, na cor marrom. O almoço serviria mais de dez pessoas, mas na casa só havia cinco mulheres, dois gatos e uma cadela. Diz que se acostumou a fazer comida contando com quem chega sem avisar. “Na casa de Célia, todo mundo passa bem”.

Diz que, se voltasse a estudar, se dedicaria ao Direito, para entender as leis e aplicá-las. Conta que continua jogando na loteria. O sonho é construir uma fundação que acolha filhos de prostitutas em vulnerabilidade. “O local teria uma quadra de esporte, sala de balé, quartos cheios de crianças e muita esperança”. Já acertou cinco pontos na Mega-Sena. Mas…“Foi de bolão, com mais de 70 pessoas espalhadas por Teresina. Tirei só seis mil reais. É mole? Sou a única mulher que fez uma quina e não ficou rica”.

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Publicado em Revestrés#49.

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