“Você pode é ir atrás”, dizia o homem com habilidade impressionante em comer peixe com a mão e atrair atenção dos ouvintes à história que contava. “Por trás da conquista de um grande homem, tem sempre uma grande mulher”. Raquel, que escutava atenta a narrativa do pescador, adiantou-se: “Eu quero saber é quando chegará o dia em que falaremos das conquistas das grandes mulheres”.
O clima de jantar em família na barraca me atraía, principalmente, por esses debates – quando Raquel trazia argumentos científicos, que contrapunham a sabedoria popular. Era a segunda vez dela naquele lugar, que conhecera no último reveillon. Gostou tanto que estava de volta, abrindo mão de uma viagem para a Disney. Trocou a cidade mais visitada dos Estados Unidos pela comunidade pouco frequentada na zona costeira do Ceará.
Estou em Caetanos de Cima, região que pertence ao Assentamento Sabiaguaba, localizado em Amontada, a 183 km de Fortaleza. Seus pouco mais de 200 moradores, sertanejos, descendentes de indígenas e pessoas escravizadas, dividem-se entre atividades de pesca artesanal e agricultura familiar. Por ali se conta que Caetano, o primeiro morador que deu nome à região, era um escravizado em fuga que ali refugiou-se.
O mar é tudo para quem vive em Caetanos. É dele que vem o alimento, o lazer, as histórias e a inspiração: existe uma conexão que transcende a pura relação econômica. Os homens pescam, as mulheres plantam e colhem. O modo como Caetanos se organizou – sócio, cultural e economicamente – fez a região despontar como observatório da prática do turismo comunitário.
O casal Ana e Valyres, meus anfitriões, recebem pessoas em sua residência por temporada e proporcionam algo que fica entre o conforto de uma casa no campo e o lazer de um chalé de praia. Em períodos mais lotados, os três quartos disponíveis abrigam até 12 pessoas. Redes de retalhos preenchem a palhoça, levantada para ser o espaço de convivência entre os hóspedes. As refeições são servidas ali em uma mesa ampla: quase toda a alimentação é à base de peixe e mandioca, além da salada orgânica e a tapioca de farinhada (aquela mais grossinha, com coco ralado).
Ana é a segunda esposa de Valyres – o casal é caetanense, mas se conheceu em Fortaleza. Estão juntos há mais de uma década e têm um casal de filhos, Pablo, de 12 anos e Sophia, de 9. Foi Pablo que me proporcionou a primeira aventura ao chegar ali: ele estava aportado em uma bicicleta à minha espera. No primeiro instante fui tomada por medo e só muito depois entendi tratar-se de um sentimento extremamente urbano.
De bicicleta, o garoto, exímio desenhista e fã de Van Gogh, guia-me até a praia – a quase três quilômetros da casa onde mora. O caminho por dunas de areia fofa não é exatamente a trilha mais recomendada para sedentários. Fico sem fôlego e o coração bate mais rápido que a capacidade arterial de transfundir o sangue. Pergunto a Pablo, por uma curiosidade súbita, se, em caso deu cair morta, como ele carregaria o cadáver e a bicicleta. Ele é categórico: “Eu só levaria a bicicleta”.
Não era insensibilidade. A bicicleta era o maior sonho de Pablo. O pai, gestor nato, aconselhou que ele precisava ter uma meta. “O que é meta, ele me perguntou, e eu me compliquei para responder”, diz o pescador, muito mais da prática que da teoria. Isso foi em julho do ano passado, mês do aniversário de Pablo. Para a avó, o garoto pediu um presente incomum: um “bacurim”, designação cearense para filhote de porco. “Parecia um ratinho de tão pequeno”, lembra Valyres. Pablo passou longos cinco meses alimentando o animal – não tinha pressa, mas não perdeu de vista, nem por um instante, a história do pai sobre a tal meta. No fim daquele ano, o porco cumpriu sua sentença: 45kg vendidos a 450 reais para a própria comunidade. Rendeu a Pablo a compra da bicicleta. Pagou à vista.
A história me surpreende pela paciência e determinação de uma criança em pleno século XXI. A única escola da comunidade, onde estuda, inclui na grade curricular disciplinas como educação no campo. Quase não viveram, Pablo e a irmã, a fase da televisão, pulando diretamente para a internet. Na casa da família, o computador fica na sala e é disputado por eles para ver, principalmente, canais no Youtube. Sophia adora os clipes da Anitta, e Pablo gosta de desenhos. O único consenso entre os dois é que nenhuma atração naquela máquina pode ser melhor que uma tarde de brincadeiras na praia.
Para Ana, ao contrário, o computador é coisa séria – é através dele e da internet que ela fecha pacotes para hospedagem. Hoje, Caetanos de Cima está em rede, não só a de computadores – a comunidade integra a Rede Tucum de Turismo Comunitário. Trata-se de uma articulação formada em 2008, no Ceará, por grupos de comunidades da zona costeira que realizam o mesmo tipo de turismo – esse pautado na experiência, não no luxo e no consumo. É pelo site da Rede Tucum – e pelo Facebook de Ana – que muitos contatos chegam.
A principal diferença entre o turismo comunitário e o turismo da forma como conhecemos e nos acostumamos a praticar está no respeito aos modos de vida e ambientes locais – o foco não está no serviço e na exploração, mas sim na troca cultural e possibilidade de conhecer os modos de vida de comunidades tradicionais. É a lógica do conhecer, sem alterar. Conviver para agregar. Em Caetanos, a praia e o mar, embora formem um cenário incrível, acabam ficando em segundo plano, diante da história de resistência e preservação comunitária.
A história de Caetanos anda, de mãos dadas, com a história das mulheres daquela região. Antes silenciadas, foram elas que protagonizaram um dos episódios mais marcantes na luta pela garantia do território e autonomia econômica da comunidade. “Foi em 97, um empresário estrangeiro chegou cercando tudo e se dizendo dono da praia”, conta Gracielle Sousa, cabelo solto ao vento e simplicidade praiana. “Ele dizia que ia abrir um resort e apresentou documentos falsos para provar a propriedade”.
Gracielle era só uma criança na época, mas a história tem sido propagada por todas as gerações, para que não se esqueçam o quão simbólica foi a luta das mulheres de Caetanos – elas se uniram em mutirão, no dia 8 de março daquele ano e levantaram com as próprias mãos uma barraca ocupando a região da praia. Surgia ali o Restaurante das Mulheres.
A iniciativa feminina – ou o reconhecimento dela – demonstra uma total mudança de conceito sobre a articulação das mulheres naquela comunidade. Para se ter uma ideia desse rebranding, até bem pouco tempo o Grupo de Mulheres se chamava “Grupo das Esposas”, dando às mulheres um lugar de passividade que nunca ocuparam. Atualmente, 14 mulheres fazem parte do grupo que decide ações na comunidade e comanda o restaurante. “Antigamente alugávamos por temporada, mas algumas gestões nos incomodaram, principalmente pelo desrespeito às mulheres”, explica Gracielle. Ela tinha 17 anos quando decidiu, junto com a mãe, a artesã Deninha, pegar para si a missão de comandar o restaurante.
De barraca de bebida o local passou a ser um verdadeiro restaurante – a localização estratégica, na beira da praia e em frente ao galpão dos pescadores, onde eles desembarcam das noites em alto mar trazendo peixes frescos – garantem os pratos que compõem o cardápio do local – além das verduras e legumes dos quintais produtivos da região, da produção da casa de farinha e do coco abundante dos coqueirais – quase nada que é consumido ali vem de atravessadores.
O restaurante também ganhou o toque jovial de Gracielle na pintura, com palavras de ordem bem conhecidas: “Lugar de mulher é onde ela quiser” e “Comer é um ato político” são alguns dos dizeres que enfeitam as paredes do local. “Eu queria que o restaurante tivesse um aspecto feminino e ao mesmo tempo contasse um pouco a história do lugar”, comenta a administradora. Gracielle alterna os dias no comando da barraca de praia com idas a Itapipoca, onde estuda Administração Pública na Universidade Estadual do Ceará.
“Eu sempre me senti assim, em busca por direitos iguais para homens e mulheres, eu só não sabia que isso tinha um nome”, diz a mulher com jeito de menina, tentando explicar o que entende como feminismo. Naquele dia o fim de tarde estava exuberante em Caetanos e Gracielle sacou o celular para registrá-lo – é ela quem comanda as contas de Instagram e Facebook da comunidade. O vem e vai das ondas que balançam a jangada marca o tempo em outro compasso. A imagem é postada nas redes com a frase: “Felicidade é um fim de tarde olhando o mar”.
“O turismo comunitário trabalha a economia solidária”, diz Gracielle. “A gente não quer a comunidade cheia ao ponto de não conseguir atender com a nossa produção”, explica, eximindo um dos princípios básicos da economia clássica. O discurso é unânime na comunidade. Os caetanenses entenderam cedo que algumas coisas devem ser conservadas, outras problematizadas, e que velho e novo podem conviver perfeitamente em sintonia. E que o interesse pessoal não precisa estar totalmente oposto à benevolência – todos podem caminhar juntos, de mãos dadas, pela praia, numa tarde de sol.
Publicada na Revestrés#35- Março-abril de 2018.