Essa história todo mundo conhece: um dos maiores expoentes da Tropicália que se matou aos 28 anos. Mas será mesmo que todo mundo conhece? Não foi essa a resposta que o produtor musical carioca Marcus Fernando obteve. “Até hoje as pessoas não sabem quem é Torquato Neto”, diz ele. “Quando pergunto: ah, e aquela música do Caetano? ‘Essa eu conheço’”, respondem. Pesquisador e produtor musical, o projeto de um filme sobre um dos ideólogos do Tropicalismo estava baseado em uma convicção: “Eu sabia que Torquato era, acima de tudo, uma figura que precisava ser redescoberta porque tinha uma obra fantástica e as pessoas não conheciam”.

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Porém, a ideia de um filme sobre o poeta, jornalista, cineasta, letrista e compositor não era, nem de longe, a coisa mais simples do mundo. Enquanto se tem inúmeros registros sonoros e audiovisuais de outros ícones do Tropicalismo, de Torquato não existe sequer uma gravação visual com áudio. Tudo se resume a cartas, poemas, composições, artigos de jornais e filmagens em Super-8. Ao dar essa declaração para o Jornal O Globo, Marcus Fernando não contava com a descoberta do radialista gaúcho Vanderlei Malta da Cunha, que encontrou uma entrevista feita por ele mesmo nos bastidores do IV Festival da Música Brasileira da Record, em São Paulo, em novembro de 1968. Além de Torquato Neto, a fita continha entrevistas com Tom Zé, Rogério Duprat e Caetano Veloso.

Acontece que a voz grave e arrastada divulgada em 2014, na verdade, não coincide exatamente com o que seria a voz de Torquato Neto na época. “Para mim, aquilo nunca combinou com ele, que parecia uma pessoa bastante eloquente”. Submetida a um tratamento e, através das demais entrevistas gravadas na mesma fita, o técnico de som chegou à frequência do que seria a real voz do poeta. “Que é bastante diferente daquilo que se ouviu em um primeiro momento”, revela o produtor.

Ainda assim, o único áudio do artista, narração pontual sobre um festival de música nos anos 60, não era capaz de dar conta da variedade de fontes e materiais que um documentário com mais de uma hora de duração exigia. Contextualizado com cenas de Gal Costa no programa Fantástico, da Rede Globo; da cantora Elis Regina na TV Record; trecho do filme Pierrot le Fou (no Brasil: O Demônio das Onze Horas) de Jean-Luc Godard e referências marginais, a produção ainda necessitava de um elemento: a voz de Torquato Neto.

Foi o pernambucano Jesuíta Barbosa, que atuou recentemente no filme Serra Pelada (2013), nas novelas Ligações Perigosas (2016) e Justiça (2016), o responsável por encarar a missão de interpretar o espírito inquieto e vanguardista de Torquato Neto. “Em todos os textos, até mesmo nos mais culpados e dolorosos, tinha sempre um tom de deboche. Com essa narração, a gente tentou chegar como Torquato diria aquilo ali”, comenta Marcus Fernando.

Em produção desde 2014, o filme reúne extensa lista de entrevistas: Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé; piauienses que conviveram com Torquato Neto em Teresina ou no Rio de Janeiro, como o psiquiatra Edmar Oliveira, a historiadora Claudete Dias que atuou no filme Adão e Eva: do Paraíso ao Consumo (1972), o primo e jornalista Paulo José Cunha e a tia e madrinha de Torquato, Yára Cunha, entre outros. “Como os pais já tinham falecido ela é, para a gente, a figura principal da família porque nos deu essa visão de como era a relação com os pais e como a mãe viu sua saída de casa”, conta o produtor.

Mesmo ainda em produção, o documentário já contou com desenrolar inusitado. Prestes a sair de casa para dar depoimento ao filme, ainda em 2014, o compositor Ronaldo Bastos publicou em sua rede social poema que ganhou de Torquato Neto quando este ainda estava em Paris, datado em 6 de setembro de 1969. A cantora Joyce Moreno foi a primeira a comentar: “dá samba”. O compositor Celso Fonseca não deixou passar: “ai, ai, posso?”.

Em pesquisa no acervo de George Mendes, publicitário e primo de Torquato, Marcus Fernando encontrou entre as anotações uma lista de músicas datilografada que dizia “rancho com Joyce”. Viu a postagem e não perdeu tempo: “Tudo leva a crer que ele pretendia fazer uma parceria com a Joyce. Por esse motivo acho mais do que justo que a Joyce seja a parceira. Com a bênção do Ronaldo, a quem o poema foi dedicado”. Compositora e instrumentista, ela registrou a música em disco no ano de 2016 só que, em vez de composta em ritmo de marcha-rancho, a música foi gravada com batida de baião. A parceria póstuma está no repertório do CD “Palavra e som”.

Mas nem todos os amigos de Torquato eram músicos, poetas e artistas. O primeiro deles, registrado pela sua mãe, Maria Salomé da Cunha Araújo, em seu álbum de bebê, foi Wellington Moreira Franco, atual ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência do governo Michel Temer. “Ele foi o primeiro amigo e com muitas histórias, de irem juntos para professora particular, estudarem na mesma turma da escola em Teresina e de parar em bar para ouvir o papo dos mais velhos”.

 

O filme 

 

Foi a partir de várias conversas com o poeta Salgado Maranhão que surgiu a ideia do filme. O Largo do Machado, no Rio de Janeiro, era o cenário das reuniões boêmias da dupla de amigos. Já com um pé no audiovisual após a série de TV “Cale-se – a censura musical”, exibida pelo Canal Brasil, o produtor musical teve o insight: por que não um documentário sobre Torquato Neto? Era a hora de colocar a mão na massa: aprofundamento de pesquisa, busca de editais, contato com produtoras. Daí surgiu parceria com o diretor de cinema Eduardo Ades, com quem divide roteiro e direção do filme “Torquato Neto – Todas as Horas do Fim”, produzido pela Imagem-Tempo com orçamento de R$ 600.000,00. 

A ordem cronológica normalmente utilizada em documentários sofreu ruptura. “Logo de início a gente optou: primeiro vamos dizer ao espectador quem é esse cara”, conta. Com patrocínio da Riofilme, Secretaria de Cultura do Estado do Piauí e coprodução do Canal Brasil, a previsão é de que o filme tenha sua estreia no segundo semestre deste ano durante o Festival do Rio e, em seguida, seja exibido na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. “A gente ainda não sabe como, mas em algum momento, também vai ser exibido em Teresina”, diz.  

Curiosamente, Marcus Fernando morou em Teresina em 1989, ano em que viajou para a cidade a trabalho, professor de escola que tinha filiais de cursos de inglês pelo Brasil. Antes de partir, assistiu à peça de Marília Pêra chamada “Elas por elas”, em que a atriz traçava um painel das cantoras brasileiras. No espetáculo, fazia parte da trilha sonora a música “Mamãe Coragem”: Mamãe, mamãe, não chore / A vida é assim mesmo / Eu fui embora. Aos 18 anos de idade e, ainda sem nenhuma relação com Torquato Neto, Marcus Fernando vê sua história contada nos versos do artista. “Eu me lembro de ver minha mãe chorando porque eu estava vindo sozinho”, conta.  

De volta a Teresina devido à pesquisa e produção do filme, Marcus Fernando assiste a um fechamento de ciclo. “Minha amiga Joyce gravando uma música do Torquato e eu visitando minha filha que mora em Teresina – porque quando morei aqui tive uma filha que, não à toa, se chama Joyce, por causa da cantora. A vida é meio engraçada e, se você não presta atenção, ela vai…”.  

(Matéria publicada na Revestrés#31 – Junho/Julho 2017)