Da janela do transporte público, enquanto esperam o sinal abrir para continuar o trajeto no carro, durante uma caminhada rápida em meio aos compromissos diários ou rolando a tela do celular pelas redes sociais. Em várias situações, teresinenses agora podem se deparar com cores, traços e histórias, convites à atenção em tamanhos grandiosos.

A memória que se constrói sobre a cidade vai ganhando novos elementos. Em meio ao retorno das atividades nas ruas após meses de isolamento na pandemia, no segundo semestre do ano de 2021 essas manifestações ganharam força, surgindo em prédios públicos, em parcerias realizadas com empresas privadas ou com a realização de novos circuitos e festivais de arte urbana. Para além da estética, essas ações promovem reflexões sobre uso e identidade do patrimônio histórico e arquitetônico e são provocações, além de  valorizar a produção de artistas da cidade.

Por Maku

O Circuito Urbano de Intervenções Artísticas (CUIA Teresina) é uma dessas ações. Lançado com o chamado “bora discutir a cidade?” e tendo a região central como palco, propôs um conjunto de debates, instalações e exposições que permanecem acessíveis à população.

Com o grafite, Marcus Batista, o Maku, foi um dos responsáveis pelo projeto “Tinta na Federal”, reunião de artistas que, em 2018, deram os tons para 1,3 km em pinturas nos muros da Universidade Federal do Piauí (UFPI). “Ainda naquele ano nós lançamos o catálogo Galeria de Arte Urbana no Salão do Livro do Piauí que foi relançado no festival CUIA em formato de e-book”. Marcus divulga todos os trabalhos por meio do perfil no Instagram @arteurbanateresina. Reunindo experiências anteriores, Maku, muralista e membro da produção do festival, conta que o CUIA Teresina foi uma oportunidade de troca, e permitiu acompanhar novos artistas e perceber a força da atuação coletiva na promoção do diálogo entre arte e população.

O artista assina os murais “História esquecida” e “Liberdade”, feitos em sequência, no entorno da histórica Igreja São Benedito. As obras resgatam a figura do escultor negro Sebastião Mendes e as pessoas escravizadas envolvidas na construção do projeto arquitetônico que é cartão postal de Teresina. “Esse artista foi responsável por esculpir algumas das portas da igreja, fundamentais para o processo de tombamento. Um personagem que as pessoas desconhecem. E isso também em relação ao segundo mural onde trago as mulheres, os escravizados, pessoas que tiveram papel ativo na construção histórica da nossa sociedade e isso não se conta”.

O grafite vai para a rua e transforma espaços abandonados em obras de arte a céu aberto” – Marcus Batista, Maku.

 

Reivindicando o lugar político da arte, Lu Rebordosa diz que festivais como o CUIA Teresina estavam adormecidos, enquanto cidades menores contam com circuitos de arte urbana com mais frequência. “Faço arte de rua desde 2013 e percebo que a falta de incentivo, junto com uma mentalidade provinciana de achar que fazer arte é brincadeira, são dificuldades. A arte de rua é associada a vandalismo e as pessoas só prestam atenção quando acontece e é valorizada em outros lugares, o que é uma pena”, opina a educadora e artista visual.

Detalhe do mural coletivo do Festival Retalho 2021

Lu presenteou a cidade com a obra “Pirá kwery”, uma representação da cultura ribeirinha e do respeito à natureza, e pode ser vista no Mercado Central São José, o conhecido Mercado Velho de Teresina. “Fiquei uma semana lá, vendo pessoas que não tem tanto acesso à educação, são empobrecidas e vivem nas zonas periféricas. Elas conversavam, comentavam e refletiam sobre essa relação entre o que eu estava fazendo e os rios, com a nossa memória e identidade. Pirá kwery evocando a mãe que protege, olha por nós e não deixa faltar alimento para os humanos e todos os seres”.

Transformar é preciso. Com essa convocatória, o festival Retalho foi mais uma ação para reunir estilos e gerações de artistas, que espalharam pinturas com conceitos sobre a criação da memória de Teresina por meio da visualidade. Hudson Melo, artista visual com diversas intervenções e trabalhos com o grafite, murais e outros painéis, compôs o festival e destaca os diálogos que foram proporcionados.

“É uma forma de mostrar a singularidade dos artistas, mas também de discutir coletivamente e com o poder público sobre como tratar essas obras. A ideia de ocupar a cidade, colocar o estilo a serviço da criação do pensamento envolvendo o muralismo, é construir a identidade visual de Teresina. É uma intenção minha, de outros artistas, mas que nesse projeto conta com outras pessoas, com mais mídia, com apoio de órgãos públicos, uma dimensão bem maior”, explica Hudson.

A arte de rua é associada a vandalismo e as pessoas só prestam atenção quando acontece e é valorizada em outros lugares, o que é uma pena” – Lu Rebordosa.

Executada em um dos prédios que compõem o Centro Administrativo do governo do Piauí, a obra de Hudson Melo no festival Retalho apresenta reflexão do artista sobre a travessia da humanidade no período pandêmico. “Meu trabalho é preocupado com questões locais, a relação com a infância e um olhar atento sobre a atualidade. Nesse mural eu trago essas questões do isolamento, da exclusão, das perdas e dos significados que esse tempo nos trouxe, bem como o sentido de querer fazer essa travessia juntos”.

Parcerias e o lugar da arte

Por Jamires Martins

Os debates sobre incentivos públicos e privados à cultura, a relevância dos editais de fomento e patrocínios ganharam força nos últimos anos, em decorrência das crises pelas quais tem passado o setor cultural no Brasil. Entram em cena projetos e acordos que fazem parte do processo até que a finalização do trabalho ganhe o olhar do público.

“Nós, artistas, aplicamos cores na pele da cidade, habitamos as paredes e colocamos vida onde tem vazio. Para isso acontecer, precisamos de mais incentivos das empresas públicas ou privadas e espaços que podem ser provisórios ou fixos”, afirma Sanatiel (Saná) Costa, artista visual que tem obras em diversos espaços da capital e atua também na publicidade. Ele sugere que cada vez mais a cidade tenha calendários organizados no segmento como forma de incentivo e para ampliar as oportunidades de apoio.

Em 2021, Saná executou o mural do edifício sede da empresa Equatorial Piauí, em Teresina, com 571 m². O projeto apresenta representações da cultura regional por meio de elementos da natureza, como o caju, a carnaúba, os pássaros e plantas, contemplando a interação entre a prestadora de serviços e a identidade local.

“Percebemos na riqueza da arte urbana produzida no estado uma oportunidade para comunicar valores, com linguagem contemporânea e aproximativa. Artistas com trabalho autoral e grupos de artistas foram procurados para dar vida aos muros da empresa. E, hoje, cidades como Teresina, Luís Correia e Palmeirais têm verdadeiras galerias de arte a céu aberto”, diz Lener Jayme, Presidente da Equatorial Piauí. A empresa foi uma das patrocinadoras do festival Retalho.

A ideia de ocupar a cidade, colocar o estilo a serviço da criação do pensamento, envolvendo o muralismo, é construir a identidade visual de Teresina” – Hudson Melo.

 

A Lei Estadual de Incentivo à Cultura do Piauí e os editais do Sistema de Incentivo Estadual à Cultura (Siec) também estiveram na estrutura de realização dos recentes festivais, bem como agências, produtoras, associações, órgãos públicos e empresas patrocinadoras.

Hudson Melo considera que as parcerias merecem ser observadas e que bons projetos são um primeiro passo para garantir relações de apoio sérias e positivas para as artes e para os artistas. “É preciso apresentar as intenções artísticas e deixar claro o papel dos apoios, dos patrocínios e onde entra a arte. Muitas vezes a cidade é tão carente que as pessoas podem confundir propaganda com arte. Os incentivos abrem portas, e  precisamos nos aproximar mais e com detalhamentos”.

 

A rua como recurso

Por Luna Bastos

 

Para Maku, o reconhecimento mais importante vem da aproximação das pessoas com a sua própria história. Ele diz que os episódios de abordagens preconceituosas que já passou ao pintar na rua são fruto de preconceitos e associações erradas, que colocam grafiteiros quase que como criminosos, duvidando da seriedade de quem trabalha e tira o sustento da arte. “Dentro desse ato vem as abordagens que podem até ser violentas. Mas o grafite vai para a rua e transforma espaços abandonados em obras de arte a céu aberto”.

O amor pela arte faz com que Lu Rebordosa mantenha sua resistência em continuar seus trabalhos e propósitos. No entanto, ela deixa claro que não se trata de um ideal romantizado. “Eu digo que é uma rEXistência. Infelizmente é uma cidade que não abraça novas e novos artistas, ainda é muito elitista, onde tem as panelinhas daqueles que conseguem vender suas obras. Por outro lado, o material aqui é mais caro, o frete também, algumas coisas que precisamos não conseguimos encontrar e isso cria barreiras para aumentar a profissionalização do nosso trabalho”.

Além de toda a questão representativa, murais, pinturas e os recentes festivais remetem a assuntos como preconceitos e a marginalidade dada às manifestações de arte urbana. É possível dizer que essas obras, além de trazer beleza e cor, acenderam sinais de atenção sobre o passado, o presente e o futuro da cidade e de seu povo. É arte na rua, acessível para todos. Representações de histórias e pessoas invisibilizadas e violentadas. Narrativas de feridas que seguem abertas.

Por Aline Guimarães

Assim como no verso da música A Rua, de Torquato Neto, referência que dá título a essa matéria, a memória da cidade segue seu curso, como um rio, que se movimenta por toda parte. Com insistência.

***

 

 

 

 

 

Publicado na Revestrés#51. 

 Compre esta edição avulsa e receba em qualquer lugar do Brasil. Nas bancas ou pelo site:

https://loja.revistarevestres.com.br/produtos/revistas/51