Parte 1 – O passado recente sob o olhar de Ana

A noite não trouxe muitos clientes ao restaurante. Além de um senhor solitário e um casal na mesa no canto, estamos na presença dos Novos Baianos. Nos primeiros acordes de “Acabou chorare”, suspiro profundamente e sorrio, fechando os olhos. Otto observa com curiosidade, me indagando silenciosamente.

– Quando pequena, meu pai cantava essa música em qualquer situação que eu começasse a chorar. Depois de algumas estrofes, eu já tinha esquecido o motivo do choro e cantava junto a ele.

– Nostalgia é uma coisa interessante. Ela invade a gente de surpresa, basta um pequeno detalhe que te leve de volta – ele pontua.

– Por que as pessoas têm esse sentimento, essa saudade de momentos e acontecimentos que não voltam mais?

– E se a gente escrever uma matéria sobre nostalgia? – ele devolve a pergunta (que não sei responder) com uma proposta.

Não toca mais “Acabou chorare”. O casal continua calado na mesa do canto, enquanto o senhor conversa com seu copo. Otto ainda espera minha resposta.

 

(Ilustrações: Dereck)

(Ilustrações: Dereck)


Parte 1 – O passado recente sob o olhar de Otto

Calada, a noite nos observa pela janela do restaurante, enquanto o garçom traz mais um drink colorido. Conversamos sobre amenidades, embaralhamos os dedos sobre a mesa, admiramos escondidos as caretas do outro quando explodimos em risadas, por vezes o pensamento foge para pescar uma cor diferente das palavras ditas no momento. Mas o inevitável, com suas longas asas negras, sempre pousa sobre nossas cabecas alguma conversa sobre jornalismo. Reclamação vai, reclamação vem – pois, como disse Millôr, em qualquer roda é fácil reconhecer um jornalista: é o que está falando mal do jornalismo – até que surge uma ideia que nos faz parar um pouco a ladainha. Nascia ali uma pauta instigante: um pequeno tratado sobre a nostalgia.

Dou um gole demorado no whisky, enquanto observo Ana discursar entusiasmada sobre a possibilidade de escrever sobre algo ao mesmo tempo tão abstrato quanto divertido. O que instiga, talvez, seja justamente a contradição que há em tratar sobre um sentimento, enquanto o jornalismo está sempre buscando fatos. Escrever sobre algo inatingível nos trouxe certa fé para pensar que esta profissao não esteja eternamente fadada à cínica visão de Millôr.

O garçom sempre traz outro drink, tornando cada vez mais fácil embaralhar os dedos sobre as conversas sobre os pensamentos sobre os olhares. Acho que no futuro lembraremos nostalgicamente deste dia.

Parte 2 – O passado sobre o passado no olhar de Ana

A palavra nostalgia compartilha seu sufixo com doenças como fibromialgia, nevralgia e artralgia. Algia deriva do grego algos, que significa dor, sofrimento. Nostos quer dizer retorno. “Então nostalgia é um sofrimento causado por um insatisfeito desejo de retornar”, concluiu Milan Kundera em “A Ignorância”, livro em que o tcheco passeia sobre os temas exílio e memória.

No século XVII, nostalgia era tratada nos consultórios médicos com hipnose e ópio. A temível doença podia apresentar sintomas como perda de apetite, náuseas, febre alta e, em casos graves, problemas cerebrais.

Joaquim Manuel de Macedo, autor de “A Moreninha”, escreveu em 1844 uma tese médica onde seu objeto de estudo era a profunda nostalgia sentida pelos escravos em relação a suas terras natais. Em “Considerações sobre a nostalgia” constam ações terapêuticas que poderiam ser adotados pelos senhores. A obra ficou marcada por ser uma das precursoras da psiquiatria no Brasil.

Hoje, a nostalgia não é mais considerada doença, mas pode fazer adoecer. Quem não conhece a vítima do “Eu era feliz e não sabia”? E a repetição “Naquele tempo, tudo era melhor”? Guardar com carinho as memórias afetivas não deve virar fixação no passado. Afinal, só é aplacado por sentimentos nostálgicos quem viveu coisas deliciosas para lembrar. Mas o futuro também pode ser um terreno fértil para novas nostalgias.

 

(Ilustrações: Dereck)

(Ilustrações: Dereck)

Parte 3 – A nostalgia de cada um sob o olhar de Ana e Otto

Como você define nostalgia? Qual sua lembrança mais marcante em relação a esse sentimento? Essas duas perguntas foram jogadas ao vento para que diferentes pessoas divagassem sobre o assunto.

“Vejo a nostalgia como a imagem do cachorro que corre em círculos tentando pegar seu próprio rabo. Ele nunca consegue. A minha maior nostalgia é o cheiro de manacá na casa da minha vó. Manacá é uma arvorezinha, que tem um cheiro muito marcante, quando você sente não esquece nunca.” – Nathalia Greco, 24 anos, estudante de Letras.

“Nostalgia é aquela saudade que não tem como a gente pegar mais, né? Saudade do passado, das pessoas que partiram, da casa dos pais. Sou de uma cidade muito pequena chamada Galiléia, no interior de Minas. Todo mundo se conhecia, pois era possível andar a cidade inteira a pé.” – Antônio Carlos Pereira Silva, 52 anos, porteiro.

“A maior nostalgia que sinto é dos primeiros anos que morei em Florianópolis. Quando cheguei lá, em 2006, conhecia pouco da cidade e não tinha amigos. Essa liberdade, provocada pelo anonimato, me tornou livre para conhecer e explorar todo o campus da UFSC. No prédio de Direito tomei os melhores cafés da minha vida. Não pelo sabor, mas pela companhia dos melhores amigos que fiz na vida.” Letícia Dyniewicz, 29 anos, doutoranda em Direito.

“Pra mim nostalgia tem a ver com marcos de uma época. As minhas são o Xou da Xuxa, cigarrinhos de chocolate e Genius.” – Ana Flávia Costa, 27, designer.

“Nostalgia é como um aperto doce no coração. Me sinto nostálgica quando penso na minha infância. Minha família tem seis pessoas e morávamos todos juntos. Hoje cada um está vivendo em um lugar e só nos reunimos em ocasiões especiais.” Ana Laura, 19, estudante de Filosofia.

“Nostalgia tem a ver com os sentidos. Quando sinto determinados cheiros, sou transportado ao meu passado. Cheiro de pão me faz lembrar a minha vó na fazenda, assando pães todas as tardes.”- Fábio Furtado, 48, ator e diretor.

“Saudade é uma coisa branda, que você pode remediar. Nostalgia é algo impalpável, que já foi, acabou.” – Pedro Furtado, 32, economista.

“Tenho nostalgia da minha mãe penteando meus cabelos todas as noites. Ela tinha um jeito diferente, carinhoso de mexer nos fios.” – Sônia Oliveira, 64, aposentada.

“Sinto nostalgia todas as vezes que passo na porta da minha antiga casa. Não tenho saudades da casa em si, mas de tudo que vivi ali.”- Patrícia Moraes, 37, escritora.

“Me sinto triste quando estou nostálgico. Mas acho que é uma tristeza necessária, saudável. Um sentimento de valorização da nossa história.”, Ricardo Pessini, 45, administrador.


Parte 4 – Nostalgia como arte sob de Otto

(Ilustrações: Dereck)

(Ilustrações: Dereck)

Artistas de várias áreas já usaram a nostalgia como combustível de suas criações. Veja alguns exemplos.

Quadro na parede

“Tive ouro, tive gado, tive fazendas / Hoje sou funcionário público / Itabira é apenas uma fotografia na parede / Mas como dói!”. Nesta última estrofe do famoso poema Confidência do Itabirano, Carlos Drummond despeja pelo papel uma dos mais famosos sentimentos de nostalgia da literatura brasileira. A cidade natal do escritor é tão bem colocada como imagem inatingível que chega a doer também no leitor. Nostalgia alugada?

Mamãe já ouve Beatles

De Minas Gerais para a Bahia, da literatura para a música. Dois compositores baianos já trataram sobre o assunto. Em 1971, Caetano Veloso lançou o que muitos consideram o seu melhor disco: Transa. Nessa compilação é possível escutar a canção “Nostalgia (That’s what Rock n’ Rol lis All About)”, em que Caetano trata as atitudes rockers como algo que já passou. Curiosamente, Raul Seixas também utiliza o rock como tema em “A Verdade Sobre a Nostalgia”, lançada no disco Novo Aeon, de 1975. Ele reclama que a mãe já ouve Beatles e que seu cabelo grande o deixa contra o que ele já é. Uma crítica divertida às pessoas que vivem um tempo passado e não apreciam o que há de novo.

O infinito e o canibal

Já nas artes plásticas, o pintor italiano Giorgio de Chirico criou por volta de 1911 a obra “A Nostalgia do Infinito”. Nela, o artista metafísico apresenta a torre, objeto recorrente em suas outras obras. Há ainda no quadro duas pessoas sombrias, que futuramente apareceriam em trabalhos de Salvador Dali. O pintor espanhol, aliás, também se inspirou neste sentimento para criar a pintura “Nostalgia do Canibal”, que trás uma vasta tela vazia em tom pastel, com uma espécie de mesa abrigando objetos que lembram tinteiros com pincéis.

A impossibilidade da adaptação

Em 1983, o cineasta russo Andrei Tarkovski lançou o filme “Nostalgia”. O enredo trata da viagem do poeta russo Gorchakov à Itália para pesquisar a história de um compositor compatriota mandado para lá, mas que não suportou viver longe de sua pátria e foi tomado por uma profunda nostalgia que o levou ao suicídio. Gorchakov também sente-se inadaptado de viver fora de seu país e apurar as informações. O próprio Tarkovski se disse asfixiado ao filmar na Itália. É sobre esse apego dos russos às suas tradições, famílias e amigos que o cineasta investiga com sua película.

*Os olhares de Otto e Ana são uma referência ao filme Os Amantes do Círculo Polar, do diretor Julio Medem, que faz o amor circular em busca do próprio amor, nostalgicamente.

 

(Publicada na edição #10, setembro/outubro de 2013)