Era janeiro de 2017. Tito Ferraz, cujas últimas postagens no Facebook aconteceram em dezembro do ano anterior, sumiu. O mistério teve início quando, meses antes, o próprio Tito revelou em seu Face que, após ter sofrido várias ameaças anônimas, seu apartamento no bairro Rio Vermelho, em Salvador, teria sido arrombado. Seus seguidores viram fotos de HDs destruídos, frames de um vídeo enviado, sabe-se lá porquê, pelos arrombadores. As fotos de toda a sua vida profissional estavam perdidas. Foram suas últimas postagens e, desde então, Tito Ferraz nunca mais foi “visto”.  

Objetos de Tito Ferraz são periciados após seu sumiço misterioso | Foto: Paulo Coqueiro

Tito Ferraz, após ficar conhecido mundo afora, havia voltado a Salvador e iniciado sua reaproximação com a cena local, que não tinha conhecimento de seu trabalho. Nesse retorno às origens, levantou discussões, provocou debates e, aos poucos, iam aparecendo imagens feitas por ele em visitas às exposições realizadas na cidade. Durante cerca de dois anos Tito Ferraz conseguiu 5 mil amigos no Facebook e, de lá, tornava-se pessoa influente no meio. Daí o espanto: onde está Tito Ferraz?  

Passaram-se alguns meses. Após várias homenagens dos amigos virtuais e muitas perguntas, um rastro: Paulo Coqueiro, outro fotógrafo da Bahia, comentou que foi chamado a participar de uma perícia policial em HDs encontrados durante as investigações. Postou notícias de jornais, fotos das perícias, imagens de objetos encontrados no processo, documentos pessoais, livros, depoimentos de amigos. As peças de um curioso quebra-cabeças iam se juntando. Mas faltava a principal resposta: e Tito, onde está?  

Em pouco tempo, a verdade foi revelada, surpreendendo a quase todos, incomodando alguns: Tito Ferraz, o fotógrafo que rodou o mundo e voltou para casa, nunca existiu. Nunca houve um Tito Ferraz. Ele foi um personagem criado por… Paulo Coqueiro. A intenção: discutir a crise de representação da fotografia.  

Paulo Luiz Coqueiro Andrade, baiano, com graduação e mestrado na Universidade Federal da Bahia, viu nas redes sociais o suporte ideal para realizar o projeto e investigar a relação entre verdade e imagem. Criou o perfil de Tito Ferraz e, por cerca de dois anos, alimentou as redes do suposto fotógrafo. Desse trabalho surgiu o projeto Não minta pra mim. Nele, são questionados os limites da linguagem fotográfica. “É um projeto que chama muita atenção porque é a vida das pessoas. O tempo inteiro a gente está sendo enganado. Atribuímos uma certa neutralidade à fotografia, mas as imagens sempre têm um posicionamento sobre o mundo”, diz Paulo.  

O projeto rendeu dois fotolivros, um deles prefaciado por Joan Fontcuberta, artista e teórico espanhol. Há controvérsias sobre se o texto é realmente de Fontcuberta, que já afirmou que nunca o escreveu. Não minta pra mim também rendeu prêmios: Paulo se tornou o primeiro baiano a vencer o Prêmio Nacional de Fotografia Pierre Verger, um dos mais prestigiados nacionalmente. “Com esse trabalho também venci o Festival de Fotografia de Porto Alegre e consegui convites como o da Trienal de Hamburgo, que culminou com minha premiação de melhor trabalho apresentado dentre 50 pré-selecionados”. Não minta pra mim foi ainda mais longe: Argentina, Rússia, Uruguai e Lianzhou, na China. E segue sua trajetória de questionamentos, cada vez mais pertinentes. 

Não minta pra mim, mais que um trabalho em fotografia, é uma pergunta em aberto para os nossos tempos. “Este trabalho é fruto de uma longa investigação sobre a crença na imagem”, afirma Paulo. 

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Confira também o ensaio fotográfico dessa edição, que traz uma série de imagens atribuídas a Tito Ferraz no projeto Não minta pra mim, de Paulo Coqueiro. Cada um dos retratos é composto por várias camadas sobrepostas de imagens da mesma pessoa, fotógrafos entrevistados por Paulo durante a realização do projeto.  

A série se completa com o “autorretrato” de Tito Ferraz, formado por imagens sobrepostas de todos os fotógrafos citados, que criam, assim, a suposta imagem de Tito. 

link para o ensaio: https://www.revistarevestres.com.br/fotos/ensaios/nao-minta-pra-mim/

Publicado em Revestrés#42 – Julho-Agosto de 2019.

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