Se você sonha em escrever seu primeiro livro, ou já escreve prosa ou poesia, ou mesmo se é um grande leitor conectado às redes sociais, é provável que durante o seu percurso online tenha recebido anúncios sobre oficinas de escrita literária ou escrita criativa. Elas se multiplicaram nos últimos dois anos: seja incorporadas em faculdades, em espaços privados ou informais, produzidas por escritores de sucesso ou professores, os cursos de escrita literária estão cada vez mais disseminados no ambiente cotidiano de leitores e aspirantes a escritores. A história do ensino de escrita literária no país, contudo, vem dos anos de 1960, é diversa e já produziu uma primeira geração de autores com conquistas nacionais que provam que cursos sérios lapidam talentos e formam autores e leitores – essência para a boa literatura nacional.

Os primeiros cursos de oficina literária no nosso país basearam-se em moldes norte-americanos, com tais cursos oferecidos como disciplinas em universidades. A primeira referência, conforme o escritor gaúcho Assis Brasil relata em seu “Histórico das oficinas literárias”, é da Universidade Iowa, em 1936, onde o “Program in Creative Writing” teve importantes autores brasileiros entre seus alunos, como João Gilberto Noll, Affonso Romano de Sant’Anna e Charles Kiefer. Depois de Iowa, várias universidades americanas começaram a implementar esses cursos em seus currículos. No Brasil, o primeiro curso de escrita criativa (seguindo a denominação norte-americana) foi ministrado pelo professor Cyro dos Anjos, em 1962, na Universidade de Brasília. 

Em 1966, a professora Judith Grossmann fundou, na Universidade Federal da Bahia, um curso de escrita criativa, primeiro como atividade extracurricular, depois como disciplina optativa. A partir da década seguinte outras instituições públicas começaram a incorporá-los, entre elas: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Moura Lacerda (Ribeirão Preto, SP), em 1975; PUC-RJ, sob a orientação do escritor e crítico Silviano Santiago, também em 1975; Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em 1977; Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em 1978. Eles representaram a primeira tentativa de consolidar a formação de escritor no país, mas apesar de fazerem parte do currículo de alguns cursos, não foram totalmente institucionalizados como no modelo americano. Foi apenas na década seguinte que começaram a formar autores com expressão nacional.

Segunda onda: oficinas em todo o Brasil

A chamada segunda onda de cursos de escrita literária pode ser entendida a partir do surgimento de oficinas de importância nacional que, efetivamente, foram responsáveis por formar autores reconhecidos no Brasil e fora dele. O primeiro exemplo dessa categoria é o escritor gaúcho Assis Brasil. Em 1985 ele funda a Oficina de Criação Literária, incorporada ao Curso de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Essa oficina é considerada a mais longeva em todo o país e, para citar alguns nomes, o curso do professor Assis Brasil ajudou a formar autores de expressão nacional, como Amilcar Bettega, Luisa Geisler, Michel Laub, Daniel Galera, Carol Bensimon, Letícia Wierzchowski e Paulo Scott. Hoje também professor de escrita literária e com prêmios nacionais e em Portugal, Scott relembra que, mais do que aprender técnicas de escrita, a oficina o ensinou a ler melhor. “Aprendi, sobretudo, que se deve estar sempre bastante atento às novas escritas, às novas vozes.” Esse comprometimento também se transforma em um dos motivos que fazem alunos e alunas procurarem a oficina de escrita de Scott. “Uma necessidade de conviver com um olhar maduro e engajado de alguém que lhes pareça comprometido com a Literatura brasileira”, como o observa o autor. 

Para Paulo Scott, mais do que aprender técnicas de escrita, a oficina o ensinou a ler melhor.  

Voltando ao final da década de 1980, outro importante polo de formação nacional será a Oficina da Escola de Criação Literária Raimundo Carrero, ministrada pelo próprio autor, em Recife. “Em 1989 eu tinha escrito ‘Maçã Agreste’ e percebi que tinha desenvolvido uma série de técnicas e de mudanças na estruturação do romance. Achei que era uma boa hora para conversar com as pessoas e repassar os conhecimentos que também aprendi com Flaubert e Mario Vargas Llosa. Procurei a Livraria Síntese e ela me alugou uma sala, onde comecei a oficina”, relembra o escritor pernambucano. Nestes mais de 30 anos de ensino de escrita literária, Carrero observa que o perfil dos alunos que procuram seu curso mudou, e agora há uma maior busca por resultados. “A princípio a oficina tinha como objetivo reunir amantes da literatura, amigos que falassem sobre romance, e isso foi mudando ao longo do tempo porque começaram a aparecer pessoas que gostariam de escrever, mas não tinham escrito nada. Ultimamente tem aparecido alunos que querem ganhar prêmios. ‘Como é que eu ganho prêmios?’, eles perguntam. Respondo: ‘Se soubesse, eu fazia para mim mesmo’.” A oficina de Carrero formou autores de expressão nacional como Marcelino Freire, Eugênia Menezes, Brivaldo Campelo, Maria Pereira de Albuquerque e Wilson Freyre.

 

Além dessas duas referências em ensino, o pesquisador Yan Patrick Siqueira elenca as oficinas de Alexandre Lobão, Oswaldo Pullen e Roberto Klotz, realizadas de forma esporádica em Brasília. No Espírito Santo, temos o pioneirismo de Oscar Gama Filho, no início da década de 1970, e o trabalho da professora Deny Gomes pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) na década de 1980. Também na mesma época, no Rio de Janeiro, a oficina do professor Ivan Cavalcanti Proença. 

Instituições privadas de escrita literária e a era online

Oficinas movidas por iniciativas individuais foram aumentando no país e encontrando mais alunos a partir de um caráter quase informal, por boca a boca. Apenas na década seguinte começam a surgir espaços privados específicos para ensino de técnicas literárias. No Rio de Janeiro, em 1996, um dos locais pioneiros é a Estação das Letras (estacaodasletras.com.br), que se transformou no Instituto Estação das Letras em 2017, capitaneado pela escritora e professora Suzana Vargas. “Trabalhava há mais de uma década com oficinas de criação literária em espaços diversos quando resolvi alugar uma sala para turmas particulares. Manifestei esse desejo a alguns amigos escritores e eles pediram para ocupar alguns horários com cursos e oficinas. Surgia então a Estação das Letras com alguns dos grandes nomes da Literatura e da universidade, como Ivan Junqueira, Jorge Wanderley, Victor Giudice, Flávio Moreira da Costa, José J. Veiga, Cleonice Berardinellli e outros tantos.” 

Sempre tivemos o compromisso de não iludir ninguém, mas mostrar a realidade do mercado editorial e o fato de que, para escrever livros, precisa-se de muita leitura e informação.” – Suzana Vargas

Suzana também relembra que o questionamento sobre aprender a escrever em um curso era constante. “Há 27 anos as oficinas eram pura novidade. O público era pequeno, as pessoas desconfiavam. Depois começaram a procurar quase sofregamente as oficinas e os cursos. Muitos querendo publicar e achando que era fácil, tanto escrever quanto publicar. Entravam quinze alunos nas oficinas e ficavam uns sete ou oito. Viam que escrever é muito mais complexo do que se pensa.” A professora observa que atualmente os alunos são muito mais conscientes com o processo de escrita e publicação do que no início, o que não mudou foi a pressa em publicar o próprio livro. “Sempre tivemos o compromisso de não enganar ninguém, não iludir, mas mostrar a realidade do mercado editorial e o fato de que, para escrever livros, precisa-se de muita leitura e informação. Hoje existe uma facilidade de publicação ou autopublicação, mas ilusória, na minha opinião. Os alunos chegam um pouco mais conscientes, apesar ainda da pressa de publicar, o que desaconselho veementemente.”

Os alunos aumentaram (no online) e tivemos que reformular nossa grade com mais variedade de cursos, palestras e professores” – Noemi Jaffe.

Outra professora e escritora que também decidiu criar um próprio espaço de ensino de escrita literária foi a paulista Noemi Jaffe, que em 2016 fundou a Escrevedeira (escrevedeira.com.br). “Comecei como uma única sala para dar meus próprios cursos de escrita. Aí algumas pessoas começaram a me procurar para oferecer cursos na sala que tinha alugado e as outras salas da minha casa estavam ocupadas por outras pessoas. Assim que foram desocupadas, chamei meu marido, João Bandeira, e a Luciana Gerbovic, que tinha sido minha aluna, para serem meus sócios. Reformamos a casa e começamos a aumentar a grade de cursos. Começamos com um curso do Gonçalo M. Tavares, que estava no Brasil, e atraiu muita gente.”

Tanto o Instituto Estação das Letras quanto a Escrevedeira ultrapassaram o momento mais agudo da pandemia de COVID-19 no país. Suzana conta que, no Instituto, foi necessário fechar o espaço físico e tornar as atividades todas online. “No início de 2020 não tínhamos nenhum curso online. Foi um susto, mas logo em seguida começamos as aulas à distância. Isso não impediu que em novembro de 2020 precisasse fechar. Doamos todo o mobiliário da livraria e da sala de aula para a escola Amaro Cavalcanti. As aulas online nos trouxeram um público mais amplo. Hoje temos alunos em Miami, Belém, Holanda, Inglaterra.” Na Escrevedeira, Noemi conta que o susto foi positivo. “Começamos muito preocupados, mas surpreendentemente os alunos aumentaram porque a possibilidade de virem pessoas de outras partes do país também aumentou. Ficou mais fácil para participarem. Nosso movimento quadruplicou ou quintuplicou, aí tivemos que reformular nossa grade com mais variedade de cursos, palestras e professores, tudo online.” 

A divulgação intensa das redes está criando um despertar: é possível contar, através da escrita, a história que as pessoa têm dentro de si” – Marco Severo

Essa maior presença online, seja das instituições privadas ou de autores oferecendo cursos de forma independente, foi acentuada durante os anos mais agudos da pandemia de Covid-19 e ainda permanece. O escritor e professor de escrita literária cearense Marco Severo, que já ministrou oficinas e cursos de escrita presenciais e agora também online, considera que uma das principais diferenças é a forma de estimular a ação do aluno. “Presencialmente, as abordagens diante os alunos fazem com que a aula tenha uma movimentação mais humanizada, porque é direta: o corpo fala. Online, o professor ou professora precisa aprender a lidar com a necessidade e a importância de estar sempre buscando a participação de todos, sobretudo daqueles que fecham a câmera, e modular a voz de maneira que ela seja efetivamente o corpo em sala de aula virtual.” 

Para além do marketing ao redor das oficinas oferecidas online, Marco acredita que a maior procura por tais cursos também envolve uma espécie de transformação. “Acredito que as pessoas têm sido mais cooptadas pela divulgação intensa das redes, criando um despertar para acreditar que é possível contar, através da escrita, a história que elas têm dentro de si. Tem sido uma forma nova, para muitas pessoas, de entrar em contato consigo mesmas, de fazê-las perceber que há nelas uma maneira de criar com a qual apenas imaginavam.” 

No mínimo, as oficinas de escrita parecem estar ensinando as pessoas a lerem melhor e a falarem sobre elas mesmas. E isso é algo gigantesco.

Indicações de livros para estudo de escrita literária

  • A Preparação do Escritor, de Raimundo Carrero (ou A luta Verbal, em pré-venda)
  • Escrever Ficção, de Luiz Antonio de Assis Brasil
  • Formas Breves, de Ricardo Piglia
  • Mutações da literatura no século XXI, de Leyla Perrone-Moisés
  • Oficina de escritores: Um manual para arte e ficção, de Stephen Koch
  • Para ser Escritor, de Charles Kiefer
  • Sábados Inquietos, de José Castello

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