Duas linhas de sal grosso iluminadas por pequenas velas delineavam um corredor. Pela faixa do centro, como se protegido por esses elementos, o ator e cantor cearense Otacílio Alacran declinava as histórias dramáticas do solo Peça para quem nao veio, em turnê pela França, em dezembro último. Numa das margens desse estreito, o público francês alternava o foco entre a performance do ator e o painel da legenda eletrônica por onde podia acompanhar o texto. Na outra margem, os brasileiros se deleitavam com cada palavra da língua-pátria pronunciada pela imponente voz do ator em cena.  

 

O espetáculo integra uma parceria entre as companhias teatrais Pau D’arco (São Paulo) e Nie Wiem (Châteauvillain), do TUSP (Teatro Universitário de São Paulo) e de SIMONE, incubadora de processos criativos, situada em Châteauvillain, em Haute Marne, no Leste da França. Com direção partilhada da brasileira Bia Szvat e da francesa Anne-Laure Lemaire, a peça é o resultado de um trabalho de criação das duas companhias a partir da obra Kadish – Por uma criança não nascida, de Imre Kerstézs, iniciado ano passado, em São Paulo. 

Escrito por Maria Schu (Ar Rarefeito) – que tem como referência outras fontes, como 4.48 Psychosis, de Sarah Kane, ou ainda A Metamorfose, de Franz Kafka –, o texto mostra o desencantamento de um homem negro com a espécie humana e sua consequente decisão de não se reproduzir. O protagonista mergulha num diálogo com as gerações futuras, descendência que nunca virá, pois ele próprio empenha-se em contribuir para a extinção. Como argumento, desfia as diversas torpezas praticadas pelos humanos: racismo, pedofilia, xenofobia e outros crimes.  

 

Corpo e voz de Alacran presentificam com imponência o monólogo, pontuado pelas intervenções da atriz Laurence de Sève. Como bem sinaliza a tradução francesa para o título, Prière pour les futurs absents convoca o espectador a experimentar outro retorno às origens do teatro: o do religare. Nessa revisita às inclinações mais baixas dos humanos – um gesto de expurgação – surge de forma indireta um apelo à ética, ao voltar-se para uma elevação. 

Na apresentação de Bagnolet, na região parisiense, os espectadores puderam ver a travessia do personagem de Alacran no corredor em penumbra da Chapelle Graindorge. “E’ um Proteu que sai do mar, ou uma versão masculina de Cassandra”, explica o ator, recorrendo aos gregos para evocar o aspecto premonitório do seu personagem. Na conversa após a apresentação, uma espectadora francesa “previa ” o início de um novo ciclo de violências no mundo. Uma outra declarava o apoio ao Brasil, “nesse momento tão difícil da história do país”. 

Alacran inverte Kafka: fala de um movimento de humanização

As “premonições” da Peça para quem não veio não dizem somente respeito ao futuro. Falam principalmente de um tempo presente no qual, como aponta a peça, “crianças passeiam em coleiras e cães em carrinhos de bebês”, lamenta Alacran. Sendo o texto quase uma prece dada por uma entidade, surgem dúvidas quanto à recepção do público que não domina o português. O ator explica que tenta desacelerar o ritmo da sua intepretação para não perder a atenção do espectador que precisa ler a legenda. 

Além de Bagnolet, o espetáculo também passou por cidades como Reims, Châteauvillain e Cernay, em intervenções que iam além das apresentações, incluindo também ações pedagógicas. Alacran, que é também agente cultural do TUSP, ministrou aulas de teatro e de cultura brasileiros para jovens e adultos franceses. Trouxe na mala pequi, balinhas de coco, bombons de chocolate e penas, cozinhou, falou sobre teatro e ensinou técnicas culinárias e a confeccionar e jogar peteca.  

O ator conta que também ensinou versos de um canto indígena em Tupi: “Os nossos pais são o sol e o trovão”, cantarola. “O teatro é a minha língua”, diz ele, ao explicar como animou tais eventos sem ter o domínio do idioma francês. 

 

Expressão 

 

Barítono e corpulento, Alacran invade, ocupa. A cena, os ouvidos, as ruas do bairro. Teria sido assim desde o início. Lá mesmo no Pirambu. Numa época em que havia dois poderes reinantes entre a meninada de sua época: o poder do futebol e o das artes. Ele integrava a segunda equipe: fazia objetos de cerâmica e punha-se a vendê-los de porta em porta. “A arte me capturou para uma vida impensada”, analisa hoje, relembrando a trajetória que percorreu.  

Aos 13 anos, conheceu o Teatro José de Alencar, no centro de Fortaleza. Passou a alternar a formação de ator – que vai de oficinas com o diretor Paulo Hess ao Colégio de Direção do Instituto Dragão do Mar – com o trabalho que exercia durante o dia: animador infantil de um parque aquático interpretando uma hipopótama, ofício que exerceu durante onze anos. “O teatro foi a minha grande escola”, conclui, ao examinar as transformações pelas quais passou ao longo do tempo. 

Metamorfose. Como essa que evoca o personagem/narrador de Peça para quem não veio. Nos primeiros minutos do espetáculo, uma criatura deitada no chão parece estar concluindo um processo de transformação. Ao falar de seu processo, porém, Alacran inverte Kafka: fala de um movimento de humanização. Conta de uma história de “resistência”, palavra sempre presente no seu discurso. De ultrapassar traumas de violências sofridas na infância. De ser acolhido pelo coletivo Aparelha Luzia num dia em que se descobria “Nordestino-em-São Paulo” e, plaft!, de quebra, descobriu-se também negro. Empoderar-se. Negro e empoderado como somente um negro revivificado num “quilombo” pode se sentir. 

(Matéria publicada na Revestrés#34 – janeiro-fevereiro de 2018)