Cultura

O show precisa continuar

Em Oeiras, a tradição dos bandolins é perpetuada por gerações há quase um século.

Um som que saía de quatro cordas tocadas em um instrumento semelhante a uma gota chamou a atenção de Herberth Vinicius durante a missa na catedral de Nossa Senhora da Vitória, em Oeiras, Piauí. Para ele, lá do seu posto de coroinha, no altar da igreja, os cantos litúrgicos entoados eram lindos de se ouvir. Aos 12 anos, foi fisgado pelas canções interpretadas por senhoras bandolinistas. Dessa época, 2004, ele rememora o início da paixão pelo instrumento que tem mudado sua vida e a de outros tantos oeirenses. 

Herberth foi aluno de Zezé Ferreira, exímia bandolinista, que ajudou a construir a tradição dos bandolins na primeira capital do Piauí, cidade com população de pouco mais de 36 mil habitantes, localizada no centro do estado. O garoto começou a ter aulas aos 15 anos com um instrumento usado, cedido pela professora, que também não lhe cobrou pelas aulas. “Ela me disse: ‘assim como aprendi a tocar bandolim de graça, vou ensinar de graça!’, e isso me marcou profundamente”, conta. Hoje, aos 28 anos, o trabalho de Herberth consiste em ensinar novas gerações, agora como regente e professor, dando continuidade a uma tradição musical que vai completar um século na cidade.

Bandolins de Oeiras em entrevista no Programa do Jô, apresentado por Jô Soares, na TV Globo, em 2008 | Foto: acervo pessoal

O bandolim abriu caminhos para ele e para outros oeirenses. A paixão pelo instrumento, que começou com as professoras Araci Carvalho, Maria Queiroz, Filó Carvalho e com maestros das bandas de música da cidade, teve grande efervescência na década de 1980, quando nasceu o grupo musical “Bandolins de Oeiras”, formado por Petronília Amorim (Dona Petinha), Rosário Lemos, Lilásia Freitas, já falecidas; e Antonieta Maranhão (Dona Niêta), Zezé Ferreira e a maestrina Celina Martins. 

Elas começaram a tocar bandolim nos eventos da igreja, ainda jovens. Com as obrigações de casa e família, a música ficou dispersa, sendo retomada de modo mais organizado nas comemorações dos 250 anos da igreja de Nossa Senhora da Vitória, quando as amigas já tinham cerca de 70 anos de idade. Passaram a realizar apresentações em diversas solenidades cívicas e em atividades sociais da cidade, bem como em eventos dentro e fora do Piauí. Como em 2004, quando se apresentaram no Festival das Três Fronteiras, na Argentina. 

Bandolinistas de Oeiras recebem a Ordem do Mérito Cultural, em 2005, entregue pelo presidente Lula e Ministro da Cultura, Gilberto Gil | Foto: acervo pessoal

O promotor de justiça Carlos Rubem Reis, conhecido como Bill, foi uma das pessoas que acompanharam as “meninas”, e se tornou produtor cultural do grupo e das “coisas de Oeiras”. Ele recorda que pipocaram convites para se apresentarem, principalmente após a gravação do CD Bandolins de Oeiras, lançado nos anos 2000. “Guardo muitas reminiscências do período em que acompanhava as meninas. Havia ‘briguinha’ entre elas pela escolha do repertório. Valsas e chorinhos eram os ritmos que mais apreciavam. Além de Carinhoso, de Pixinguinha, impreterivelmente, tocavam composições do professor Possidônio Queiroz, ilustre conterrâneo”, fala saudoso. 

Bill guarda na memória grandes momentos do grupo, como quando foram homenageadas com a Ordem do Mérito Cultural, instituída pela Lei 8.313/91 em reconhecimento a artistas brasileiros. “Isso aconteceu no Salão Nobre do Palácio do Planalto, em Brasília, em 8 de novembro de 2005, quando elas executaram o Hino Nacional em seus bandolins”, conta. A insígnia foi entregue pelo então presidente Lula e por Gilberto Gil, à época ministro da Cultura. 

As bandolinistas também foram destaque em rede nacional de TV quando participaram do Programa do Jô Soares, em 2008, na TV Globo, numa bem humorada entrevista conduzida pelo apresentador, impressionado com o talento das senhoras. 

A tradição de gerações  

“Apesar do nosso insulamento geográfico — plantada nos sertões de dentro — a música, em nossa cidade, sempre foi uma característica forte, mas houve uma lastimável retração dessa arte”, argumenta Bill, pontuando que a tradição permanece viva e há muito a ser feito. 

Para o professor Herberth, o “sentimento de pertencimento e identidade cultural é muito forte em Oeiras. E essa é uma questão que sempre tem que ser debatida por meio da educação, começando com as crianças, dentro das escolas”.  

Em Oeiras, em frente a Igreja Matriz, durante a FLOR – Feira Literária de Oeiras, em 2018 | Foto: acervo pessoal

Em 2015, Herberth foi convidado pela secretária municipal de Educação da época, Tiana Tapety, para ministrar aulas na rede municipal de ensino. O projeto, denominado “Núcleos de Cultura”, deu oportunidade para que alunos do ensino público tivessem acesso gratuito, além das aulas de bandolins, à oficinas de violão, flauta, saxofone, teclado, aulas de capoeira, teatro, dança, canto coral e congos. “Foi lá que formei o primeiro grupo com crianças de 9 e 10 anos de idade – Os Bandolins Mirins-, e sou professor até hoje”, relata.   

“A música é uma ponta de esperança em meio ao caos do mundo. – Herberth Vinícius, professor de bandolim

Na Escola de Bandolins Dona Petinha, inaugurada pela Secretaria de Estado da Cultura (Secult) em 2016, Herberth tornou-se regente e ministra aulas para 44 alunos, entre adultos e crianças. São três turmas de bandolins e uma de violão. Oeiras hoje tem dois projetos voltados para a continuidade da tradição dos bandolins e outros instrumentos. A Escola Dona Petinha, que faz homenagem a uma das senhoras fundadoras do grupo Bandolins de Oeiras, funciona no Centro Cultural Sobrado Major Selemérico. É lá que jovens como Alexandre Augusto Rêgo Leite e Jarlon Lima Silva, ambos com 15 anos, tiveram contato com o instrumento aos 10 anos e hoje realizam apresentações com a Orquestra Bandolins de Oeiras, em sua nova formação, com jovens músicos.  

Parte da nova geração enxerga o bandolim como elemento cultural da cidade e como oportunidade de mudança de vida. “Dar continuidade a esse legado é uma honra. O bandolim, na nossa cidade, foi um símbolo de inclusão, quando mulheres que poderiam ficar apenas em tarefas domésticas tiveram oportunidade de ser ‘grandes’, né?”, diz Alexandre Augusto. 

As senhoras instrumentistas de Oeiras se tornaram referência, assim como outro músico da cidade, Possidônio Queiroz, uma das inspirações de Jarlon Silva. O jovem destaca que, por meio do bandolim, passou a apreciar outros estilos musicais. Hoje fazem parte do seu repertório clássicos brasileiros do samba e da bossa nova, além das famosas valsas do flautista “Possi”, como chamam o conterrâneo.  

Ensaio dos alunos da Escola Dona Petinha, em Oeiras | Foto: acervo pessoal

“Esse trabalho transformou a vida das crianças, criou um novo olhar sobre a importância do apoio à cultura, ganhou o respeito da população. É um ofício de sensibilizar corações”, diz o professor Herberth. “A música é uma ponta de esperança em meio ao caos do mundo. Nunca vai ser clichê dizer que a arte transforma”. 

A nova geração da Orquestra Bandolins de Oeiras já realizou inúmeras apresentações. Em 2017, tiveram, como palco, o Congresso Nacional, em Brasília, em Sessão Solene comemorativa aos 300 anos de Oeiras. Em 2018, fizeram uma turnê por cidades do Piauí e, no início de 2020, lançaram um CD com 10 canções. 

Assim como grande parte dos artistas, os jovens bandolinistas de Oeiras também pararam suas atividades por conta da pandemia, interrompendo os ensaios coletivos. Recentemente (fevereiro de 2021) retomaram algumas atividades, seguindo os protocolos sanitários, como oficinas de arranjos musicais, canto coral e teoria musical – todos com apoio da Secult. O grupo prepara um repertório novo, com clássicos do chorinho. “O show precisa continuar”, diz o regente. 

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Publicado em Revestrés#48

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