Imaginário e real, o Nordeste rasgou a tela do cinema. Visitou feiras populares nas brenhas do sertão, fabulou sobre o tempo, exibiu selfies, encontrou o homem das cavernas, escutou o som dos morros, deitou-se com famílias fora dos padrões, caminhou com tornozeleira eletrônica, condoeu-se com a violência sanguinária levada às terras indígenas, convocou as misérias de todo o mundo a unirem-se. De 4 a 16 de abril último, os oito longas e 36 curtas-metragens exibidos na primeira edição da Mostra Cine Nordeste, realizada na Caixa Cultural, em Fortaleza, não só inventariaram as diversas linguagens e narrativas do cinema nordestino contemporâneo, como ensejaram reflexões sobre os modos vigentes de produção, difusão e formação em audiovisual no Brasil.

Curador da mostra, o realizador e professor do Curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Ceará (UFC), Marcelo Ikeda, abriu a dupla janela: para além da luta das imagens frente a estereótipos ainda atrelados ao recorte espacial que forja uma ideia de Nordeste, os realizadores foram convidados a pensar criticamente os rumos dos próprios fazeres e saberes, através de debates entabulados ao final de cada tarde-noite de sessão. “Muitos desses filmes encontram dificuldade para exibição comercial. Isso porque os cinemas no Brasil são dominados por blockbusters estrangeiros, que ocupam 80% das salas. Nós, que moramos na região, temos pouco acesso aos filmes que falam sobre a nossa cultura, nossos modos de ser. Apesar disso, o cinema realizado no Nordeste tem experimentado amplo desenvolvimento nos últimos anos e se destacado”, frisa, referendando, em particular, “Aquarius”, filme de Kleber Mendonça Filho, que em 2016 concorreu à Palma de Ouro no Festival de Cannes, e “Boi Neon”, de Gabriel Mascaro, concorrente ao Prêmio Goya, da Espanha.

Os cinemas no Brasil são dominados por blockbusters estrangeiros, que ocupam 80% das salas – Marcelo Ikeda, curador e professor

Na proa, o cinema pernambucano é apenas um exemplo da profícua safra do cinema nordestino que já não se restringe a uma estética regionalista outrora fortemente ligada ao pungente universo do sertão. Ao exibir filmes de todos os estados da região, Ikeda quis revelar e problematizar os muitos Nordestes que coexistem em um só, introduzindo no debate questões em torno das relações urbano-rural e capital-interior tornadas cada vez mais complexas. “Respeitando os contextos locais, temos desde filmes como o do Eduardo Crispim, do Piauí, que reflete sobre as feiras itinerantes do interior nordestino em vias de desaparecimento, até filmes com uma pegada política, como Martírio, longa pernambucano que trata sobre extermínio e massacre da população indígena por nós, homens brancos, e Corpo Delito, documentário do Ceará em torno da liberdade condicional de um rapaz que usa uma tornozeleira eletrônica. O humor, as questões de gênero, urbanas ou metafísicas, tudo isso perpassa esses “Nordestes” que se revelam e se escondem, fazendo pensar”, acredita.

Em foco, o fazer cinematográfico fez pensar a própria qualidade do desenvolvimento do cinema nordestino. “Acho que o boom do cinema no Nordeste se deve muito ao cinema independente, de guerrilha, aos próprios coletivos formados por jovens realizadores que se revezam em múltiplas funções, jogando nas onze. Acredito muito nessa forma de se virar pra produzir, exibir, distribuir. No Maranhão, fundei a Lume Filmes em 2006, que é uma empresa de produção e distribuição de filmes independentes que nunca se valeu de verba governamental nem editais de incentivo. Há dez anos, pelo menos entre quem estava começando, não se falava em valores. Hoje, a Ancine toma conta do mercado através de editais públicos, então todos os realizadores têm o foco voltado para a verba e, a meu ver, atrapalha porque estão esquecendo de fazer cinema independente, mesmo os coletivos. Isso vem prejudicando a própria criatividade. As pessoas preferem fazer um bom projeto do que um bom filme. Não se fala mais em linguagem, em narrativa cinematográfica, história do cinema brasileiro, mundial. Só se fala em câmera, DCP, grana pra edital, formato de exibição”, critica Frederico Machado, diretor e produtor maranhense convidado a exibir o seu “Lamparina da Aurora”, longa vencedor da cultuada Mostra Tiradentes.

Às voltas com o quarto longa-metragem independente, Machado nunca precisou sair de São Luís para produzir ou distribuir seus filmes. Investindo em parcerias com o circuito exibidor apostando em trabalhos colaborativos, é dono de salas de cinema no Maranhão, já distribuiu mais de 300 filmes no mercado de home-vídeo, criou o Lume International Film Festival, em 2016 lançou o Lume Channel, canal de cinema autoral na internet e há um ano abriu as portas de uma escola particular de cinema em sua cidade natal onde os estudantes também vestem a camisa de socioprodutores no processo de produção dos filmes. “Tem formas e formas de fazer cinema, mas o cinema independente não pode se ater somente à política de incentivo da Ancine, onde se está padronizando até os núcleos criativos. A ideia até que é muito legal: juntar cinco projetos através de um líder e desenvolver a cartela de projetos de uma produtora. Acontece que só são premiadas produtoras maiores, de grande perfil e grande produção, o que acaba atrapalhando esse cinema menor”, questiona.

Hoje, a Ancine toma conta do mercado através de editais públicos e isso atrapalha porque as pessoas preferem fazer um bom projeto do que um bom filme  – Frederico Machado, diretor e produtor

Para Machado, há sim a necessidade de editais para se realizar determinados filmes, mas não todos. “Acabamos de fazer um longa, Lamparina da Aurora, com 22 mil reais, atores respeitados, uma só locação, equipe de 20 pessoas, cada um dando 500 reais, que foi filmado em 15 dias e finalizado em DCP. Esse filme foi premiado em Tiradentes. Ou seja, é possível, sendo todos produtores do filme, entrando em sociedade. Pra que procurar edital? Tudo bem, façam com edital, mas depois façam outros com dez mil reais, como fizeram o primeiro. Não se quer mais, entende? Isso acaba desvirtuando o desejo inicial de fazer cinema, que é movido a paixão. Porque agora se quer viver de cinema, comprar apartamento, carro do ano… não estou generalizando, mas acontece. O tipo de cinema muda, muda o trato com o próprio mercado, com o agente de vendas, com os festivais, porque o cinema que se quer fazer é o que dá fama, o que dá grana e não aquele onde me revelo pro mundo através dos meus filmes”, provoca, enfatizando que o primeiro edital para audiovisual lançado em São Luís foi no ano passado, ainda assim cercado de polêmicas.

Em meio a críticas pontuais, há quem defenda que é através de recursos aportados pela Ancine em editais regionais que a engrenagem da produção audiovisual no Brasil vem conseguindo girar. “No Piauí, a gente depende dos editais nacionais, por não termos apoio dos governos municipal e estadual. Por isso considero um marco a política pública federal do Ministério da Cultura que promove a descentralização, com iniciativas de editais regionais, como o DOCTV, que estimulou a produção local. Pro Nordeste, a Ancine também é muito importante e, nos últimos anos, mais ainda, depois que lançou uma linha chamada “arranjos regionais”, onde complementa os editais municiais e estaduais. Mas pra se beneficiar com isso o município ou estado tem que atender às exigências da Ancine. E o Piauí foi o único estado do Nordeste que não conseguiu fazer essa parceria, por não contar com uma mobilização política capaz de sensibilizar e pressionar a administração pública”, lamenta Eduardo Crispim, diretor do curta-metragem “Tá Acabando”, sobre as feiras nordestinas, e dono da Madre Filmes, produtora fundada em 2010.

Para ele, igualmente importante tem sido o investimento público federal em formação. Com destaque para o Conselho Consultivo do Centro Audiovisual Norte-Nordeste (Canne). Implantado em 2008, o Canne foi sediado em Recife (PE) com o objetivo de criar um espaço para oferta de bens de produção cinematográfica, bem como um núcleo de qualificação profissional na área do audiovisual, a partir de uma parceria entre a Fundação Joaquim Nabuco / Ministério da Educação (Fundaj/MEC) e a Secretaria do Audiovisual / Ministério da Cultura (SAv/MinC). “Esse núcleo formador criado em Pernambuco fez circular cursos gratuitos em todos os estados do Brasil, qualificando a mão de obra. Professores de todo o Brasil passaram por aqui. Mas agora deram uma parada nisso, infelizmente”, lamenta, contabilizando ainda a recente descontinuidade do convênio de 30 anos entre o Governo Federal e a Escola Internacional de Cinema e TV de San Antonio de Los Baños (EICTV), em Cuba, onde o MinC concedia bolsas aos brasileiros que passavam pelo processo seletivo da escola.

Essa galera de 20 e poucos anos, que só tem como referência a Netflix e a indústria do audiovisual precisa conhecer outras linguagens – Marcus Vurvelo, realizador

Animador para os realizadores presentes à Mostra Cine Nordeste foi constatar a flagrante propagação de coletivos em diferentes estados da região. Coletivo Alumbramento, no Ceará. Coletivo Cual, na Bahia. Coletivo Caboré, no Rio Grande do Norte, entre outros tantos. A força criativa resultante da união de jovens realizadores em torno de ideias e projetos comuns vem emergindo como marca-registrada do cinema independente contemporâneo. Assim, egos e individualismos perdem espaço para a não hierarquização de funções e a alternância de papeis, no melhor estilo “todos por um”. “No Cual, há seis anos, além de produzir filmes coletivamente, com ou sem edital, a gente quer pensar o cinema. Por isso, apostamos em oficinas onde não só exibimos filmes autorais como discutimos o cinema brasileiro, com ênfase no Cinema Novo e no cinema marginal. Essa galera de 20 e poucos anos, que só tem como referência o Netflix e a indústria do audiovisual, precisa conhecer outras linguagens. O momento exige que sejamos mais do que técnicos com bacharelado em artes, que é o que a Ufba oferece em termos de formação acadêmica. Precisamos formar autores e pensadores de cinema para atuar politicamente com suas criações”, defende o realizador baiano Marcus Curvelo.

Para a realizadora potiguar Diana Coelho, do Coletivo Caboré, a resistência intrínseca aos coletivos, onde imperativo é engajar pessoas em torno do desenvolvimento de toda uma cena local, alimenta estratégias e astúcias para continuar produzindo, mesmo em um contexto desfavorável. Assim é que, para além dos editais, vale apelar para financiamento coletivo, vaquinha e até dinheiro próprio na caixinha, depositado religiosamente a cada suado mês de trabalhos outros. Esforço conjunto de 12 integrantes que tornaram possível a coprodução de Septo, a primeira web série potiguar, lançada em 2016. Nadar contra a maré para enfrentar uma invisibilidade aparente. “As pessoas ainda veem o cinema como longa-metragem e como desde a década de 1980 não se lançou nenhum longa em Natal, essa impressão de que não existe audiovisual no Rio Grande do Norte é ainda maior, levando em conta que a circulação de toda uma produção de curtas ainda é tímida em âmbito regional ou nacional”, opina.

Crescer para aparecer. Mas sem perder a originalidade jamais. Eis a vontade de potência que anima os realizadores do cinema nordestino contemporâneo. “Ainda vejo um olhar preconceituoso, piedoso, às vezes, em relação ao cinema que se faz no Nordeste, mas a gente vem conseguindo se impor. E isso porque conseguimos fazer um cinema autoral mesmo, com diversidade de temas e olhares. Acho que ainda temos um olhar livre, que não foi tão tomado de assalto por essa indústria que a Ancine quer contemplar. Ainda dá pra fazer um cinema autoral de fato aqui, não esse autoral camuflado pra festival, pra fazer linha e onda com intelectuais. A gente se sobressai por conta de um olhar mais humano pro mundo. São Paulo tem sets maravilhosos nas ruas, mas o cinema paulista não aproveita esse set natural, porque o olhar já é tão poluído que se olha mas não se vê para além da superfície. A gente ainda tem essa calma pra olhar e pra conversar, fazer cinema sem pressa”, conclui o realizador maranhense Frederico Machado.

(Matéria publicada na Revestrés#30– Abril/Maio 2017)