Por fora parece uma banca de revista. Mas o letreiro é mais ambicioso: “Livraria do Chico”. Naquela tarde o telefone toca sem parar. Estudantes querem combinar o sarau que fariam em defesa da manutenção do quiosque do Chiquinho na parte central do ICC (Instituto Central de Ciências), principal prédio da Universidade de Brasília, conhecido como “minhocão”. Francisco Joaquim de Carvalho está nesse mesmo local há 26 anos e conquistou a simpatia de todos. Na frente da banca, cadeirões de borracha improvisam uma sala-de-estar. Professores e estudantes sempre estão por ali: discutindo livros ou procurando novidades como um novo autor que Chiquinho recomende. Alguns passam avisando que voltam mais tarde. Esse clima de bons amigos está ameaçado pelo projeto de revitalização da Universidade, que pretende retirar dali todos os pontos de comércio.

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(Foto: Mauricio Pokemon)

 

Nascido em Picos, Piauí, Chiquinho, hoje com 56 anos, veio para Brasília em pau de arara. Trabalhou desde menino como vendedor de jornais. Aos 13 anos conseguiu emprego em uma banca de revista onde a dona deixava ele ler tudo o que quisesse. “Ela selou meu destino”. Apaixonou-se pela leitura e se tornou um funcionário disputado pelas livrarias de Brasília. Passou a vender livros de mão em mão nos corredores da UnB, conversando com professores e estudantes. Desde 89 se estabeleceu no ponto onde permanece. “Eu gosto de encontrar o livro para o leitor. Isso é uma dádiva”.

A informação é confirmada pelo professor de Arquitetura Cláudio Villar de Queiroz, que chega à banca procurando um livro. “A academia se confronta com uma realidade formidável que é o Chiquinho, com um talento que foi potencializado no ambiente da universidade. Ele se tornou um livreiro, mas não um livreiro comum. Você procura um livro e ele sugere outros, com opiniões análogas e diferentes”.  Chiquinho, que ouvia a conversa, estufa o peito: “Livreiro é uma profissão muito simples, mas muito importante”.

Chiquinho se considera um autodidata. Orgulha-se de nunca ter ficado doente e nunca ter faltado ao trabalho. Diz que sua livraria só fecha uma vez por ano: a cada primeiro de janeiro. Por dentro, o espaço de 12 m2 é apertado e cheio de livros – de filosofia, sociologia, comunicação, literatura, artes…. “Eu sou de humanas”, define.

Morador de Sobradinho, onde vive com a esposa e dois filhos, Chiquinho participa das maiores feiras de livros do país, como a FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty), e gosta do contato com grandes escritores. Mostra-nos fotos com José Saramago, Ariano Suassuna, Eduardo Galeano, Mia Couto. Em 2005 recebeu o título de cidadão de Brasília. No livro “História Contada: a história da UnB contada por seus personagens”, publicado em 2012 pela UnB, ele é uma das figuras ilustres do Campus Darcy Ribeiro. Tornou-se tão conhecido que não é raro que seja convidado para contar sua experiência em eventos.

Com esse currículo, tornou-se matéria nos maiores jornais do país e personagem retratado por Maurício Kubrusly no quadro “Me leva Brasil”, no Fantástico. Confessa que a entrevista que mais lhe deixou nervoso foi quando uma repórter disse: “Você tem 10 minutos para contar como a leitura mudou a sua vida”. Desde então faz a mesma provocação para seus clientes. “E eu anoto as respostas. É uma pesquisa que eu tô fazendo”.

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(Foto: Mauricio Pokemon)

 

Em defesa da manutenção de Chiquinho no ICC estudantes e professores criaram a página “Chico Fica”, no facebook, onde combinam ações como o sarau e o abraço na livraria. Até a publicação dessa matéria a página “Chico Fica” contava com mais de 5 mil seguidores. Outra página, “Livraria do Chico”, traz as dicas do livreiro sobre autores e livros, a agenda da livraria e frases de estímulo à leitura e à pesquisa.

Segundo a assessoria da reitoria da UnB o projeto de retirada dos quiosques de livros, revistas, alimentação e outras atividades cumpre determinação do Tribunal de Contas da União que considerou que o ICC não é local apropriado para atividade comercial. Para resolver a questão, a administração da Universidade construiu três Módulos de Apoio e Serviços Comunitários (Mascs), para onde já estão se mudando alguns permissionários. Eles reclamam que os locais construídos ficam fora do ambiente que abriga as salas de aula, o que pode provocar um distanciamento da comunidade universitária e consequente queda de vendas.

Doutor em Desenvolvimento Sustentável, o professor de arquitetura Cláudio Villar, como outros professores e estudantes, aproveitava a visita para manifestar solidariedade a Chiquinho. O professor nos convida a caminhar pelo ICC e pede que imaginemos aquela área sem as bancas que terminam por encobrir a paisagem: “Oscar Niemeyer pensou isso aqui como um vão livre, onde se pudesse ver toda a extensão do prédio. Isso é uma beleza!”. Depois contrapõe: “Mas Chiquinho não é um vendedor, é uma personalidade de expressão na UnB”. E acrescenta: “Os caixas eletrônicos dos bancos vão permanecer no ICC. Um livreiro vale menos?”. O impasse está formado.

Com jeito amigável, Chiquinho agradece as manifestações de solidariedade, que considera um coroamento do seu trabalho. Conversa com os clientes e responde às perguntas que fazemos enquanto vai deixando escapar sua filosofia de vida: “O estudo é líquido e me leva a amizades sólidas”. Sobre a expectativa em torno da permanência de sua livraria no ICC, Chiquinho torce para que a história já construída por ele ao longo do tempo seja fundamental na decisão, lhe permitindo ficar. E sugere: “Eu tenho uma frase boa pra terminar sua matéria. Escreva assim: ´o tempo é o senhor da memória. Assina Chico´”.

O prédio

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(Foto: Mauricio Pokemon)

 

O ICC foi desenhado originalmente por Oscar Niemeyer e se soma às criações da nova capital federal. Ele levou oito anos para ser construído: de 1963 à 1971. Até hoje está inacabado. Durante a construção ocorreu o golpe militar de 1964 e toda a equipe foi afastada, inclusive Niemeyer.

O edifício linear e curvo, com quase 700 metros de extensão, é considerado uma inovação, pela forma (praticamente toda a Universidade é alojada ao longo de uma rua) e pela técnica construtiva (usando estruturas pré-moldadas, que foram ocupadas na medida em que as seções ficavam prontas).

O ICC abriga sete institutos (de Ciências Exatas, de Ciências Humanas, de Ciências Sociais, de Física, de Geociências, de Letras e de Psicologia) e três faculdades (de Comunicação, de Agronomia e Veterinária e de Arquitetura e Urbanismo).

 

(Publicada em Revestrés#23, dez-jan de 2016)