Polêmicas, suspensão de edital, corte de verbas, censura e impasse sobre o destino da Agência Nacional do Cinema (Ancine). Neste segundo semestre de 2019, a Ancine esteve na pauta da mídia por diversas questões controversas. Tudo isso ocorrendo em um momento em que o audiovisual, especialmente o cinema brasileiro, tem crescido e está sendo reconhecido. No Festival de Cannes deste ano, por exemplo, Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, ganhou o Prêmio do Júri, e A Vida Invisível, de Karim Aïnouz, a Mostra Um Certo Olhar. Desde 1962, com o Pagador de Promessas, o cinema brasileiro não ganhava prêmios em Cannes. Outro destaque recente foi o documentário Alguém tem que ouvir o coração e dizer: Parou, de Bárbara Paz, que ganhou o prêmio da crítica independente do 76º Festival Internacional de Cinema de Veneza.
Contudo, essa boa fase do audiovisual pode não continuar devido às questões envolvendo a Ancine. “Estamos passando por momento muito grave na política do audiovisual brasileiro, porque o cinema está passando por um momento muito fértil, tanto em termos de geração de emprego e renda quanto de performance e resultado comercial”, analisa Marcelo Ikeda, pesquisador de políticas públicas e mecanismos de financiamentos do audiovisual e professor da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Esse momento a que Marcelo se refere começou ainda em julho, quando o presidente Jair Bolsonaro disse que iria transferir a sede da Ancine do Rio de Janeiro para Brasília e, posteriormente, falou na extinção da agência se não puder haver “filtro”, além de defender a produção de filmes sobre heróis brasileiros. Já em agosto, o diretor presidente da Ancine, Christian de Castro Oliveira, foi afastado do cargo por decisão judicial baseada em ação do Ministério Público Federal. Atualmente, o cargo é ocupado interinamente por Alex Braga.
No mesmo mês Jair Bolsonaro disse, durante transmissão ao vivo na internet, que havia conseguido “abortar” projetos que seriam autorizados a captar recursos para a sua produção através de verbas públicas ou patrocínios, que podem ser revertidos em isenção de impostos. Na live, o presidente citou nominalmente algumas das produções: Afronte, Transversais, Religare Queer e Sexo Reverso. De acordo com Bolsonaro: “provavelmente esses filmes não têm audiência, não têm plateia, tem meia dúzia ali, mas o dinheiro é gasto”.
As quatro produções citadas por Bolsonaro possuem temáticas LGBTQI+, assunto amplamente criticado pelo presidente, e fazem parte de uma lista de produções pré-aprovadas pelo edital do Programa de Apoio ao Desenvolvimento do Audiovisual Brasileiro (Prodav). Transversais, por exemplo, seria um desdobramento de Aqueles Dois, curta-metragem dirigido por Émerson Maranhão, que conta a história de dois homens transgêneros. Aqueles Dois foi selecionado para concorrer em diversos festivais no Brasil e em outros países, como Chile, Eslováquia e Panamá. O curta também recebeu diversos prêmios em festivais. Para a série, a proposta do roteiro prevê, em cinco episódios, contar a história de cinco pessoas transgêneros que vivem no Ceará.
Mesmo afirmando que não estava censurando as produções, poucos dias depois da transmissão o Diário Oficial da União (DOU) trouxe a suspensão do edital. A justificativa foi a reorganização do Comitê Decisório de Investimentos do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), de onde saem os recursos. Com isso, o financiamento não apenas desse edital, mas de todo o setor audiovisual, está parado. As declarações de Bolsonaro e a suspensão do edital ainda culminaram na saída do cargo do secretário de Cultura do governo, Henrique Pires, que alegou à imprensa não “chancelar a censura” que vem ocorrendo em produções culturais.
Para o cineasta cearense Émerson Maranhão, assistir sua produção sendo citada foi inicialmente um susto, que depois se transformou em indignação. “Legalmente ele não pode tirar uma categoria de um concurso público, porque um edital é um concurso público, que é, inclusive, anterior ao governo dele. A única maneira que ele conseguiu de impedir a realização dessas séries foi suspendendo o edital todo por seis meses, renovados por mais seis”, recorda Émerson Maranhão.
A suspensão provocou ainda a divulgação de notas de repúdio de algumas instituições, como da Associação de Produtores Independentes do Audiovisual (API) e da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará (Secult-CE), que criticaram a fala de Bolsonaro. Para a primeira, o ato foi de censura; para a Secult, uma manifestação discriminatória.
Além das produções citadas por Bolsonaro, a lista do edital da Prodav possui 289 projetos para exibição em tevês públicas que aguardavam o resultado final. O Programa foi criado para promover a diversidade e o pluralismo na tevê e teve seu último edital lançado em 2018. Ele previa o financiamento de cerca de 70 iniciativas, divididas em 14 categorias, sendo duas delas diversidade de gênero e sexualidade, nas quais estavam inseridas as produções citadas por Bolsonaro. As demais envolviam temas como: raça e religião, sociedade e meio-ambiente, manifestações culturais, qualidade de vida, biografias e até produções infantis e para jovens, dentre ficção, documentários e animações. Pelo edital, cada uma das categorias teria cinco vencedores, um para cada região do país.
O diretor piauiense Alexandre Mello tem duas produções na lista de pré-aprovados: Um certo Luís (documentário livre) e Os Medalhões (ficção livre). E mesmo fora das temáticas criticadas, suas produções também foram prejudicadas com a suspensão do edital. “Mesmo não estando na lista dos filmes citados pelo presidente, isso nos traz uma grande preocupação com uma possível volta da censura, que é absurda em qualquer quesito, pois qualquer um estará sujeito a ser atingido a todo momento”, destaca o cineasta que, atualmente, tem quatro produções com verba da Ancine em produção ou finalizadas recentemente.
No começo de outubro, o pedido do MPF, que alegava que a suspenção era motivada por discriminação por orientação sexual e identidade de gênero foi acatada pela juíza Laura Bastos Carvalho, da 11ª Vara Federal do Rio de Janeiro. Ela determinou que o Ministério da Cidadania e a Ancine retomassem o edital.
Para a juíza, a alegação do Governo Federal de que seria necessário a recomposição dos membros do Comitê Gestor do Fundo Setorial do Audiovisual para a finalização do edital não corresponde ao que determina o próprio documento, uma vez que ele afirma que a escolha dos projetos selecionados será realizada por comissão avaliadora própria. Na sua decisão, a juíza ainda afirmou que a suspensão do edital “traz indícios de que a discriminação alegada pelo Ministério Público Federal pode estar sendo praticada”.
Ao tentar reverter a decisão da 11ª Vara Federal do Rio de Janeiro, o governo sofreu nova derrota. Dessa vez pelo Tribunal Regional Federal (TRF) da 2ª região que negou recurso da AGU que afirmava que a 11ª Vara Federal não tinha competência para processar e julgar o pedido do MPF e que a suspensão do edital se devia a uma “Penúria fiscal” da União. Contudo, até o fechamento desta edição, o edital não havia sido retomado.
Incertezas rondam Ancine
Após a suspensão do edital do Prodav, as polêmicas envolvendo a Ancine e seu papel no fomento e regulação dos filmes nacionais continuaram. Em setembro, o longa Marighella, de Wagner Moura teve sua estreia, marcada para o dia 12 de novembro no Brasil, cancelada. Motivo: a produção não teria conseguido cumprir os trâmites exigidos pela Ancine para a liberação de verbas. Ainda não há nova data prevista para que o filme chegue às telas dos cinemas brasileiros.
Lançado em fevereiro no Festival de Cinema de Berlim, Marighella já pôde ser visto nas telas de festivas de cinemas de diversos países, recebendo boas críticas. O filme conta a história de Carlos Marighella, militante comunista assassinado pela ditadura militar em 1969.
Em seguida, os filmes Greta e Negrum3, com temática LGBTQI+, tiveram canceladas suas concessões de apoio financeiro para que pudessem participar do Festival Internacional de Cinema Queer, em Lisboa. A Ancine já havia aprovado o apoio aos dois filmes, no qual cada uma das produções receberia R$ 4,6 mil para participar do evento. Neste caso, a justificativa apresentada pela instituição foi um corte de R$ 13 milhões nas despesas gerais da agência.
Também em setembro, o presidente apresentou um projeto ao poder legislativo que corta, para 2020, 43% do orçamento do Fundo Setorial do Audiovisual, que passaria a dispor de orçamento de apenas R$ 415,3 milhões. Esse é o menor valor destinado ao fundo desde 2012. O mesmo documento prevê ainda maior redução na captação de recursos por meio de participação em empresas e projetos.
O pesquisador Marcelo Ikeda ainda destaca outras questões que estão prejudicando as produções nacionais. “Toda a política do audiovisual é formulada pelo Conselho Superior de Cinema e ele ainda não foi nomeado pelo governo Bolsonaro. Ele é importante porque vai discutir como vai ser a regulação do vídeo sob demanda, que é uma questão fundamental hoje. Além disso, os recursos do audiovisual são gerenciados pelo Fundo Setorial do Audiovisual, que tem um comitê gestor que também não foi nomeado pelo novo governo. E tem a Cota de Tela, instrumento regulatório existente desde a Era Vargas, determinando que toda sala comercial tem que exibir filmes brasileiros por um número mínimo de dias. Essa cota é feita por um decreto publicado anualmente, o que também ainda não aconteceu este ano”. Sem a Cota de Telas as salas de cinema não têm obrigação de exibir filmes nacionais, o que pode diminuir o número de produções made in Brasil que chegam às telas.
Crise na Ancine e retrocesso
Dados da própria Ancine mostram que, desde 2014, o cinema nacional tem apresentado números crescentes: Em 2014 foram lançados, nas salas de cinema, 114 filmes brasileiros. Em 2018 esse número chegou a 185, representando cerca de 38,54% dos lançamentos no Brasil. A participação do público também aumentou de 12,25%, em 2014, para 14,83% em 2018. Assim como o número de empresas produtoras registradas, que passou de 963 (2014) para 1.015 (2018).
Mas será que há alguma semelhança entre a crise que a Ancine enfrenta atualmente com o início da década de 1990, quando o cinema nacional vinha em expansão, mas, com o fim da Embrafilme, no governo Collor, houve queda drástica na produção de filmes, chegando a menos de uma dezena por ano?
Para Marcelo Ikeda há diferenças: “esse momento é diferente de 1990 porque, quando a Embrafilme foi liquidada pelo governo Collor, ela não tinha o apoio público. A imprensa e a sociedade civil criticavam muito a Embrafilme. Acho que hoje o cinema brasileiro vive outro momento, muito mais robusto que naquela época. E outra diferença é que toda política nacional do cinema está em torno da Ancine, que é uma agência reguladora e, como tal, não pode ser extinta por um simples decreto do presidente. Ela precisa passar por uma lei no Congresso”, explica Marcelo Ikeda.
Todavia, sem verbas as produções nacionais de filmes e séries podem sofrer uma queda, o que afeta também os festivais de cinema e toda a cadeia produtiva que envolve esse mercado.
Publicado na Revestrés#43 – setembro-outubro 2019.
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