Em cartaz nos cinemas de Teresina, em setembro, estavam uma animação de super-heróis, um filme de terror com uma freira assassina e outro filme qualquer com muito sangue e explosões catastróficas. Mas, pelo menos na sexta-feira específica de 21 desse mês, nenhuma dessas películas teve sala lotada. Não, não: essa honra foi toda direcionada para uma sessão especial, dos piauienses e nordestinos, suas memórias e lendas. Ali, com a tela imensa a praticamente engolir mais de 100 pessoas, quase todas netas do sol do Equador, famílias dos anos 60, 70 e 80 tinham seu passado remontado pelos filminhos de câmera Super 8 que, por décadas, ficaram encaixotados e esquecidos no escuro. Logo depois, o Cabeça de Cuia era reconstruído pelas razões psicossociais que o levaram a matar a própria mãe com um osso. Fala-se aqui do curta-metragem Supermemórias, de Danilo Carvalho, e do longa O Pescador e o Rio, de Flávio Guedes. 

Supermemórias, de Danilo Carvalho

O Pescador e o Rio, de Flávio Guedes.

Os paralelos entre os dois trabalhos são infinitos: o primeiro define sua obra como “uma poesia coletiva, feita por memórias alheias”, enquanto o segundo interpreta-a como “uma história de violência doméstica antiga que se conecta com o atual e vai além do fatídico popular”. Danilo volta no tempo para recordar fragmentos de vida gravados em uma máquina, mas Flávio aporta no presente, usando drones para filmar cenas dramáticas de Crispim e Maria, mãe do personagem na história. Supermemórias foca nos centros urbanos cheios de asfalto e vida, e O Pescador e o Rio explora o sertão do interior do Piauí para dar forma ao conto do imaginário. 

E a lista segue nas trajetórias dos criadores: Danilo atuou por anos como técnico de som no cinema nacional, morou nos Estados Unidos, lançou este filme em Fortaleza, com inspiração vinda de Cuba, e rodou com ele pelo Rio de Janeiro, Colômbia e Alemanha. Já Flávio iniciou no audiovisual como ator e agora mora em São Paulo, indo esporadicamente para Picos, sul do Piauí, impulsionar a cena da região. 

Mas se existem divergências entre os artistas e suas obras, o toque de convergência está no Piauí, ponto de onde saíram e para onde voltaram. “Estou morando há cinco anos em Parnaíba com a Camila [Battistetti, produtora do Supermemórias] e estamos sentindo e fazendo parte de um movimento que nasce agora. Fizemos a primeira oficina de captação de som direto, de desenho de som e de audiovisual, de forma geral, e vieram pessoas amadoras que almejam fazer seus próprios filmes”, coloca Danilo. Para Flávio, o Piauí é fonte resistente no que produz, já que “as histórias são todas nossas, bem como os atores e os roteiros mostrando o que temos de bonito e de feio, e o que ando tentando fazer é contar histórias picoenses, causos nossos, sem ficar no regionalismo típico”. 

E não só isso. A sutileza das produções causa identificação nos piauienses e nos nordestinos. “O Supermemórias é aplicado em lugares em que as pessoas têm que entrar em contato com esse lado humano para repensar sua vida, suas atitudes cotidianas, um trato com o ser”, diz Danilo. Flávio defende que “as pessoas vão ao cinema e estão gostando de se ver, reconhecendo-se nas histórias, identificando-se com a paisagem, a linguagem, o vestuário, e nós precisamos nos ver mais e ter orgulho da gente”. 

“O que tem aqui são pessoas começando a produzir seus filmes e sem dinheiro, com câmeras emprestadas ou amigos que tenham o mínimo de know-how – Camila Battistetti, produtora.

Dentro desse contexto do “humano” que há em nossa região, o otimismo existe, apesar das intempéries. “Camila e eu nos sentimos da cena piauiense, em que há pessoas que se envolvem e que querem uma competição de igual a igual, do Piauí com os outros estados”, aponta Danilo, completado por Camila, quanto à rota para essa meta.  “O que tem aqui são pessoas começando a produzir seus filmes e sem dinheiro, com câmeras emprestadas ou amigos que tenham o mínimo de know-how em determinadas áreas. Aí quando finalmente, em 2017, vem à luz um primeiro edital de audiovisual piauiense, abraçado pela Ancine [Agência Nacional do Cinema] e pelo Estado, ele prestigia uma única produção de um milhão de reais ao invés de cinco que custariam 200 mil cada, por exemplo. Reclamamos, o edital foi refeito outras vezes, todos os interessados participaram e estamos aqui ainda encalhados, com contratos estranhos e sem ninguém saber se vai mesmo receber esse dinheiro”, pronuncia-se a produtora, adicionando que “quem consegue produzir no Piauí é porque está com muita vontade de fazer”. 

Tássia Araújo, curadora da mostra Parada de Cinema, é pontual quando diz que “Teresina e o Piauí estão passando por um momento de desterritorialização e ‘desidentidade’, em que o crescimento populacional do espaço ganha intervenções que mais beneficiam certa classe do que traz de fato mobilidade e melhorias, instigando a quem atua nessa área a ficar alerta e olhar para as bordas”. Para ela, “isso tem nos desafiado para que façamos algo e partamos para o cinema, como nossa linguagem e como potência de comunicar”. 

Pode ser complicado, frente a diversos empecilhos culturais, mas é possível, tal qual é visto em Supermemórias e O Pescador e o Rio, que projetam o passado em vertentes distintas. E, por ser um cinema em ascensão, outros olhos piauienses também se voltam para realizar filmes que trazem o presente e o futuro do audiovisual em desconstrução e reconstrução. 

 

Coletivos: das pessoas para as pessoas 

Fora do circuito comercial, mas dentro de uma cena que lhes é íntima, estão jovens que já têm a sensibilidade de reverter essa lógica industrial do cinema e trazer as pelejas de cidadãos locais para suas narrativas. LabCine é um desses coletivos, que atualmente define-se como um selo de produção, bem como o VDC Audiovisual [sigla derivada do termo mais utilizado pelo grupo em momentos de dificuldade: Vai Dar Certo]. Mesmo com os projetos pessoais de cada grupo, os conjuntos acabam se misturando no que se sugere como o novíssimo momento do audiovisual piauiense. 

Composto pelos jornalistas Weslley Oliveira, Milena Rocha, Germano Portela, Fabrício Campos e quem mais se interessar a entrar nesse antro de debate e criação, o LabCine partiu de uma oficina de cinema em 2015 para um curta experimental em uma disciplina do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Piauí. Cada integrante tinha paixões diferentes pelo cinema, o que não os impediu de juntarem-se e convidar pessoas próximas para assumir funções, a fim de amadurecerem enquanto equipe e enquanto pessoas do audiovisual. 

O Pranto do Artista, de LabCine.

Dividido atualmente em duas plataformas de atuação que englobam produção de filmes e discussões sobre o cinema em um fórum online, o selo partilha textos sobre a área, editais e festivais, em núcleos que podem se expandir para fomentar outros tipos de audiovisual. “Nessa comunidade, há participação colaborativa entre todos nós, além de só os equipamentos, já que o fazer coletivamente foge do solitário”, diz Milena. 

É como se esses nomes emergentes na cena aprendessem juntos o cinema em uma dinâmica horizontal, sem hierarquia de produção, e com uma maneira particular de se pensar o momento, ao mediar e dialogar com as minorias. “Principalmente quanto ao gênero documentário, há essa consciência de trazer à tona temas pulsantes na nossa cultura que quebram a visão colonizadora em relação aos sujeitos de observação, abrindo portas para refletir essa imersão”, afirma Weslley. 

E isso fica evidente ao pegarmos questões centrais dos filmes produzidos pelos grupos, como O Pranto do Artista que, em sua visão metalinguística, traz as dificuldades do fazer artístico no cinema independente e nos últimos dias de funcionamento de um circo em Timon-MA, ou O Casulo e a Borboleta, que aponta a transexualidade como foco da narrativa. 

No mesmo fluxo de ideia, o VDC começou como um desafio pessoal. Surgiu uma noção de roteiro e este foi realizado, mas sem ninguém saber a dimensão do que viria após a finalização do processo. A partir desse primeiro projeto, que trazia Jonathan Dourado e Javé Montucho na equipe, foi criado o coletivo, que conta ainda com Luma Alves, Filipe Silva, Martins Peres e uma lista aberta de colaboradores que queiram fazer parte. 

Para Javé, o cinema dos coletivos só possui uma linguagem própria por ser um espaço “de experimentação e aprendizado, com as pessoas vivendo os mesmos assuntos, ainda que com suas subjetividades”. Jonathan vai além, dizendo que “o fazer desse cinema parte de resistência, luta e união, em que ninguém domina algo, nem tem equipamento, mas cada um vai criando com o que tem e acabam surgindo esses filmes”. 

Segundo Weslley, “temos o conhecimento empírico, nos baseamos nele, nas nossas discussões e influências externas, preenchendo o déficit com isso, sem negar nossas dificuldades, e apresentando uma narrativa com alto grau de sinceridade”. E isso também é um ponto forte também para Germano. “É comum esse protagonismo que tentamos dar para quem está sendo documentado. Não usamos narração em off , pelo nosso instinto de querer dar voz aos personagens, captando momentos e tentando montá-los a partir de suas ações”, afirma. O VDC vai pelo mesmo viés, ao “mostrar o contexto, os lugares onde essas pessoas vivem e quais são suas histórias, tão estigmatizadas e caricaturadas quando aparecem na mídia”, completa Thiago. 

Além de retratar essas pessoas, os coletivos buscam mostrar a elas o que foi gravado, fazendo-as se verem. “Se estamos produzindo ‘cinema da gente’, precisamos apresentar pra essa gente também, já que não estamos fazendo aqui matéria jornalística, tratando essas pessoas como fonte, conversando com elas e indo embora depois”, Fabrício aponta. 

Antes mesmo de gravar, há casos em que os próprios personagens fazem parte da cadeia de produção, como no Mulheres de Visão, em que as protagonistas, com cegueira ou baixa visão, atuavam como produtoras e roteiristas de entrevistas e o filme finalizado trazia audiodescrição e libras para torná-lo acessível a todos. O mesmo caso aconteceu no Reação do Gueto, obra sobre o movimento do rap na Santa Maria da Codipi, bairro de Teresina, em que os músicos criaram a trilha sonora do filme e ganharam prêmio com ela. 

Mulheres de Visão, de LabCine

E como esses piauienses podem chegar nesses filmes locais? Para Weslley, não chega, salvo poucas exceções. “Não temos cinema comercial. O que temos são pontos de resistência, pessoas que se esforçam para mostrar as produções em bairros, mas são iniciativas escassas e esses filmes acabam por ficar presos a uma parcela da sociedade que detém alguns privilégios”. Milena completa, ao afirmar que a solução seria “criar cinemas nas praças, mas pensar também numa logística acessível, com condições de transporte e segurança para ter esse acesso de forma geral à cultura”. 

Tássia Araujo amplia esse cenário, acreditando que “todos podemos ser agentes, todo espaço e região podem gerar e receber ações de fomento, inclusive escolas públicas e particulares”, ressaltando ainda a presença dos cineclubes Olho Mágico e Tela Sociológica, enquanto espaços de exibição e debate, e da Parada de Cinema, mostra de cinema brasileiro que busca distorcer a lógica industrial, ocupando bairros periféricos para formar públicos. 

O progresso é explícito, como a curadora aponta. “Daqui a dez anos teremos a dimensão do impacto das produções feitas pelos coletivos em Teresina e no Brasil. Em dois ou três anos, o saldo desse cinema já é maravilhoso e instigante, com filmes sendo levados para festivais”. Sim, vê-se o sucesso daqui lá fora. 

No repertório de reconhecimento, Weslley ganhou o prêmio de Melhor Filme na Mostra Panorâmica do Festival Visões Periféricas, Thiago faturou o Prêmio Especial Destaque Criativo na Mostra Nacional do Festival Goiamum Audiovisual, Milena foi selecionada na Mostra Empodera, ação colaborativa de co-produção exclusiva para mulheres, e Germano [em parceria com Weslley] levou o Prêmio do Júri Popular no Festival de Cinema e Vídeo dos Sertões. “Essa visibilidade é da carga de verdade que tem nesses filmes, advinda do nível de envolvimento com os interlocutores e com o comprometimento da história, para que se conte essa história e que seja transformada em um discurso forte”, defende Javé. 

Nós vivemos muito tempo à margem e aprendemos a engrossar o couro, a respirar pelos poros, a fazer tudo de forma sofrida, mas ainda assim fazer” – Danilo Carvalho, Diretor.

No entanto, o caminho ainda é longo, segundo as adversidades enumeradas por Tássia: falta representatividade em outras regiões, falta investimento do Governo no audiovisual como plataforma potente de comunicação e visibilidade, faltam recursos financeiros para nosso cinema abranger mais pessoas e ir a outros contextos, pontos fundamentais para o crescimento do artista e de sua arte. “Não podemos ainda dizer que temos um edital para nossa área, mas, caso houvesse de fato, daria uma guinada na linguagem piauiense e poderíamos explorar nosso território com mais afinco”, finaliza. 

A lista pode ser extensa, mas quem produz consegue ser otimista e, nesse sentido, os coletivos comprovam o que Danilo Carvalho defende. “Está tudo acontecendo agora. Esses últimos anos que passaram e os que estão por vir são decisivos para a história do audiovisual daqui. No Piauí, tem muita gente talentosa, lugares vastos em coisas para dizer, histórias, paisagens, artistas, espaços virgens. Nós vivemos muito tempo à margem e aprendemos a engrossar o couro, a respirar pelos poros, a fazer tudo de forma sofrida, mas ainda assim fazer”, diz o diretor. 

Se é possível dizer que esse talento ou o sofrimento para realizar podem ser uma identidade do cinema piauiense, ainda é um pouco complicado. Há interessados em fazer a cena andar, como também há empecilhos que tentam dificultar essa caminhada. Há uma visibilidade maior voltada para a própria sociedade, com comunidades contando suas infinitas histórias. Na contramão, há uma luta em fazer essas histórias chegarem aos espectadores. O saldo, afinal, pode ser positivo, já que foi preciso olhar ao redor para haver uma luta em mudar os entornos da arte, como os filminhos de Super 8 resgatados do escuro depois de décadas. O resultado é um cinema novíssimo, com pessoas que nem sabem ainda conceituá-lo, mas que buscam voltar os olhares do Piauí para ele próprio.  

 

Matéria publicada na Revestrés#38 – novembro-dezembro de 2018.