O relógio marcava 13h05 quando foi anunciada a última prova do semestre. Em Cocal dos Alves (315 km ao norte de Teresina), cidade de pouco mais de 6 mil habitantes, o maior barulho na tarde da sexta-feira, 20 de julho, vinha da agitação dos alunos que aguardavam o início das férias.
Mas férias só para alguns. Iago Vieira, 11 anos, aluno do 6º ano da Unidade Escolar Augustinho Brandão, teve que deixar a brincadeira de lado e continuar na preparação para a segunda fase da Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (OBMEP), que acontece dia 15 de setembro. Esta é sua primeira vez na competição que está em sua 14ª edição (A OBMEP é realizada pelo Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada – IMPA, com apoio da Sociedade Brasileira de Matemática – SBM, e recursos do Ministério da Educação e Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações).
Cocal dos Alves é a cidade do país com a maior proporção de medalhas nas olimpíadas de matemática
Um tanto inquieto com a exigência do professor para a prova, desata em dizer que é difícil passar pela escola sem levar muita “porrada”. “Eu me esforço, mas sempre o Amaral fala: faltou isso, faltou isso”, diz fazendo contas nos dedos da mão. Depois da entrevista, o professor Antônio Cardoso do Amaral pergunta o que achei de Iago, e logo diz: “ele não sabe direito o que está acontecendo, mas vai ganhar várias medalhas.”
O Iago integra um time de 26 alunos que, na preparação da OBMEP 2018, se encontram aos sábados para estudos mais avançados. “A gente pede ajuda a outros alunos que já passaram por aqui e organiza grupos de estudo”, explica Amaral. Desde 2005 as aulas de matemática na escola têm ganhado um novo significado. A disciplina, conhecida como “bicho-papão” de muitos alunos, na Augustinho Brandão se tornou a queridinha.
Amaral lembra que a participação na primeira olimpíada, em 2005, aconteceu de forma bem tímida, mas teve um resultado surpreendente. De 23 alunos finalistas, 17 ganharam premiações. Hoje, somente na escola, são 154 premiações, entre medalhas e menções honrosas. Cocal dos Alves é a cidade do país com a maior proporção de medalhas nas olimpíadas. São 327 premiações quando somados os resultados nas duas unidades escolares do município (Augustinho Brandão e Teotônio Ferreira Brandão).
Mas esses não são os únicos resultados. Na Augustinho Brandão, de cada dez estudantes, que concluíram o Ensino Fundamental, oito têm bom aproveitamento na matemática. “Nós tentamos construir junto com o aluno instrumentos que eles vão precisar mais na frente. A matemática tem essa natureza de conteúdos cumulativos, encadeados. Portanto, é preciso ter uma boa base para poder seguir em frente”, argumenta Amaral.
Hoje os 350 estudantes vivem uma realidade de ensino que é fruto de trabalho coletivo e envolve outros professores, escolas e famílias. Amaral reflete sobre sua experiência nos últimos 13 anos: “Antes eu não entendia o lado dos estudantes, achava que quem não estava aprendendo é porque não se interessava”. O professor avalia que, naquele início, elaborar provas difíceis não fazia o menor sentido. Ele ainda admite que, em seu tempo de escola, foi um aluno regular e não tinha afinidade com a matemática. Essa condição, acredita, lhe dá a oportunidade de compreender as dificuldades dos alunos. Com a experiência nas olimpíadas, passou a ensinar a matemática pela matemática.
Tem fórmula?
“A gente jamais dá uma fórmula pronta. Nós demoramos muito com um aluno em um assunto como a fórmula de Bhaskara, para que ele construa esse conhecimento e, a partir dalí, o utilize”, esclarece. A persistência faz parte do seu modo de ensinar. “O Amaral explica até 10 vezes, se for preciso”, afirma Fabíola Machado, 12 anos, aluna do 7º ano, medalhista de bronze em 2017.
“Na primeira turma que conseguimos levar até o vestibular os próprios alunos não acreditavam, porque aquilo era uma realidade distante. – Aurilene Brito
Para a diretora Aurilene Brito, briguenta, como ela mesma se define, a disciplina é a base por trás dos mais de 70% de alunos aprovados no ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) todos os anos, desde a primeira turma, em 2006, e das boas participações em olimpíadas. Os alunos não entram em sala de aula com celular. “Porque atrapalha”, argumenta, ressaltando que a decisão foi tomada depois de muitas reuniões.
No início da escola, em 2003, foi difícil implantar uma forma de trabalho com dedicação aos estudos. Em Cocal dos Alves a educação não era vista como possibilidade de mudança de vida. “Na primeira turma que conseguimos levar até o vestibular os próprios alunos não acreditavam, porque aquilo era uma realidade distante. Eles não pensavam que um dia iriam se formar. E é justamente dessa turma que hoje temos a psicóloga, a fisioterapeuta, o engenheiro do município”, externa Aurilene, com satisfação.
Conseguir uma vaga em universidade era mesmo um sonho distante para Erisvaldo Veras, 23 anos, filho de lavradores do povoado Baixa do Salgado, em Cocal dos Alves. Ele não imaginava, mas chegou ao final do curso de matemática na Universidade Federal do Piauí (Ufpi). Uma medalha de prata da Obmep, em 2014, lhe permitiu financiar os estudos em Teresina. Os medalhistas recebem bolsas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) por um ano, em valores atualizados de R$ 1.200,00 (mil e duzentos reais). Medalhista também em olimpíadas de Física, Química e até de competições de foguetes, hoje ele planeja fazer mestrado, “quem sabe um doutorado”, diz esperançoso, contrariando os recentes cortes no ensino de pós-graduação no Brasil.
“Não era nada traçado, nada muito planejado”, rememora Amaral, que se diz contente em ver ex-alunos conquistando novos espaços. Mas confessa que não é capaz de dizer: “nós reinventamos a roda”. Se perguntamos qual o segredo de Cocal dos Alves e seus estudantes de matemática, o professor afirma: “Nós estamos aprendendo muito ainda, é só o começo de um trabalho. Queremos, pelo menos, a manutenção disso”, finaliza.
(Matéria publicada na Revestrés#37 – agosto-setembro de 2018).