(Matéria publicada na Revestrés #21 – 2015)
Se você vir por aí uma perua customizada, exibindo filmes, expondo e vendendo livros, já sabe: o projeto Itinerância Poética chegou à sua cidade. “Eu falo que a Kombi é a artista e eu sou o motorista”, diz Guilherme Salgado, poeta, músico e educador popular.
Na sua jornada, já passou por Pernambuco, Piauí, Maranhão e Ceará. Mineiro, fez faculdade de fisioterapia, mas foi na educação popular que seguiu carreira na saúde, trabalhando na organização de políticas públicas e acompanhando manifestações artísticas e sociais pelo Brasil. Morou em São Paulo, Paraíba, Bahia e confessa: “Eu já tinha o espírito nômade”.
Escreve desde os 16 anos e, hoje, aos 31, tem dois livros publicados. Itinerância Poética, seu primeiro título lançado há três anos, carrega o nome do projeto que circula pelo país levando poesia a toda parte. “Justamente porque eu tinha poemas escritos em vários lugares pelos quais eu já tinha passado e essa migração acabou disparando em mim uma vocação pela peregrinação”.
Na página do facebook a concepção fica clara. Prêmios: sorrisos e emoções. ISBN de livro: “Sem direitos autorais para quem não acredita em autoridade”
Seu primeiro livro foi lançado pelo selo editorial independente Edtóra. “Porque a gente publica ‘na tora’ mesmo”, explica. Elaborado por Guilherme e amigos, o selo chegou a lançar cinco livros. “Nós mesmos que inventamos e não tem um conselho editorial que vai avaliar se sua obra é boa ou se vende milhões. A gente não tá interessado nisso. Estamos interessados em um afinamento ético, estético e político que dialoga com a arte contemporânea intervencionista”.
A experiência resultou em 400 exemplares e o estimulou a circular, ultrapassando as dificuldades de divulgação e distribuição ao seu modo: caindo na estrada. No ano de 2013 comprou um fusca – foi seu primeiro experimento itinerante. O automóvel circulou oito mil quilômetros de Minas Gerais à Bahia pelo litoral e do oeste da Bahia até Minas Gerais novamente.
O fusca foi ficando pequeno para guardar violão, pandeiro e todos os livros que Guilherme trocava, adquiria e vendia, até que a Kombi deu prosseguimento ao projeto de maneira mais estruturada.
Na página do facebook a concepção fica clara. Prêmios: sorrisos e emoções. ISBN de livro: “Sem direitos autorais para quem não acredita em autoridade”. O movimento Itinerância Poética segue por praia, praça e sertão e, muitas vezes, por caminhos imprevisíveis de levar arte por onde passa.
“Enquanto poeta e escritor eu também quero diminuir a distância, quem escreve e quem lê”. E divulga não só o seu trabalho, mas também a produção de amigos. O que começou como maneira de divulgar e distribuir os próprios livros virou komboteca: é biblioteca, livraria e sebo itinerante. Não parou por aí. Lançou seu segundo livro, Estirpe, de contos e poesias, pelo selo editorial paulista Poesia Maloqueirista, que tem 13 anos e já publicou 26 livros de 21 poetas.
“Um dos meus objetivos principais com o projeto é incentivar os movimentos autônomos numa corrente que a gente tem chamado de literatura divergente porque diverge dos cânones das grandes editoras. Eu até tenho chamado de publicações interdependentes porque tenho achado que a literatura não é independente, ela é solidária porque eu dependo de uma galera do movimento da parceria, da camaradagem, da solidariedade”, defende.
Por dentro da komboteca
Metade imagens e ilustrações, outra metade poesia. Quem a vê não resiste e para quando percebe a novidade. Livro para vender, livro para folhear e, se calhar, filme exibido em praça pública. Para quem quiser, a Kombi ainda é mural em branco para deixar sua mensagem.
De Minas ao Maranhão pelo sertão e do Maranhão a Minas pelo litoral. Guilherme tem o prazo de cinco a seis meses para cumprir este trajeto, saindo de sua terra natal para enveredar pelo caminho da poesia. Nessa trilha, acaba contando com muita solidariedade. “Cada lugar que eu chego encontro pessoas que me acolhem”.
Os maiores gastos da viagem são com combustível e manutenção mecânica do automóvel. A Kombi não deixa na mão e é toda equipada: os bancos em que sentamos para fazer a entrevista viram a base da cama, tem uma pequena cozinha para preparar alimentos e uma farta biblioteca para alimentar a alma e a imaginação. Versátil que nem o dono, a Kombi é transporte e lar.
A venda de livros é o financiamento direto do projeto, sejam eles autorais ou sebos. Apesar de ter saído de casa com dinheiro guardado para questões emergenciais, não precisou usá-lo até agora e a viagem tem se financiado.
“Tem cidade que nem uma cerveja eu consigo pagar. Acho que essa é a maior forma de reconhecimento do trabalho. A galera se liga que eu tô prestando um serviço em que, muitas vezes, o estado está falho nisso. Tem vários projetos arrojados por aí, mas você chega às periferias das cidades e não tem equipamento cultural. As bibliotecas que existem são verdadeiros templos da formalidade, onde os jovens não são convidados a entrar”, justifica.
A experiência resultou em 400 exemplares e o estimulou a circular, ultrapassando as dificuldades de divulgação e distribuição ao seu modo: caindo na estrada.
O acervo de Guilherme Salgado tem aproximadamente 1000 livros. “Geralmente o livro é inacessível porque é caro. A gente sabe que as grandes editoras têm uma rede de atravessadores que ganham no meio. O escritor e o leitor perdem”. No Piauí, conheceu Picos e Teresina. “Em São Luís, no Maranhão, eu chego à metade da minha viagem e vou voltar pelo litoral, que eu sou mineiro e mereço uma praia”, sorri.
A estrada continua
Com os projetos que Guilherme tem em mente dá pra escrever uma lista. Citados despretensiosamente e fora de ordem cronológica, um deles é lançar um box com sete livros infantis e convidar amigas contadoras de histórias para favorecer o público deficiente auditivo ou sem alfabetização: um áudiobook.
Entre as ideias que Guilherme pretende concretizar estão descer até o Rio Grande do Sul e subir até o Uruguai para visitar amigos na Argentina e no Chile que trabalham com feiras literárias de rua, e enveredar pelo sertão do centro-oeste. Porém, suspeitamos que o mais importante seja voltar pra casa e rever a companheira e a filha, Helena, de um ano e meio. “Ela e mãe vão me encontrar agora no Ceará, de lá eu devo passar Natal e Réveillon com os familiares, depois ver…”.
Enquanto isso, Guilherme segue pela estrada, acreditando que arte e cultura são o que movem a vida. Se os amigos que conheceu ao longo da viagem não estiverem presentes, sozinho, certamente, não vai estar: tem os livros para lhe acompanharem ao longo dos quilômetros.