A primeira vez que Washinton Feitosa correu risco foi quando calhou de nascer numa família de circo. Cresceu no improviso. Fazia as vezes de mestre de cena no circo liderado por seu pai, um ex-policial militar que se rendeu aos encantos de uma dançarina maranhense do Circo Itamarati. Em um dos espetáculos o palhaço faltou e Iracema, sua mãe, pediu para que o filho entrasse em cena. Dali em diante nunca mais abandonaria a fantasia.


Esse foi só o começo de uma história que envolve tudo do que mais gostamos: arte, sonho, romance e aventura. E encontramos o cenário perfeito para ilustrar isso tudo, num lugar quase improvável: Santa Luz, há 18 km de Teresina. Pouco mais de XX habitantes vivem nesse povoado, na zona rural do Piauí. Vida pacata e quase sem nenhuma opção de lazer. Exceto pela chegada do circo.

Euro é o nome do circo que Washinton – ou Palhaço Sucata – montou para chamar de seu. Saindo debaixo da asa do pai, o dono do famoso Circo Yang, decidiu assumir o segundo risco e administrar seu próprio picadeiro. “Éramos uma família de 11 irmãos. Nem todos trabalhavam e no final todo mundo ganhava igual. Achava um pouco injusto”, relembra os tempos em que chegou a conhecer quase todos os cantos do Brasil. Encantou-se pela vida na estrada.

Há oito anos, durante uma temporada do Circo Yang em União, conheceu Maria Teresa, uma morena de longos cabelos castanhos, olhos cor de mel e uma discreta ambição artística. De família humilde – o pai era da roça, a mãe dona de casa – vivia o pedaço da história que lhe cabia entre a escola, os afazeres domésticos e o sonho de ser uma dançarina famosa. Tinha 15 anos quando o circochegou em sua cidade. O terceiro risco que Washinton correu na vida foi encantar-se por ela.

 


Maria lavava roupas com a mãe num chafariz próximo ao terreno onde Washinton acampara. Àquela altura, o circo já se desarmava para ir embora quando a moça chamou a mãe para ir ver a partida da trupe. Dona Teresinha, sem nunca imaginar a real intenção da filha, atendeu ao convite. “Ela subiu no trailer sem nem dar tchau. Foi embora com a roupa do corpo”, relembra a dona de casa. Ali, Maria Teresa ficou pra trás: a jovem passou a se chamar Roberta e a ser a principal atração do circo, junto a Washinton. 

Quantos sonhos cabem em um trailer? O de Roberta parece ser sob medida para quem sozinha aprendeu a fazer acrobacias longe do chão. Tímida e desconfiada, evita falar de seus dons. É a mãe que entrega: “Ela saiu de casa sem saber pregar um botão. Hoje em dia tá aí. Só pode ser mesmo coisa que Deus dá”. A primeira conquista de Roberta longe de casa e com o cachê do circo foi comprar um notebook. É com ele que baixa músicas para o espetáculo e pesquisa apresentações artísticas para ensaiar. Depois do computador portátil, veio a máquina de lavar roupa. Era sonho de consumo da jovem. Adeus, chafariz. 

Com Washinton ela teve Rebeca, uma garotinha de quase dois anos que já demonstra na liberdade o gene circense. Passados os impasses familiares – Enedino, pai de Roberta, não gostou nadinha de voltar pra casa e não encontrar a filha – hoje todos vivem em harmonia e em função do circo. Quase 15 pessoas circulam por ali, onde o regime é de mutirão: “Todo mundo ajuda um pouco”, diz Paulo Roberto, o homem por baixo da fantasia de Moleza. Tem 60 anos de vida e 40 de circo. Com a malandragem de palhaço experiente, ele é responsável pelas melhores esquetes do Euro. Dorme sozinho num trailer de 3 por 2 metros.

Visitamos o Euro numa tarde de sábado, expectativa de casa lotada.  Dona Teresinha tinha feito arroz, frango e macarrão para o almoço, e todos já cuidavam nos preparativos para a noite. A estrutura do circo conta com três trailers, dois carros e mais um caminhão de frete, alugado apenas para transportar tudo no final de cada temporada. Naquela tarde, um dos carros, equipado com mega-fone para divulgação do circo nas regiões por onde passa, havia quebrado. Washinton passou o dia correndo atrás de quem ajeitasse, mas não adiantou. Para anunciar o espetáculo, dois membros da trupe, de peruca e suspensório saíram a gritar:  “Ô raia o sol e some a lua / Olha o palhaço no meio da rua”, perdendo-se entre a mata seca do povoado. 

Hora do show

As 20h a bilheteria está aberta e começa a se formar uma fila para comprar ingressos. Custa quatro reais para adulto e três para crianças, que até cinco anos entra de graça. A maioria não sabe, mas é Roberta, a grande atração, quem passa o troco atrás da janelinha. Na escuridão do interior, apenas as luzes do Euro clareiam a estrada de piçarra. Algumas pessoas começam a entrar e apressam-se em conseguir cadeiras. Não há padronização: apenas 20 cadeiras são novas e de plástico. A maioria acomoda-se nas arquibancadas de madeira ou cadeiras de bar. Crianças sentam na terra. Em dia de casa cheia, a maioria fica mesmo em pé. 

No microfone, Washinton interrompe a música eletrônica que toca para destacar as atrações da noite. “Circo Euro, uma companhia piauiense de espetáculo”, é o slogan. Ele comanda a mesa de som e iluminação de todo o espetáculo, que inicia com “as mulheres do Circo Euro” em número de dança: Roberta, a irmã e duas sobrinhas dançam forró trajando roupas coladas e confeccionadas por ela mesma. 


No número das facas, Washinton aparece com um visual cigano: usa botas e lenço na cabeça enquanto atira facas contra Roberta. “Circo é assim, tem que ser profissional. A gente não pode nem brigar um com outro, porque na hora da apresentação tem que entrar sorrindo e fingindo estar tudo bem”, havia confessado nos bastidores. Além desse, Roberta protagoniza outros números de grande tensão no picadeiro. A metros do chão e presa à tecidos, ela faz acrobacias. No outro, entrelaça-se pelas hastes de ferro de um cubo gigante suspenso do chão. É ainda erguida pelos cabelos no número conhecido como “cabelo-de-aço”. 

Fazer rir é o desafio da dupla de palhaços Frigideira e Mixaria. A maioria das piadas usa escatologia, xingamentos populares ou fazem referência a pessoas na plateia. “Ô mucucura!”, diz um deles apontando para um rapaz que assiste a apresentação. Piadas com referência a animais e sexo despertam riso geral.

Três minutos de intervalo e todos vão para fora do picadeiro fazer um lanche. Batata-frita, crepe, torresmo, maçã-do-amor e creme de galinha são as opções. Tudo ali custa dois reais, exceto a cerveja: paga-se três por uma latinha de Kaiser. Os próprios artistas atendem e servem o público, Washinton ainda cigano passa trocos na batata-frita. O lucro das vendas reforça a renda da bilheteria e a soma chega a 1.200 reais em dia de casa cheia. 

Washinton, novamente no microfone, anuncia o casamento do palhaço Sucata no espetáculo de segunda-feira. As apresentações nunca repetem-se com frequência – faz parte da estratégia para manter o público. “Hoje eu entro com o número das facas, amanhã sou palhaço e assim vamos variando e montando novos números para o público que veio hoje não pensar que já viu tudo, e sentir vontade de vir de novo”, explica. 

No povoado Santa Luz, onde passou 10 dias, a trupe não teve do que reclamar quanto a bilheteria. Em alguns dias o circo fechou para receber alunos de uma escola da região. A apresentação exclusiva custou 300 reais para o Projeto 'A escola vai ao circo'. “Foi uma boa praça, não dá para reclamar”, disse Washinton cuja estratégia também se aplica a escolha dos locais para acampar o circo. “O interior tem pouca ou quase nenhuma opção de lazer. É besteira armar na cidade. As pessoas vão pro shopping, pra churrascaria, mesmo as que moram na periferia. A concorrência por lá é muito grande no fim de semana”, explica. 

Até mesmo não crescer é algo planejado pelos donos do Euro. A atual e já desgastada lona que usam custou 10 mil reais e é considerada pequena. “Circo grande é ilusão”, defende Washinton. “Nunca gostei desses espetáculos com muitos efeitos, muita estrutura, muito luxo”, diz o artista mambembe. “Onde chegamos somos bem recebidos, os vizinhos ajudam, as pessoas ficam curiosas. Circo grande é que nem cidade grande: ninguém ajuda ninguém”.

Washinton vive de proporcionar alegria para as pessoas.  E de todas as funções que acumula no circo, a que mais gosta é ser palhaço. “As vezes o artista arrisca a vida lá em cima, pendurado, e a plateia nem liga. Mas o palhaço é aplaudido de pé”, compara. Washinton nem precisa subir na corda bamba  ou domar leões para saber que a vida no circo é um eterno arriscar-se. Diz seguir feliz no desafio diário de conquistar público, na incerteza de estar agradando e sem tempo para dúvidas sobre ter tomado o caminho certo. A vida de acrobata não pode parar. 

(Publicado na Revestrés#11 em novembro/dezembro de 2013)