Aracataca tem um ar de cidade pequena do interior, com pessoas conversando nas calçadas, crianças correndo e brincando despreocupadas e as casas com janelas e portas abertas, prontas para acolher quem quiser entrar. A sensação é de tranquilidade. O maior problema que poderia acontecer seria um enxame de borboletas amarelas invadirem alguma das residências, o que, na prática, significaria sorte para a família. “Aqui o povo é feliz”, afirma um morador.

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Essa vida simples e os costumes típicos dos habitantes desse lugar foram imortalizados por um de seus filhos, Gabriel Garcia Márquez, um dos principais escritores da América Latina e o único autor colombiano ganhador do Prêmio Nobel de Literatura, em 1982. Gabo, como é conhecido, inspirou-se nas histórias de sua cidade natal, localizada no departamento de Magdalena, na costa caribenha da Colômbia (a 860km da capital Bogotá), para escrever Cem anos de solidão, uma das obras mais aclamadas e lembradas quando se fala sobre realismo mágico.

Os acontecimentos da cidade fictícia Macondo e da estirpe dos Buendía, contados por Gabo na obra, ultrapassam os limites do imaginário e se confundem com a verdadeira história de Aracataca. A realidade e a ficção estão ali entrelaçadas, rompendo o fio da narrativa e das possibilidades do real, dando margem ao fantástico. E tudo ainda está presente no cotidiano dos cataqueiros: a dedicação dos Josés Arcadios pelo trabalho, a serenidade dos Aurelianos e os esforços sem medidas de Úrsula, a matriarca da família Buendía.

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“Parte da obra é possível ver aqui na cidade. Os almendros aqui estão, os castanhos aqui estão, a rua dos Turcos é ali na próxima esquina e é uma realidade que se encontra na obra de Gabo”, afirma o professor de literatura Frank Dominguez, fazendo referência a uma das principais ruas de Macondo e às árvores tantas vezes citadas em Cem anos de solidão. O professor leciona no Instituto Gabriel Garcia Márquez, colégio que modificou seu nome logo após a morte do escritor, em abril de 2014.

O fenômeno alcançado pela obra modificou significativamente a rotina dessa cidade quente, com pouco mais de 50 mil habitantes. Se antes Aracataca poderia ser facilmente ignorada pelos turistas que vão à Colômbia, atualmente ela é visitada por milhares de pessoas guiadas pelas borboletas amarelas em um mundo de sensações a cada passo.

Para o professor Dominguez, o prêmio Nobel foi um dos principais motivos desta mudança. Ele conta que, quando o escritor ganhou o prêmio, muitas pessoas começaram a chegar a Aracataca e, durante as visitas, perguntavam aos cataqueiros curiosidades sobre as obras de Gabo, mas poucos moradores haviam lido seus livros. Diante disso, os professores locais criaram o “Projeto Pedagógico Gabo Leitura” para incentivar o contato da população com os livros de Gabriel Garcia Márquez.

Bem-vindos a Aracataca-Macondo

Andando por este pequeno município não é preciso caminhar muito para encontrar inúmeros lugares que fazem referência a Macondo ou à própria vida de Gabo. Pensões, restaurantes, bibliotecas, hospitais, casas de show, hortas comunitárias, escolas.

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Também influenciado pelo realismo mágico, o único veículo de comunicação da cidade chama-se Macondo Stéreo, uma rádio independente que possui vasta programação musical, mesclada com programas religiosos e informativos. Ela está instalada numa pequena sala, no prédio da antiga empresa Telecom. Sem nenhuma placa identificando o lugar, a rádio funciona há vinte anos, mantida por propaganda, e dando voz aos moradores de Aracataca e dos município ao redor.

Pela manhã, a programação é produzida por Jair Cadena e Berlinton Azevedo, dois jovens jornalistas atentos ao trabalho, sobretudo à participação popular. Entre uma mensagem e outra, recebida por meio das redes sociais, os jornalistas afirmam que Aracataca converteu-se em uma cidade internacional. “Muitos turistas chegam aqui e acabam ficando um ou dois meses. Eles se encantam pela cultura. Alguns até choram porque têm que voltar para seu país”, conta Berlinton.

Questionados sobre a forte influência de Gabo no cotidiano da cidade, a resposta veio junto com a enquete, ao vivo, sobre o nome da rua onde fica localizada a Casa-Museu de Gabriel Garcia Márquez, o principal atrativo turístico da cidade. Para anunciar o resultado, nossa conversa teve que ser interrompida. Jair Cadena leu a pergunta no ar e, em clima de suspense, revelou a alternativa correta: Monseñor Espejo. A enquete respondeu ao que eu havia perguntado: Gabo está mais presente do que nunca.

Como uma forma de retribuição por todos os escritos de Gabo, há três anos Dilia Todora modificou a estrutura de seu restaurante para acolher ainda melhor os turistas. A dona do “El Patio Mágico de Gabo y Leo Matiz”, que funciona há 40 anos de maneira informal, recebe as pessoas em sua casa como se estivesse esperando bons amigos para o almoço. Voltando ali pela segunda vez em menos de um mês, senti como se tivesse revisitando uma amiga. No seu restaurante de quintal, recordações de Gabo, Fotos, registro de seu batismo, objetos pessoais. Entre um prato e outro, ela conversa amavelmente com seus clientes e confessa: “Quando Gabo morreu eu chorei como se tivesse sido alguém da minha família, porque através de suas obras, de tanto falar dele, eu sinto afeto por ele como se estivéssemos vividos juntos durante toda a vida”.

A mistura entre a cidade real e a fictícia é tão forte que, em 2006, o então prefeito realizou uma consulta popular com a proposta de mudar o nome de Aracataca para Aracataca-Macondo e registrar de vez essa confusão. A intenção era tornar a cidade mais turística, mas a medida não foi aprovada. “A ideia não era ruim, mas nem tampouco aceitável, pois seria uma mudança muito brusca e traria gastos desnecessários para essa população já vulnerável, que teria que pagar para renovar a cédula de cidadania. As pessoas entendem e sempre vão entender perfeitamente se chamarmos a cidade de Aracataca-Macondo, sem precisar ser institucionalizado”, explica Dilia.

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Macondo nunca deixou de existir ali naquele povoado e será para sempre uma cidade para ser buscada, sentida, um mundo mágico a ser descoberto, que alimenta moradores, turistas e sonhadores. Em Uma Jornada em Macondo, Gabo estava certo quando escreveu que “Macondo não é um lugar, mas um estado de espírito que nos permite ver o que queremos, do modo como queremos”.

O último da estirpe dos Buendía

Conhecer de perto a cidade que deu origem a Cem anos de solidão é o principal motivo dos turistas que decidem percorrer Aracataca. Muitos deles procuram o realismo mágico pelas ruas e são acolhidos pelos habitantes calorosos e de vida simples. Assim, decidem ficar por meses ou anos, como o holandês Tim Aan’t Goor, ou Tim Buendia, como ficou conhecido. Ele morou na cidade durante cinco anos, sempre preocupado em estimular o turismo local.

Tim já havia lido a obra-prima de Gabo uma vez e conta que não se interessou muito pela história, mas depois de se encantar com o livro “Crônica de uma morte anunciada” decidiu dar mais uma chance ao escritor. Aos 23 anos, enquanto estava relendo a obra e vivendo em Santa Marta, capital de Magdalena, Tim foi convidado por um amigo a passar o Dia do Idioma, uma data festiva, em Aracataca, que fica a duas horas de Santa Marta. “Quando cheguei à cidade eu entendi a real magia do livro”, desabafa. Naquele instante decidiu que era ali que queria viver.

Durante todos esses anos Tim mantinha o hostel “The Gypsy Residence” (A residência dos ciganos) e se encarregava de mostrar aos turistas que chegavam uma “rota mágica de Macondo” em que, percorrendo toda a cidade, as pessoas conheciam histórias sobre o descobrimento da América Latina pelos espanhóis, sobre Simon Bolívar e sobre as guerras na Colômbia, tudo através dos livros escritos por Gabriel Garcia Márquez. Além disso, todos tinham a oportunidade de sentir de perto os lugares na cidade que serviram de inspiração para o escritor.

Mas, pela falta de apoio para o desenvolvimento do turismo e com a família crescendo, Tim resolveu mudar-se para a Califórnia, EUA, em 2014. Ele afirma que, mesmo vivendo longe, está próximo dos cataqueiros e conclui, saudosista, nos respondendo por e-mail: “Para mim foi uma honra ver uma Aracataca tão pura, de pessoas tão autênticas e mostrar essa minha experiência para o mundo”.

Os turistas que chegam à cidade diariamente e querem percorrer Macondo podem contar com um guia turístico que fica em frente à Casa-Museu Gabriel Garcia Márquez. Do principal ponto turístico, percorrendo a cidade a pé, as pessoas têm a oportunidade de conhecer a igreja em que Gabo foi batizado, a Casa do Telegrafista onde seu pai trabalhou e que agora funciona também como um museu, a creche em que Gabo estudou até os oito anos, a estação de ferrocarril e a tumba do cigano Melquíades – primeira pessoa a morrer em Macondo – que foi construída pelo holandês Tim, o último da estirpe dos Buendía na terra.