Na pequena loja, uma senhora oferece seus préstimos ao proprietário: “Sou sua vizinha, aposentada, tenho tempo livre. Posso lhe ajudar a arrumar os livros ou ficar aqui, se você precisar sair”. A oferta parece surpreender o proprietário. Mas nem tanto. Desde que Ricardo Lombardi, 44 anos, largou uma carreira considerada bem sucedida no jornalismo e resolveu se reinventar, tem sido assim: as pessoas se interessam pela sua história e parecem querer participar, de alguma forma.

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Ricardo Lombardi por André Gonçalves

O sebo Desculpe a Poeira ocupa a pequena garagem da mãe de Ricardo, dona Lúcia. O ponto, de 3 metros por 8, é alugado por 600 reais – coisa de mãe. O preço de mercado está por volta de 1.500 reais. Numa região charmosa do bairro Pinheiros, em São Paulo, com rua de calçamento, outras garagens também viraram negócios diferenciados, como lanchonete e serviço de costureira.

As estantes laterais e mais uma menor, ao centro, estão abarrotadas de livros criteriosamente escolhidos pelo jornalista, agora livreiro. São apenas uma parte do acervo que ele possui e zela. “Depois deixa que eu coloco de volta, tá?”- diz para uma cliente que havia tirado o livro da estante.

Ricardo já gostava de indicar leituras – na maioria das vezes, livros e revistas. Há sete anos tem um blog no Estadão onde faz exatamente isso. O blog tem o mesmo nome da loja e ele diz: “Um dia tive um clic: vou fazer isso analogicamente. Vou colocar minhas sugestões de leitura fora do virtual!”.

No blog há textos sobre Machado de Assis, Truman Capote, análises sobre os 100 livros mais vendidos na história e indicações que podem começar assim: “Por que ler…”. Na loja física o livreiro pretende oferecer um atendimento personalizado. “Eu quero que as pessoas entrem e se sintam bem”.

Comecei a ficar incomodado com o mercado de jornalismo. Minhas funções estavam cada vez mais distantes da essência da profissão. (…) Então fui procurar outro projeto, onde eu pudesse me encaixar melhor

Desde o dia em que teve o clic, há cerca de um ano e meio, boa parte dos finais de semana do jornalista foram na garagem: limpando, pintando, colocando prateleiras, iluminação, “até quando eu achei que já era hora de desligar uma chave e ligar outra”, diz.

“Pra mim é tudo muito novo. Passei 25 anos dentro do jornalismo, minha carreira é dentro de redação”. Ricardo começou a trabalhar aos 17 anos no setor de arquivo do Estadão, na época em que virou estudante universitário. Iniciou os cursos de Direito e Letras, abandonando ambos e indo se encontrar no curso de jornalismo que fez na faculdade Cásper Líbero. Ele passou oito anos no Estadão. Foi mudando de função e de empregos. Morou em Nova York, onde foi correspondente do IG. Trabalhou em revistas e portais: Bravo, VIP, America Online e por último no Yahoo, até o início de 2014, onde atendia pelo pomposo cargo de Head of Media. Na maioria das vezes foi Diretor de Redação ou Editor.

Quando achou que sua garagem estava pronta, viu que era hora de abandonar a carreira de jornalista. “Comecei a ficar incomodado com o mercado de jornalismo. Minhas funções estavam cada vez mais distantes da essência da profissão. Isso era normal, porque eu comecei muito mais a administrar uma revista do que a fazer jornalismo. Cheguei a um ponto em que 80% do tempo eu fazia coisas que não estavam ligadas ao jornalismo. Isso me pareceu algo esperado, mas eu não estava me adaptando. Então fui procurar outro projeto, onde eu pudesse me encaixar melhor”.

Ricardo é frequentador de livrarias e sebos e comprador de livros. O Desculpe a Poeira tem um acervo de quase 5 mil títulos. Devido ao espaço reduzido, apenas cerca de 2 mil estão expostos. “Esse também é um trabalho de edição: escolher o que eu vou colocar na estante. É ainda a profissão de editor, né?”.

Ele acredita que o Desculpe a Poeira vá ocupar um nicho no mercado: “As livrarias cresceram demais, são megalivrarias, tratam o livro como mercadoria, com a força do marketing empurrando os lançamentos. Por outro lado, os sebos, com raras exceções, viraram depósito de livros, que ficam ali sem nenhum critério ou, às vezes, usando o mesmo critério da megastore”, avalia. E fala quase lamentando: “É a lógica capitalista, né?”.

Ricardo pretende escapar a essa lógica: quer aceitar encomendas, indicar livros, conversar, atender as pessoas calmamente, quer que elas tenham tempo de descobrir que gostam de coisas que nem sabiam que existiam.

Ele trabalha sozinho e, desde que abriu, tem se surpreendido com o movimento, tanto que há dias não consegue atualizar a prateleira que já tinha na Estante Virtual, uma plataforma de sebos. Considera que a internet é o elemento que pode ajudar os pequenos negócios a funcionarem, mas analisa que as lógicas no virtual e no real são distintas. “Na Estante Virtual a pessoa geralmente já sabe o que quer. Na loja física, ela vai procurando. Na digital cabe tudo, na loja cabe só uma fração do acervo”.

IMG_5525 cópiaO jornalista diz que se preparou para dar o salto que pretendia, embora não tenha noção de onde isso vá parar. Ele continua com o blog no Estadão: “Isso deixa meu pé dentro do jornalismo”, afirma, “mas a vida de executivo eu não aceito mais. Considero uma página superada em minha vida”. E é sincero ao afirmar: “Durante muito tempo eu vivi disso e me aproveitei disso, de várias maneiras, tanto intelectualmente como financeiramente. Mas, pra mim, essa fase passou”.

Tomou uma decisão profissional, mas também de vida. Vendeu o carro, anda de bicicleta e já disse que não paga mais 300 reais em restaurantes. Hoje vive com cerca de 30% da renda que já desfrutou. Além do recente sebo e do que ganha no Estadão, outra fonte de renda vem de um segundo imóvel que aluga. Ele é casado com Camila Sarpi, designer de joias, e tem dois filhos, de seis e dois anos.

No dia em que Revestrés visitou o sebo de Ricardo, o espaço estava funcionando há apenas uma semana. O livreiro é atencioso, fala com calma e, desde que resolveu mudar de vida, também deixou a barba crescer. Reclama que, em São Paulo, as pessoas andam muito apressadas, sem tempo para nada. O tempo, que ele reclama para os outros, também busca para si: deseja coisas como fechar para almoço e ter mais tempo para família. Educado, lembra que são quase 18h, e quer pegar os filhos na escola. Nada mais justo para quem resolveu se reinventar e ser dono do próprio horário.

Ricardo ainda se surpreende com o interesse que sua história tem despertado. Ele tem sido procurado por jornalistas e pessoas que querem conhecê-lo ou ajudá-lo espontaneamente. E acha que tem uma explicação para isso: “Não é só o sebo. As pessoas se interessam pela história de ruptura com a vida que se levava”.

O livreiro não tem intenção de aconselhar ninguém, mas reflete: “Se você está saindo da sua casa e passando 10 horas por dia num lugar, fazendo alguma coisa, você precisa enxergar um sentido naquilo. Pode ser um sentido temporário: a pessoa está fazendo aquilo porque daqui a dois anos vai pegar esse dinheiro e tirar um ano sabático na Europa. Ou pode ser o sentido da paixão mesmo – ‘eu amo fazer isso’”- filosofa. E continua: “Cada pessoa encontra isso em alguma fase da vida. O Nelson Freire, pianista, encontrou isso aos quatro anos de idade, então pra ele foi mais fácil (risos). Mas as outras pessoas têm fases distintas. Acho que a riqueza do ser humano tá nisso: você trocar de fases, de projetos, de acordo com a fase interior que você vive”.
Endereço do sebo Desculpe a Poeira:

Rua Sebastião Velho, 28-A, Pinheiros, São Paulo-SP

Endereço do Blog:

cultura.estadao.com.br/blogs/Ricardo-lombardi/

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(Publicado na Revestrés#17 – Ano 3)