“O que é que vocês vieram fazer aqui? Eu sou um analfabeto!”. A modéstia mal disfarçada do senhor de jeito simples e gargalhada fácil dão o tom da chegada no amplo ateliê em Bezerros, oeste de Pernambuco. Um arco na entrada da rua anuncia que há poucos metros estaremos diante de um patrimônio cultural vivo – e ele aparece de boné da Coca-Cola e bengala a punho. É J. Borges, o maior cordelista do agreste.

 

(Foto: Mauricio Pokemon)

(Foto: Mauricio Pokemon)

Naquela manhã de agosto o artista recebia uma turma de alunos na faixa dos 13 anos, todos curiosos com os cordéis e xilogravuras espalhados por todo o ateliê. Sentaram-se no chão formando uma roda e puseram-se a entrevistar Borges. “Eu me considero um zé-ninguém, mas quando eu vejo vocês vindo me visitar eu me sinto importante”, sorri o mestre.

Borges nasceu em Bezerros, há 79 anos – dia 20 de dezembro chega aos 80, esbanjando disposição e simpatia. Filho de agricultor e mãe dona de casa, cresceu com os 16 irmãos “feito batata na terra”. “Só três pessoas na minha família sabiam ler. Meu pai era uma delas, lia cordel pra gente dormir e eu adorava”, relembra. “Me apaixonei por aquilo”.

Aos 20 anos, escreveu o primeiro cordel, sem muita pretensão. “Quando eu vendi, tomei gosto”, diverte-se. “Então eu já escrevia os cordéis, mas não tinha quem ilustrasse”. Assim surgiu, para ele, a xilogravura. Familiarizado com o trabalho em madeira (foi marceneiro e carpinteiro, além de fazer bicos de pedreiro), começou a entalhar aquelas que se tornariam valiosas matrizes vendidas a colecionadores.

(Foto: Mauricio Pokemon)

(Foto: Mauricio Pokemon)

Por sorte, um de seus cordéis foi bater nas mãos de Ariano Suassuna. Foi ele que deu a Borges o título de melhor cordelista do agreste. “Ariano falou e o povo acreditou. O povo é teimoso. E até hoje eu não tenho mais sossego”, brinca o artista que batizou um dos 18 filhos (seis são adotivos) com o nome do escritor paraibano. “Ele é o Ariano péba, porque o original já se foi e deixou muita saudade”.

As histórias estampadas nos títulos dos cordéis tem inspiração na tristeza e alegria do povo nordestino. Fantasiosas, são chamadas de “gracejos”, e são o estilo preferido de Borges, que ensina: “Quando o povo diz, ou foi, ou é, ou tá pra ser”. Ele afirma que os noticiários já preenchem a vida de realidade, e que a mentira, por isso, tem mais adeptos. “Invento histórias que o povo acredita porque são mentiras que podem ter acontecido”.

Marginalizados, os cordéis eram vendidos em feiras sob a vista grossa da polícia. Ali começou, por exemplo, o sucesso escatológico de “O valor que o peido tem” e ainda “A chegada da prostituta no céu”, que até hoje figuram a lista dos mais vendidos. “Hoje só se tem tempo para o humor”, diz o homem que levanta as cinco da manhã para produzir. “Antes das 10 já tem uns dois ou três cordéis feitos”. O total de publicações hoje ultrapassa a casa dos 300.

Borges recebeu o primeiro prêmio em 1974, da Rede Globo Nordeste (Prêmio Global de Arte Popular). Para a emissora já fez gravuras que ilustraram abertura de novelas e seriados. Na mesma década, ilustrou o livro “As palavras andantes” do uruguaio Eduardo Galeano e recebeu, até hoje, seu maior cachê, em dólar. “Melhor do que isso foi aprender a falar espanhol”, diz sorrindo.

(Foto: Mauricio Pokemon)

(Foto: Mauricio Pokemon)

Embora não se considere artista, foi a arte que lhe rendeu fama internacional – em 1992 foi representar o Brasil na Suíça e nos EUA em feiras de arte popular. Já conheceu 10 países por onde viaja dando palestras e oficinas – só aos EUA foi oito vezes e tem verdadeira adoração. “A chegada da prostituta vendeu 100 mil cópias por lá. Traduzido, o cordel perde a rima, mas mantém a graça”, defende. Também na terra do tio Sam, xilogravuras de sua autoria foram vendidas por US$ 30 mil num leilão. O dinheiro, porém, ficou com o colecionador gringo.

“Quem diz que eu sou rico não sabe, de fato, o tamanho da minha riqueza”, diz, referindo-se aos filhos cujo dom de gravar, pelo menos seis, aprenderam com o pai. Hoje, alguns o ajudam no ateliê – um deles é Pablo Borges, que aos 21 anos diz procurar se diferenciar do traço do pai. O trabalho é cauteloso e perfeccionista. A gravura “Revoada do sertão”, por exemplo, uma passarada em azul turquesa, levou uma semana para ficar pronta. A capa do cordel era pequena demais para José Francisco Borges. Ele acabou cabendo no mundo.

 

(Publicada na edição #22, setembro/outubro de 2015)