Márcio dos Santos é baiano. Confessa, porém, que na cozinha tem uma queda pelo baião de dois e pela vaca atolada. “Quando você gosta de cozinha brasileira, aprende a fazer de um tudo”, justifica, acrescentando que gosta do baião porque é um “prato completo”. De fato, na sua versão da receita não faltam incrementos: “boto carne, arroz, feijão, legumes, calabresa e queijo”. Quando chegou em Paris, há 12 anos, David – como prefere ser chamado – deixava para trás a função de cozinheiro em cantinas da Universidade Federal da Bahia. Mas a paixão pelo forno e fogão se manteve. Hoje, trabalhando como cuidador de pessoas portadoras de deficiências, cozinha “diariamente” para si e o companheiro francês. Mas pratos brasileiros só nos almoços de fim de semana, quando reúne os amigos. Pelo menos uma vez por mês, se lança em menus mais elaborados, como Caranguejada, bobó de camarão e moqueca de peixe ou ainda em suas iguarias preferidas do Ceará e de Minas Gerais. “E também a feijoada, que gosto de fazer durante o inverno porque esquenta”, acrescenta.

IMG_0216 copy

Assina o prato tradicional brasileiro, resultando numa versão expandida. Faz uma “feijoada baiana” que, além do pé e da orelha de porco, da calabresa, leva também carne de sol, costela salgada, presunto e peito defumados, fato e bofe! “É uma receita familiar”, orgulha-se David, para quem “cozinhar é uma invenção; é como pintar: você tem que ter a ideia do que vai botar no quadro”. Foi inspirando-se em outra receita familiar, a farinha de casca de banana, que chegou a criar a lasanha de casca de banana. Se essa invenção foi apreciada por um pequeno círculo franco-brasileiro, a feijoada já foi, conta David, o prato principal na festa de aniversário de um amigo parisiense que reuniu 100 pessoas. Público modesto, se comparado à multidão que, em 2014, pôde provar do seu tempero durante a Lavage de la Madeleine – edição francesa organizada por brasileiros do rito do Senhor do Bonfim –, conforme narra o baiano.

Como todo amante da cozinha brasileira que vive em Paris, David sabe que preparar um prato típico exige paciência e saúde no pé: dispersos entre feiras livres africanas, mercadinhos asiáticos ou hipermercados nos arredores da cidade, os ingredientes precisam ser “colhidos” de um extremo a outro da Paname. Nessa peregrinação intercontinental de sabores, uma pedra no sapato: o camarão seco e a carne de sol, figurinhas difíceis na lista de compra. Quem gosta de caruru, vai ter que se contentar com o camarão em pó das feiras africanas, informa David. “Não tem o mesmo sabor e parece ser feito da cabeça do camarão”, adverte. Quanto à carne de sol, David diz que prefere escapar dos preços altos comumente praticados pelas lojas de artigos brasileiros que têm o item com fabricação caseira. E socializa a receita: “no verão, deixo a carne de gado no sal grosso por três dias e depois defumo”. O plano B é esperar que algum compatriota traga na mala o ingrediente na próxima viagem de férias ao Brasil. “Quando vim pela primeira vez, trouxe quatro quilos”, lembra.

Se fazer uma maria isabel na cidade de Mallarmé requer força de vontade ou orçamento generoso, os pratos e quitutes declinados da mandioca ficam ao alcance da mão e não agridem os bolsos. O piauiense Pedro Lopes, radicado em Paris há 14 anos, que gosta de cozinhar mas “acessa” com menos frequência o patrimônio culinário nacional, descobriu recentemente a goma numa loja asiática. Tem projeto de fazer um bolo de goma. “O amidon de manioc já tenho; depois conto se deu certo”, brinca Lopes, que ao chegar à França trabalhou em restaurantes. “Ocupei todas as funções, de cozinheiro a lavador de pratos”, relembra.

Das feiras livres aos restaurantes

Não importa a receita. Uma visita às feiras de Belleville, Barbès, Place de Fêtes ou Château Rouge, ou ainda aos mercadinhos asiáticos do Triangle de Choisy, é garantia de execução – quase – total da lista de compras para um menu brasileiro. É flanar pelas alamedas e enriquecer o vocabulário: coriandre (coentro), gombo (quiabo), concombre des Antilles (Maxixe), mombin rouge (siriguela), longane (pitomba)… Vai-se constatar que do escondidinho ao xinxim de galinha, da galinhada à moqueca (baiana, cearense ou capixaba), toda iguaria é possível nas cozinhas brazucas “translocalizadas”. Segundo a paraense Maria de Oliveira, do Restaurante de comida nortista Porta da Selva, acha-se até supostas especificidades da Floresta Amazônica, como o jambu. Indispensável para o pato no tucupi, as folhas de jambu atendem pelo nome de Brède Mafane ou Cresson du Para nos mercadinhos asiáticos. “O sabor é um pouco mais fraco que o nosso”, ressalva.

Oliveira explica que, embora disponíveis e a preços acessíveis, esses ingredientes apresentam leve diferença no sabor em relação aos encontrados em solo brasileiro. Recorre-se também, conta a paraense, a ingredientes de substituição. Lembra que a mandioca brava, da qual se extrai a farinha, indispensável à cozinha do Norte e Nordeste, não é encontrada na Europa. Resultado: maniçoba, tucupi e tacacá são feitos com a macaxeira, que “é bastante próxima mas tem gosto menos acentuado”, detalha. Pesquisar, descobrir e confeccionar os ingredientes ausentes em terras francesas é muito “trabalhoso”, reconhece. Mas reanima-se: “isso tudo vem da nossa vontade de falar da nossa região, de nossa gente, de divulgar nossa cultura”.

Para a soteropolitana Lena Nallet, do restaurante baiano Barracão, a oferta é ainda maior para quem compra no atacado via grandes importadores. Ela destaca, porém, a dificuldade de encontrar a banana prata, além da carne seca, que substitui pela carne defumada made in Polônia. Com “95% da clientela formada por franceses”, Nallet explica que ao longo dos anos foi adaptando os pratos ao paladar gaulês. Conta que precisou reduzir os níveis de sal e de açúcar e substituir o azeite de dendê: l’huile de palme é execrado pelos franceses por causa do seu alto teor de gordura saturada. “O brigadeiro não pegou, estava apenas engordando meus garçons, que são todos brasileiros”, diverte-se. “Mas o segredo mesmo”, apregoa, “é fazer com amor”.

(Matéria publicada na Revestrés#29 – Fevereiro/Março 2017)